Utilizados para proteger as plantações dos efeitos destrutivos de insetos, larvas, fungos e carrapatos, os agrotóxicos são produtos químicos sintéticos nocivos para a saúde humana, mas fazem parte do cotidiano da maioria dos brasileiros de maneira silenciosa. Em um país com forte vocação agrícola, que se manifesta em números vistosos no cálculo do Produto Interno Bruto (PIB) nacional, cada vez mais eles são estudados de perto. E quem está na lupa da vez é a Amazônia. A região, que antes não tinha um histórico voltado para atividades agropecuárias, viu os números de pastos para os rebanhos e áreas para cultivos agrícolas aumentarem nas últimas décadas em velocidade acima da esperada.
Com o avanço da soja e do gado em regiões como o sul do Estado do Pará e o norte do Estado do Mato Grosso, as atenções se voltaram para o aumento na taxa de desmatamento e do número de queimadas, que viram pastagens e cultivos. Mas a escalada dos efeitos do uso de agrotóxicos também desperta a atenção. O Norte do Brasil registrou 5.104 intoxicações e 211 óbitos por ingestão de agrotóxicos entre os anos de 2007 e 2020. E o pesquisador Ruy Bessa, um dos autores do estudo que reuniu esses dados, acredita que os números estejam subnotificados.
"Não é um impacto momentâneo, como se fôssemos comer algo e ser contaminado por agrotóxico e sermos levados para o hospital. De fato, é uma exposição a longo prazo, que leva anos de ingestão de certos alimentos para se manifestar. Além dos problemas agudos e graves, podem ocorrer doenças crônicas também. Isso vai além da ingestão de agrotóxicos, porque você pulveriza as substâncias na lavoura, mas apenas 5% da pulverização vão ter efeito sobre o organismo-alvo de fato. Outros 95% dessa pulverização vão atingir populações não-alvo, inclusive o ser humano. E isso vai se agravando ao longo do tempo. Os dados são preocupantes e o alerta é ainda mais, pois sabemos que temos subnotificações também das contaminações de pessoas expostas por agrotóxicos nas fichas de intoxicação exógena preenchidas em unidades de saúde", afirma Bessa, que atua como professor da Universidade Federal do Oeste do Pará (Ufopa).
Bessa lembra que não é à toa que as embalagens de agrotóxicos possuem a imagem de uma caveira com dois ossos cruzados. A intoxicação contínua por esses produtos pode causar diversos tipos de câncer, incluindo leucemia; alterações neurológicas, como o Mal de Parkinson; lesões no fígado, pele e pulmão; alergias, alterações hormonais, problemas comportamentais e de saúde mental e também doenças nos rins.
NOTIFICAÇÕES
Publicado no primeiro semestre deste ano, um estudo da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (UFMS) associou a expansão agropecuária entre os anos de 2001 e 2016 ao aumento na incidência de câncer em oito cidades do Estado, devido à exposição prolongada a produtos químicos utilizados em lavouras. Foram notificados quase 75 mil casos de câncer no período de 15 anos. Os pesquisadores ressaltaram que a maioria dos municípios mato-grossenses é produtora de commodities agrícolas para a exportação, e, portanto, concentra um expressivo contingente de pessoas envolvidas na agricultura e pecuária, com um menor grau de instrução e proteção individual, o que dificulta o manejo adequado de agrotóxicos e causa maior exposição ocupacional e ambiental a esses produtos.
Bessa destaca que só no oeste paraense existem mais de 700 comunidades rurais pulverizadas no entorno de áreas de produção agrícola, sem nenhum tipo de segurança, zona de amortecimento ou defesa ao uso de substâncias tóxicas. Essas zonas de amortecimento são espaços livres de agrotóxicos entre comunidades e áreas produtivas, entendidas como uma maneira efetiva de controlar esses riscos. Além disso, Bessa lembra que é importante planejar áreas vegetais entre comunidades e plantações de grande porte, pois elas funcionam como uma barreira física contra as substâncias transportadas pelo vento que podem ser inaladas ou entrar em contato com a pele.
“Temos um avanço muito intenso no uso de agrotóxicos com a chegada da lavoura temporária da soja, que aumentou cerca de 200% nos últimos 15 anos. Isso gera impactos importantes, pois na região amazônica existe uma ampla biodiversidade, ou seja, mais ocorrência de organismos que habitam na áreas de floresta mas que são classificados como pragas para a agricultura. Como já se usa muito agrotóxico e pesticida nas áreas tradicionalmente agrícolas no Centro-sul brasileiro, na Amazônia vai se usar muito mais, porque existem pragas agrícolas menos conhecidas, em uma região bem mais úmida e de solo menos propício para esta prática econômica. É um desafio enorme, pois não oferece risco somente para os humanos: contamina a água, o meio ambiente, os organismos e ainda deprime a microbiota do solo", argumenta.
