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BIOPLÁSTICO

Material produzido na Amazônia é promessa para reduzir danos à natureza

Produto feito a partir do amido de mandioca gera segurança alimentar, valorização da cadeia econômica do produto e diminuição da quantidade de plástico despejado no meio ambiente

Camila Azevedo

09/08/2024

Os plásticos derivados do petróleo utilizados no dia a dia levam mais de 400 anos para serem decompostos pela natureza. Um tempo tão longo de degradação acarreta diversos problemas, como a poluição do meio ambiente, morte de animais, contaminação de alimentos e a consequente intoxicação da população - retratos do quanto a natureza não se preparou para enfrentar um inimigo tão forte e presente na maioria dos materiais fabricados descartados. No caso da Amazônia, o cenário ganha um agravante: a falta de saneamento adequado. No bioma, cerca de 70% das cidades carecem de um serviço de esgoto eficaz.

Uma estimativa de pesquisadores locais aponta que a bacia hidrográfica amazônica é a segunda mais poluída do mundo, uma vez que, por ano, 182 mil toneladas de plástico são despejadas no local. No entanto, uma solução inovadora e pioneira tem se mostrado como uma esperança frente ao problema: a produção de bioplásticos com base em alimentos típicos da região, nesse caso, o amido de mandioca. A iniciativa é do Laboratório de Biossoluções e Bioplásticos da Amazônia (LABA), da Universidade Federal do Pará (UFPA), e recobre grãos, como a pimenta-do-reino.

O tempo total de decomposição desse material sustentável é de 180 dias - uma redução de mais de 99% em relação aos demais que têm o petróleo na fabricação. Ele é utilizado na proteção de alimentos contra pragas externas - fungos, por exemplo - que possam prejudicar o consumidor final e trazer prejuízos econômicos. Assim, além de gerar segurança, o bioplástico também contribui para a valorização da cadeia de produção do amido e ajuda a reduzir a quantidade de plástico despejado no meio ambiente. O processo completo já foi patenteado pelos pesquisadores da UFPA.

Resultados

Uma série de estudos foi feita para alcançar o resultado. Antes do prazo previsto para a entrega, os pesquisadores do LABA conseguiram uma boa estabilidade do bioplástico para que fosse revestido na pimenta-do-reino. Davi Brasil, professor doutor da UFPA e coordenador do Laboratório, explica que o trabalho consistiu em manter as características naturais que compõem o material para encontrar um aspecto transparente, ou seja, que não mudasse visualmente o alimento. A aplicação é feita em um equipamento que garante total cobertura.

20240728XATUAMAZONBIOPLASTICO - Davi Brasil - Professor e Coordenador do Laboratório de Biossoluções e Bioplásticos da Amazônia Foto Carmem Helena  (8).JPG
“A gente quer que isso chegue para o consumidor, para a sociedade. É uma entrega que todo professor universitário pensa ao fazer sua pesquisa, que isso venha, de alguma forma, a ser valorizado pela sociedade, traga benefícios”, diz o professor (Foto: Carmem Helena / O Liberal)

Isso é fundamental para um dos objetivos do projeto: evitar o crescimento das pragas e proteger completamente o produto. Os pesquisadores pensaram, ainda, no aroma que seria exalado. “Durante o processo, a gente tem a secagem do material e a extração de um pouco do óleo essencial que fica impregnado na própria película, dando um aroma diferenciado. Quando a gente sente o cheiro, ele fica bem pronunciado, sendo organolépticamente importante para fins alimentícios”, esclarece.

Visibilidade

A importância do bioplástico, destacada pelo professor, é considerada em todos os aspectos, desde a valorização da economia local, até a função ambiental que o bioplástico pode desempenhar. “Porque a gente está trabalhando com materiais que, se forem descartados na natureza, vão ter um tempo de degradação muito pequeno, quando comparado com aqueles plásticos derivados do petróleo. A gente sabe que não tem uma enzima natural que consiga destruir aquilo rapidamente, diferente dos produtos naturais, porque a natureza é muito inteligente”, ressalta.

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Uma solução inovadora e pioneira tem se mostrado como uma esperança frente ao problema: a produção de bioplásticos com base em alimentos típicos da região, nesse caso, o amido de mandioca (Foto: Carmem Helena / O Liberal)

Agora, com o processo de produção desenvolvido já patenteado, os pesquisadores buscam ampliar os rumos que o produto pode alcançar dentro do mercado. “A gente quer que isso chegue para o consumidor, para a sociedade. É uma entrega que todo professor universitário pensa ao fazer sua pesquisa, que isso venha, de alguma forma, a ser valorizado pela sociedade, traga benefícios. Os benefícios que a gente está trazendo são a preservação por um tempo maior [dos alimentos revestidos pelo bioplástico], valorização do nosso material regional e a preservação ambiental”, completa o coordenador do LABA.

Caroço de açaí é usado para novas funcionalidades do bioplástico

Davi é orientador da tese de doutorado que teve o bioplástico de amido de mandioca como resultado. A ideia inicial é do doutor da Faculdade de Química da UFPA, José Rêgo. Antes, eles buscavam apenas o revestimento da pimenta-do-reino com o bioplástico de amido, visando aumentar o tempo de prateleira dos alimentos. Agora, as novas pesquisas se debruçam em encontrar diferentes funcionalidades para o produto, fazendo uso do caroço de açaí. A expectativa é que a incorporação gere plásticos mais firmes para a substituição de diversos produtos.

