No meio da ebulição do movimento ambientalista nos anos 1970, o termo "feminismo ecológico" apareceu na obra "O Feminismo ou a Morte", da filósofa e escritora francesa Françoise D'Eaubonne.
Para ela, o patriarcado e o ideal de masculinidade da época estavam diretamente ligados à explosão demográfica da Terra e à constante destruição da natureza liderada por homens, capitaneando governos ou iniciativas privadas.
Com o tempo, a ideia ganhou força à medida que feministas ao redor do mundo entenderam que as mulheres são as principais afetadas pelas mudanças climáticas. Afinal, elas acumulam funções em casa e no mundo do trabalho, cuidando da família e da comunidade, e ainda são subrepresentadas nos espaços de poder, que deveriam ser responsáveis por garantir um planeta habitável e saudável.
Não é à toa que estão surgindo cada vez mais mulheres como vozes da defesa do meio ambiente. Segundo dados da Organização das Nações Unidas (ONU), 80% das pessoas deslocadas por desastres ambientais e problemas relacionados às mudanças climáticas são do sexo feminino.
Reconhecimento
O documento final do Acordo de Paris, firmado em 2015 para mitigar a escalada da temperatura na Terra, reconheceu a necessidade de uma abordagem "adaptável ao gênero" nos ajustes às mudanças climáticas, com base "nos melhores conhecimentos científicos à disposição". E os números de alguns eventos-chave ajudam a entender como as questões de gênero estão relacionadas com as mudanças climáticas.
Em Bangladesh, por exemplo, o número de mulheres mortas pelo ciclone "Gorki", em 1991, foi nove vezes maior que o de homens.
Na Austrália, o dobro de mulheres teve que fugir para buscar segurança durante os devastadores incêndios de florestas de 2009.
Já no Quênia, elas foram as últimas a receber comida na seca ocorrida em 2016, que resultou em mais de dois milhões de famintos.
Mulheres e natureza são exploradas desde a chegada dos europeus à Amazônia
O papel das mulheres na luta pela preservação ambiental ganha ainda mais destaque em regiões historicamente oprimidas e periféricas, como o Sul Global, e, dentro dele, a América Latina e a Amazônia. A pesquisadora Júlia Maneschy, do Centro Universitário do Estado do Pará, lembra que o colonialismo fincou as garras na liberdade das mulheres na região desde que os primeiros europeus desembarcaram no até então chamado "Novo Mundo".
"As mulheres colonizadas eram vistas como uma versão alternativa da mulher branca europeia. Mesmo quando conseguiam mudar de status social, permaneciam sendo vistas como bestializadas e hiperssexualizadas. Essa percepção ainda se faz presente em relação à sexualidade, considerando que mulheres latinas, negras e indígenas são vistas como corpos a serem penetrados e violados, destituídos de direitos e dignidade inerentes", diz.
Representação
É uma visão também presente no livro "Imagens da Terra Fêmea: a América e suas Mulheres", da historiadora Mary Del Priore. "A América é uma mulher. Pelo menos assim ela aparece nas iconografias entre os séculos XVI e XVIII; o ventre opulento, o longo cabelo amarrado com conchas e plumas, as pernas musculosas, nus os seios. A representação assim construída pelos europeus traduzia um discurso que tentava se impor como concepção social sobre o novo mundo: a América, como uma bela e perigosa mulher, tinha que ser vencida e domesticada para ser explorada", diz a autora em um dos trechos do livro.
Organizações não governamentais amplificam as “vozes políticas”
A pesquisadora Júlia Maneschy, do Centro Universitário do Estado do Pará, entende que a ideia da mulher que deve ser domesticada se perpetua até hoje e delineia como o patriarcado opera nos países latino-americanos, vistos ainda como um quintal do mundo, atrasados e dependentes dos ditos países desenvolvidos.
"Consigo enxergar que a animalização desses mesmos corpos, no sentido de considerá-los como corpos não atribuídos de gênero e de direitos, também é mantida, como meio de justificar a sua violação. Mulheres e natureza, como as plantas e animais, andam sempre juntas e a forma que elas são vistas, como objetos, também. Não dotá-las de dignidade e direitos inerentes também. Assim a violência sobre elas é mantida", pontua.
Ela cita a socióloga Violeta Refkalefsky Loureiro ao lembrar que o isolamento da Amazônia propiciou as condições de subalternidade da região em relação ao resto do país.
Sendo assim, se as mulheres já são excluídas de discussões consideradas importantes, as amazônidas são ainda mais, porque a região é excluída por outras localidades do país que dominam as decisões em nível nacional.
"Além do fato de que como a região é muito explorada, essas mulheres são as que mais sofrem com a exploração indevida de minérios, nas quais há um expressivo aumento de violência sexual contra as mulheres da região e com questões de desmatamento ou implementação de grandes projetos como o da usina hidrelétrica de Belo Monte, por exemplo", afirma.
Coletivos
Apesar da dureza dos enfrentamentos aos quais mulheres são sujeitas na região, Júlia argumenta que elas souberam responder à altura, criando vozes políticas para serem representadas por meio de organizações próprias.