Legislação brasileira facilita a utilização de produtos químicos proibidos na Europa
Enquanto o resto do mundo tem adotado legislação mais rígida contra os agrotóxicos, o Brasil passa por um processo inverso nos últimos anos. Estudos científicos apontam que 44% dos agrotóxicos proibidos em países da Europa são utilizados em larga escala nos Estados brasileiros. Além disso, há uma permissividade maior em relação à quantidade de aplicação desses produtos químicos nas lavouras. Isso resulta em leis que permitem maior quantidade de resíduos de agrotóxicos em alimentos considerados próprios para o consumo humano. O produto 2,4D, por exemplo, usado em larga escala na cultura do arroz, pode ser pulverizado em terras brasileiras em quantidade duas vezes maior do que em países europeus. No caso do glifosato, uma herbicida muito usado nas plantações de soja, a lei é ainda mais flexível. No Brasil, a quantidade permitida para uso em lavouras é 200 vezes maior do que nas nações que integram a União Europeia. Quando o assunto é o registro desses agentes em água potável, os números permitidos são ainda maiores: 300 vezes mais no caso do 2,4D e cinco mil vezes mais no caso do glifosato.
"A maioria das pessoas que moram na zona rural sofre sem atendimento adequado das companhias que fornecem água tratada. Com isso, passam a consumir água retirada de poços artesianos, que oferecem mais riscos à saúde. É um impacto direto, pois, dependendo da proximidade com as áreas de lavouras temporárias, esses poços artesianos podem ser contaminados por resíduos de agrotóxicos. Existe muita permissividade em relação à tolerância legislativa na comparação com a Europa. Se você está em uma área rural próxima a uma lavoura temporária com grande dependência na relação entre lucro e agrotóxico, e você bebe dois litros de água todo dia, você é exposto ao longo de 30, 40 anos a elevadas quantidades de agrotóxicos", afirma o professor Ruy Bessa, da Universidade Federal do Oeste do Pará.
DEPENDÊNCIA
O professor sublinha que, a partir da década de 1970, houve uma onda de incentivos fiscais para a expansão da agropecuária em busca de uma maior ocupação do território amazônico. E isso incluiu a supressão de impostos incidentes sobre a compra de agrotóxicos. "Era muito comum casar a compra de sementes com a aquisição de agrotóxico. Esse incentivo foi intenso principalmente durante a ditadura militar. Então, criou-se uma cultura de dependência do agrotóxico entre os pequenos e grandes produtores rurais. Na década de 1970, tínhamos 500 ingredientes ativos permitidos que geravam uns três mil derivados. Hoje, temos 5,5 mil ingredientes ativos e 166 mil produtos formulados registrados no Brasil. Um crescimento absurdo em 50 anos. O 2,4D é um dos produtos mais comercializados do Brasil, sendo que é banido em vários países", aponta. (E.L.)
Agricultor familiar fica sem acesso a tecnologias de combate a pragas
Professora do Instituto de Ciências Biológicas da Universidade Federal do Amazonas (Ufam), Andrea Waichmann acompanha os riscos ambientais relacionados ao uso de agrotóxicos desde a década de 1990. Quando Andrea começou a se aprofundar nas pesquisas, notou que não são apenas os grandes latifundiários que utilizam agrotóxicos. As pequenas comunidades amazônicas que praticam agricultura familiar e vendem para mercados consumidores locais também dependem do uso desses produtos químicos. Para a professora, isso eleva os desafios do manejo de agrotóxicos no Brasil, pois muitas das soluções modernas ainda estão longe das mãos de quem tem menos poder aquisitivo.
"Temos que pensar em várias perspectivas, inclusive a de quem está produzindo. Sempre fico receosa de apontar o dedo, pois temos que ver quais tecnologias estão sendo desenvolvidas para reduzir os perigos dos agrotóxicos e quem tem acesso a elas. Pela diversidade e pelo clima, a Amazônia tem muitas possibilidades de praga. O agricultor familiar ou o grande produtor rural vai usar das ferramentas necessárias para reduzir as perdas econômicas de quem investe na lavoura, de quem vive disso. Mas é fato que precisamos de mais tecnologia e mais manejo integrado de pragas com controle biológico. Hoje temos, por meio de drones, a possibilidade de aplicar agrotóxicos em parcelas mais específicas da lavoura. É uma inovação dentro da chamada agricultura de precisão. É importante ir além das críticas e multiplicar o conhecimento por meio do diálogo que aponta soluções com ajuda de governos, universidades e institutos de pesquisas", afirma.
