Boi, búfalo, tambaqui, pirarucu e outras espécies que vivem na Amazônia compartilham mais do que o habitat e a importância econômica para a região: fazem parte de projetos de rastreabilidade que visam aumentar a qualidade da produção, agregar valor e promover o desenvolvimento de comunidades espalhadas no bioma. Seja por meio de análise do material genético ou do mapeamento da origem e dos processos que envolveram aquele animal, a tecnologia também permite a redução dos índices de desmatamento da floresta e auxilia na manutenção da sustentabilidade.
São passos importantes rumo a um sistema de produção que não cause tantos danos ao meio ambiente e siga garantindo renda às famílias amazônicas - uma vez que grande parte dessas atividades são identificadas em estudos como causadoras de sérios problemas ao bioma. Segundo o Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon), por exemplo, a pecuária ocupa mais de 80% das áreas desmatadas da Amazônia e ainda pode levar à derrubada de mais de 3 milhões de hectares até 2025. A rastreabilidade é uma medida efetiva defendida pela entidade como uma forma de frear os danos.
Pelo lado econômico, a iniciativa vem como um suspiro de alívio para as comunidades que têm a pesca como fonte de recursos. Os peixes fazem parte das espécies da região que possuem valor comercial e podem ter tanto o lucro, quanto a produção alavancados. De acordo com a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), somente o tambaqui teve, em 2020, mais de 100,5 toneladas produzidas, quantidade que gerou R$ 782,6 milhões para a economia do País. O pirarucu também é destaque: ele está entre os dez principais animais da economia amazônica.
Genética
A rastreabilidade por meio do mapeamento genético desses animais é uma opção viável para a piscicultura. Uma pesquisa da Faculdade de Biologia da Universidade Federal Rural da Amazônia (Ufra), coordenada pelo professor de genética Igor Hamoy, desenvolveu marcadores moleculares confiáveis para tambaqui e pirarucu. A proposta parte do princípio da organização de um banco de dados para que esses peixes sejam rastreados: um casal reprodutor é chipado e os filhos têm o material analisado – assim, é possível saber a origem de cada um, se foram, ou não, reproduzidos em cativeiro.
A iniciativa é eficiente para superar gargalos ainda frequentes na Amazônia: a pesca ilegal em período de defeso, quando a atividade é proibida. “Alguns supermercados podem vender nessa época, mas, quem me garante que a origem do animal é a piscicultura?”, questiona Hamoy. “Se tivesse um banco de dados desses animais, eu poderia testar e dizer que o peixe, realmente, veio da piscicultura, porque os pais deles vão no sistema, fazendo a rastreabilidade genética. Isso protege a espécie e beneficia o bom produtor ou o bom pescador. Aquele que respeita o período de defeso, ou o produtor que usa a nossa tecnologia, é beneficiado”, completa.
Monitoramento mira mercados externos
A rastreabilidade dos animais amazônicos, no projeto, iniciando pelo tambaqui e pelo pirarucu, tem potencial para que o mercado externo seja atraído, uma vez que haja a comprovação de que eles não são fruto de pesca predatória. “Toda vez que a gente tem uma tecnologia que valida e rastreia animais em cativeiro, é benéfico, porque valoriza a piscicultura e o animal em cativeiro, mostrando que ele está sendo rastreado. E é o que o mercado externo quer: diminuir a pressão dos animais naturais. Quanto mais criar, menos vai pescar, ajuda na conservação e fomenta a bioeconomia”, destaca o professor Igor Hamoy.
Melhoramento
A rastreabilidade de peixes por meio do mapeamento dos genes pode elevar a produção a um novo patamar: o melhoramento genético. Igor Hamoy explica que esse cenário evita a endogamia, ou seja, o relacionamento dos animais com seus familiares. “A mesma tecnologia que rastreia os animais, permite o início do melhoramento genético. Com isso, o piscicultor pode selecionar animais com melhor performance. A tecnologia dá a possibilidade de identificar o heredograma [histórico] das famílias de peixes em uma fazenda e impedir a consanguinidade. Fazendo isso, pode haver o início do melhoramento genético”.
Tecnologia investe na cadeia produtiva do pirarucu
A rastreabilidade de peixes é benéfica para as diversas comunidades que dependem da economia da pesca. Além de ter a tecnologia à disposição, um trabalho desenvolvido pela Fundação Amazônia Sustentável (FAS) promove inovação e inteligência de mercado na cadeia produtiva do pirarucu para moradores dos municípios de Fonte Boa, Mangueira, Catete e Jussara, no estado do Amazonas, distantes mais de 1.500 quilômetros da capital, Manaus. A ideia surgiu a partir da necessidade de valorização do produtor, que fica apenas com 15% dos lucros das vendas - o restante vai para os frigoríficos e para os atravessadores.
Valcléia Solidade, superintendente de Desenvolvimento Sustentável de Comunidades da FAS, ressalta que a tecnologia é fundamental para que o comprador saiba não apenas os caminhos que o produto percorreu, mas todo o contexto socioambiental existente na cadeia produtiva do peixe. Para isso, o implemento da rastreabilidade conta com uma série de etapas para que seja possível o entendimento das maiores demandas das comunidades produtoras. “Através disso, poderemos fazer o rastreamento. Vamos desenvolver uma plataforma digital que vai trazer uma série de informações”, aponta Valcléia.