Ela lembra que as primeiras associações de mulheres indígenas surgiram na região na década de 1980 como a Associação das Mulheres Indígenas do Alto Rio Negro (Amarn), a Associação das Mulheres Indígenas de Taracuá, Rio Uaupés e Tiquié (Amitrut) e a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), que, em 2002, criou o Departamento de Mulheres Indígenas dentro da organização.
"Essas mulheres, verificando a necessidade de reivindicação de seus interesses, se reuniram em associações e organizações justamente para ter mais força política e para terem suas vozes ouvidas. A união traz muita força para o movimento feminista e essas mulheres souberam utilizar essa ferramenta para que se fizessem mais presentes em discussões políticas, sociais ou econômicas que envolveriam seu povo, sua cultura, costumes e, principalmente, seu território", diz Júlia.
Hoje, as mulheres estão à frente de cargos importantes do governo federal que estão diretamente relacionados ao tema, como as ministras Marina Silva, do Meio Ambiente, e Sônia Guajajara, dos Povos Indígenas, além da presidente da Fundação Nacional dos Povos Indígenas, Joênia Wapichana. Todas elas são nascidas na Amazônia.
Ecofeminismo se aproxima das lutas das mulheres quilombolas
A pesquisadora Ellen Silva, da Universidade Federal do Pará, diz que não dá para dizer que as mulheres quilombolas sejam, exatamente, ecofeministas.
Isso é porque os quilombos são muito mais antigos que o conceito. O trabalho de pesquisa dela, porém, identificou ideias que conversam entre si dentro dos dois mundos.
Ela reside no território Tambaí-Açu, no município paraense de Mocajuba, e lembra que há um histórico de lutas locais de mulheres quilombolas contra a destruição do meio ambiente.
Para Ellen, a defesa aguerrida dos rios e do direito à água, território e alimentação digna na região são demonstrações de força das mulheres na causa ambiental.
"(Um ponto) a se considerar na aproximação da luta das mulheres quilombolas com o ecofeminismo é o que se refere à luta pelo direito de produzir outras economias, outras agriculturas efetivamente sustentáveis, baseadas no que foi e é aprendido com a práxis das próprias comunidades e povos tradicionais, a exemplo do ato das mulheres quilombolas em conseguir preservar, cuidar e melhorar sementes, tornando-as guardiãs desse processo. Cultivar é uma prática cultural dos povos e comunidades tradicionais. Neste sentido, o ecofeminismo, ao defender outras formas de produzir a vida, com base nos princípios da agroecologia e economia solidária praticados pelos movimentos sociais populares, aproxima-se das lutas das mulheres quilombolas", afirma Ellen, ao lembrar o quanto isso é importante do ponto de vista da geração de emprego e renda e também de autonomia por essas mulheres, conquistadas por meio de práticas sustentáveis. "A natureza é o nosso alimento, trabalho e sobrevivência", frisa.
Trabalhadoras agrícolas são responsáveis por até 80% da produção mundial de alimentos
Dados da organização "Save the Children" revelam que as mulheres representam mais de 40% da força de trabalho agrícola e são responsáveis por até 80% da produção de alimentos.
Já a Organização das Nações Unidas estima ainda que, se as mulheres tivessem o mesmo acesso aos recursos que os homens, poderiam aumentar a produtividade de fazendas que comandam entre 20% e 30%, o que poderia elevar a produção agrícola total nos países em desenvolvimento de 2,5% a 4%.
Aproximadamente 70% do 1,3 bilhão de pessoas vivendo em condições de pobreza no mundo são mulheres, o que reforça o ecofeminismo como um propulsor da expansão da segurança alimentar.
As mulheres são ainda as chefes de família em 40% dos lares mais pobres em áreas urbanas. Já nas áreas rurais, predominam na força de trabalho mundial da produção alimentar, mas dispõem de menos de 10% das terras.
A pesquisadora Ellen Silva, da Universidade Federal do Pará, acredita que o ecofeminismo precisa ser compreendido para além da visão essencialista de que há uma aproximação natural e inerente entre mulheres e natureza.
"Essa relação busca resumir a mulher como um ser feminino, frágil e delicado, como a natureza, enquanto o céu e Deus são machos. Isso se dá de várias formas, inclusive nos salários desiguais. É uma visão essencialmente patriarcal, construindo uma relação de dependência, uma dependência da mulher em relação ao homem e da natureza em relação ao homem. Então quanto mais empobrecidas e fragilizadas, mais fácil é a exploração. Na verdade, a natureza é de onde nos alimentamos e trabalhamos. E isso precisa ser compreendido por meio da educação, que é a nossa principal ferramenta de transformação. Essa luta é de todos nós", destaca Ellen.
Debates
A pesquisadora Júlia Maneschy, do Centro Universitário do Estado do Pará, vê que a pauta ecofeminista ainda é pouco discutida e que o caminho é longo. Mas o primeiro passo já foi dado: apresentar a pauta para a sociedade.
"(É preciso que se) tenha conhecimento dessa relação existente entre violência contra mulheres e natureza. As ameaças são muitas... isso é indiscutível! Vivemos em uma sociedade pautada na exploração e dominação dos seres considerados inferiores e subordinados. Mas hoje já vemos inúmeras discussões de gênero que há dez anos não existiam, críticas ao poder patriarcal que antes não eram feitas. Então, eu acredito que podemos ser otimistas e acreditar na mudança, ainda que ela ocorra a longo prazo", afirma Júlia.