AGROECOLOGIA
Andrea lembra que as tecnologias mais modernas e caras não estão disponíveis para agricultores familiares, mas que há outras possibilidades baseadas em sistemas agroflorestais como, por exemplo, a agroecologia. A professora também nota que, por conta da pressão relacionada aos impactos ambientais e à saúde humana, as empresas produtoras de herbicidas e derivados investem cada vez mais em produtos menos nocivos e menos persistentes, mas que acabam não chegando com rapidez e preços acessíveis nem no Brasil e muito menos na Amazônia. "Isso é uma das causas do alto uso de produtos obsoletos, com mais de 30 anos de uso regular no Brasil e que já foram banidos na União Europeia há muito tempo", ressalta a professora. (E.L.)
Legislação e fiscalização devem ser mais rigorosas, diz pesquisadora
Para a professora Andrea Waichmann, do Instituto de Ciências Biológicas da Universidade Federal do Amazonas (Ufam), o Brasil precisa reavaliar a legislação e o marco regulatório sobre o uso de agrotóxicos. A legislação vigente é de 1989 e precisa de alguns ajustes a serem considerados, como a avaliação de risco ambiental específica para as condições de clima, tempo e solo em cada região brasileira. "Em termos de clima, o País tem regiões com diferentes níveis de ocorrências de chuva e da intensidade do calor. Tudo isso altera o processo químico destes agrotóxicos no meio ambiente. E não adianta termos apenas uma lei. Nós precisamos intensificar a fiscalização. A Amazônia é imensa, com um quantitativo pequeno de pessoas nos órgãos fiscalizadores em diversos pontos da região. E é uma questão de educação também. Temos que educar os agricultores. Precisamos conversar sobre as boas práticas e estratégias para se diminuir os riscos. Nossas pesquisas constataram a ausência do uso de equipamentos de proteção individual pelos agricultores, seja por conta dos preços elevados, seja pelo clima desfavorável. Temos que trazer formas alternativas para que o aplicador proteja a saúde. E precisa de um sistema de capacitação dos homens do campo para que façamos as coisas da maneira correta", defende.
SEGURANÇA ALIMENTAR
A importância de capacitação profissional é um dos pontos ressaltados também por Roberto Araújo, líder de Sustentabilidade e Stewardship da CropLife Brasil, associação que reúne especialistas, instituições e empresas que atuam na pesquisa e desenvolvimento de tecnologias da produção agrícola sustentável. Para ele, ensinar sobre o uso correto e seguro de defensivos agrícolas químicos e biológicos é um dos caminhos para garantir a segurança na produção agrícola.
Mas, no momento, "o uso de pesticidas é essencial para minimizar as perdas causadas pelos ataques de insetos, doenças e plantas daninhas nas lavouras", ressalta. "Sem eles, seria necessário aumentar as áreas de produção agrícola e os desmatamentos. Além disso, o custo de produção seria muito maior, podendo aumentar os preços dos alimentos e até mesmo ameaçar a segurança alimentar em algumas regiões", enfatiza Araújo.
Para o futuro, no entanto, o porta-voz da CropLife acredita que tecnologias alternativas podem contribuir para a redução da necessidade de aplicação de pesticidas químicos. Essas iniciativas, segundo ele, já estão recebendo investimentos no setor agrícola brasileiro. "O uso de sementes e plantas geneticamente modificadas, o crescimento do uso de bioinsumos, a agricultura de precisão e o manejo integrado de pragas e doenças são exemplos dessa busca por um agronegócio mais sustentável", ressalta.
RESTRIÇÕES
O professor Ruy Bessa, da Universidade Federal do Oeste do Pará (Ufopa), acredita que é necessário criar um observatório independente focado nos riscos do uso de agrotóxicos na região amazônica. Ele também destaca que a legislação europeia deve servir de base para se adotar maiores restrições em relação aos produtos utilizados e quantidades aplicadas. "A Amazônia tem mais de 400 espécies de abelhas sem ferrão que produzem mel de qualidade e elas estão desaparecendo por conta do uso em excesso de agrotóxicos. Os insetos polinizadores são responsáveis por mais de 80% da polinização. São ocorrências que desequilibram o meio ambiente. Sempre digo aos meus alunos que a riqueza da região não está na exploração do solo e sim está na própria floresta, que estoca carbono, nitrogênio, fósforo... Nossa produtividade é menor na região do que em outros espaços históricos do Brasil voltados para a agricultura. Então, usamos mais agrotóxico e ocupamos mais hectares para algo que não é a vocação natural da região. São tantas relações ecológicas em um espaço complexo como a Amazônia que esses ambientes ficam mais vulneráveis às agressões. É muito fácil romper um elo da natureza. Já os campos de lavoura temporária são relações simples, totalmente artificiais e manejadas pelo homem. Então, a responsabilidade por manejar isso de maneira mais equilibrada é do próprio homem", reforça Bessa. (E.L.)
(*) Com a colaboração da jornalista Alice Martins, especial para O LIBERAL.