“Vamos fazer uma gestão de inteligência comercial digital para saber o número de atores e parceiros de negócios, ter clareza na satisfação do cliente”, adiciona a superintendente. “Quem vai consumir o produto sabe todos os conceitos que existem por trás dele. Queremos gerar um impacto positivo para essa cadeia e fazer com que isso seja um diferencial. A estratégia é entender as diversas atividades que eles desenvolvem e como a gente pode colocar a tecnologia, quais habilidades que eles têm e quais podemos aprimorar. O diagnóstico faz isso”, enfatiza.
Manejo
O trabalho de rastreabilidade dos peixes, por meio do sistema que a FAS está criando, será feito em conjunto com o manejo dos pirarucus. A prática vem sendo utilizada pelas comunidades há quase 15 anos e é considerada pela entidade como um exemplo de harmonia entre o homem e o meio ambiente. “O manejo é a forma como você faz para poder a espécie estar ali, aumentar a produção e tirar uma parte. Isso pode ser importante, primeiro, para a nossa segurança alimentar, mas para poder gerar renda, fortalecer o território e os tornar cada vez mais sustentáveis”, diz Valcléia.
Benefícios
Ao todo, a iniciativa visa ao implemento da tecnologia, ainda em fase de desenvolvimento, para 56 manejadores de pirarucu no Amazonas. Dalvino Gomes, de 52 anos, é um deles. Morador da comunidade Mangueira, ele conta que a principal fonte de renda é o manejo de peixes. Para ele, a rastreabilidade é esperança de melhores condições. “O projeto vai ajudar muito a gente. É um sonho, porque trabalhamos com um produto de alimentação e precisamos do selo de rastreabilidade, que vem com o pré-beneficiamento do pescado. Vai agregar valor ao nosso produto”, comemora.

Rastreabilidade de bovinos e bubalinos no Pará contra o desmatamento
O Pará, um dos principais estados da Amazônia, possui o segundo maior rebanho de bovinos do Brasil: são 26 milhões de cabeças de gado. No entanto, essa quantidade é refletida nos danos ambientais causados pela atividade - a pecuária é uma das principais causadoras do desmatamento que a região enfrenta. A solução pode estar na rastreabilidade, que começou como uma questão sanitária - 100% dos animais são controlados contra a febre aftosa -, e avançou para os ganhos sustentáveis. Atualmente, uma política pública para o melhor controle desses animais está em desenvolvimento.
Daniel Freire, presidente do Sindicato da Indústria de Carnes e Derivados do Estado do Pará (Sindicarne), detalha que as ações do setor para a mitigação dos problemas não são recentes e estão em constante evolução. “A partir de 2009, começamos a rastrear todo o gado que vai para o abate no quesito socioambiental. O Estado atrelou o Cadastro Ambiental Rural [CAR] ao Guia de Trânsito Animal [GTA]. No CAR você encontra as coordenadas geográficas da fazenda e, com isso, temos como fazer uma análise de imagem daquela propriedade, se houve desmatamento…”, explica.

Ampliação
Freire diz que a indústria já faz uma análise para saber se o gado comercializado tem origem de áreas desmatadas - a comercialização é barrada para o caso de rebanho com irregularidades -, mas a ideia é ampliar esse processo de controle para os produtores. “O desafio é fazer com que não só o gado do Pará possa ser auditável, mas aquele produtor que compra o animal do vizinho, por exemplo, ele saiba se tem um problema socioambiental. Para isso, o Pará está tentando desenvolver um sistema, que é único no mundo, de rastreabilidade do gado extensivo”, pondera.
Investimento no Pará ultrapassará os R$ 400 milhões
A política pública para o implemento da rastreabilidade de bovinos e bubalinos no Pará está em fase final de construção. Jamir Macedo, diretor-geral da Agência de Defesa Agropecuária do Estado do Pará (Adepará), avalia que o investimento na medida chega em cerca de R$ 400 milhões - preço para a aquisição das identificações dos animais, do software que será utilizado no rastreio e do deslocamento de pessoal até as produções para a coleta de dados. A expectativa é que os trabalhos se iniciem ainda no segundo semestre de 2024 e siga um cronograma para que a totalidade do gado seja identificada até o fim de 2026.
“A gente fala muito sobre a rastreabilidade com fins ambientais, mas, inicialmente, ela é uma política pública de sanidade agropecuária. O governo do estado fez um ‘plus’: instituiu um programa para que outras modalidades ambientais, fundiárias, de acesso a crédito e etc. pudessem compor e ter mais benefícios. O programa é esse grande pacote”, diz Macedo.
Com a rastreabilidade em funcionamento, a Adepará espera também alcançar mercados externos mais exigentes. “Isso vai se refletir em uma maior precificação e maior necessidade de aumentar a demanda”, completa.