José explica que essa mistura é fundamental para que o bioplástico seja resistente. “Estamos funcionalizando o bioplástico de amido, colocando características boas que vêm da semente de açaí. É difícil substituir o plástico de petróleo porque ele é inerte. Não tem organismo que ataque ele, nem uma enzima que o degrade. Se tenho bioplástico de origem natural, ele tem a tendência de ser atacado por organismos que atacariam normalmente o amido. Então, tenho que colocar alguma coisa que iniba essa propriedade. Em função da riqueza de taninos, que dão o gosto [ao produto]”, destaca.

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“Estamos funcionalizando o bioplástico de amido, colocando características boas que vêm da semente de açaí. É difícil substituir o plástico de petróleo porque ele é inerte”, diz José (Foto: Carmem Helena / O Liberal)

Uso na medicina

Para além dos fins alimentícios que o bioplástico tem sido pensado, as funcionalidades também podem alcançar a área da saúde. José detalha que uma propriedade cicatrizante do caroço de açaí está sendo estudada, iniciativa que pode proporcionar aceleração no processo. “Várias pessoas, vários laboratórios, vários pesquisadores no mundo estão estudando as propriedades naturais, então, vamos imaginar que ele tivesse uma propriedade cicatrizante, eu poderia envolver aquele corte com um biofilme de amido funcionalizado com as substâncias que a de vêm do caroço de açaí”, adiciona.

Microplástico é problema recorrente na Amazônia

O bioplástico produzido na UFPA pode ser solução para outro problema: os microplásticos - partículas de plástico que possuem duas origens, o que já é fabricado em tamanho pequeno pela indústria e o que é derivado de um processo de fragmentação. Para ganharem a definição, é preciso ter menos de cinco milímetros. Alguns podem chegar a ser menores que uma bactéria. Segundo José Eduardo Martinelli Filho, professor do Instituto de Geociências da UFPA, quanto menor, maior o problema.

O acúmulo dos microplásticos em células pode ser uma realidade, causando danos para seres humanos e animais - alguns estudos já indicam quais são os prejuízos causados por essas partículas. Martinelli Filho explica que a maioria desses materiais são atóxicos, ou seja, não fazem mal. Porém, o incremento de substância neles podem os tornar um perigo ainda maior. “Principalmente os formados por polímeros, eles podem causar algum efeito. Um exemplo são as redes de pesca. O nylon, em si, não é tóxico, mas a tinta que dá cor é potencialmente prejudicial”.

Danos

Conforme estudos, entre os prejudicados pela presença de plásticos estão os pássaros. O Japu, da mesma família dos corvos, encontrado na Amazônia - em Salinas e Algodoal, no Pará, por exemplo -, é uma das espécies que vêm sofrendo esses efeitos. “Eles estão usando os plásticos para construir ninhos. Usam material de pesca e lixo descartados em praia, porém, isso pode ser tóxico para as aves, porque possuem corante com níveis de toxicidade em sua composição. O ovo chocado [nos ninhos] está possivelmente exposto a isso e tem efeitos, pois, desde o ovo até o filhote, eles ficam expostos”, pontua o professor.

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“Eles estão usando os plásticos para construir ninhos. Usam material de pesca e lixo descartados em praia, porém, isso pode ser tóxico para as aves, porque possuem corante com níveis de toxicidade em sua composição”, adiciona o professor (Foto: Arquivo pessoal / Adrielle Caroline Lopes)

“Os microplásticos, quando ficam muito tempo na água, meses, anos e décadas, podem absorver uma série de contaminantes químicos, metais pesados, bactérias que podem ser patogênicas e crescer. Então, quanto mais tempo, mais perigoso ele se torna. Quanto mais envelhece no fundo do sedimento, rio, mar ou água, existe o risco maior de se tornar mais tóxico, porque pode absorver contaminantes que estão na água, pode absorver pesticidas… A pesquisa em seres humanos é recente. A partícula tem sido encontrada em diferentes tecidos e órgãos, leite materno, sangue, placenta, placas de gordura no coração…”, afirma.

Microplástico está espalhado por diversas partes do bioma

Os estudos referentes aos danos que o microplástico pode causar na Amazônia são recentes e estão ganhando cada vez mais força. Em 2018, um trabalho para analisar a ingestão das partículas por peixes do estuário do bioma foi realizado. Já em 2020, foi desenvolvido uma pesquisa com as anêmonas do mar, animais considerados potenciais bioindicadores de poluição - elas não são seletivas e ingerem o que está por perto. A espécie é encontrada em São Caetano, Algodoal e Salinas, cidades do Pará, tendo a presença estendida até o Uruguai, país da América Latina.

Os igapós do bioma também acumulam as partículas. Embora as pesquisas na região sejam acompanhadas de várias dificuldades, como o acesso aos lugares, já é possível ter ideia de que, em pequenas ou grandes quantidades, o microplástico está presente em diversos pontos da Amazônia. “O que a gente sabe, é que o microplástico foi encontrado. Isso em sedimentos, como areia de praia, na lama do fundo do rio, como o Amazonas, em canais urbanos, como em Macapá, na Baía do Guajará, também. A maior quantidade está na margem direita, próximo a Belém. Nas ilhas, tem uma quantidade menor”, finaliza José.

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Uma estimativa de pesquisadores locais aponta que a bacia hidrográfica amazônica é a segunda mais poluída do mundo, uma vez que, por ano, 182 mil toneladas de plástico são despejadas no local (Foto: Michael Dantas / AFP)

Sobrevivência

Outros impactos dos microplásticos nas espécies que vivem na Amazônia podem ser observados por meio de um estudo experimental feito pela doutora em zoologia Viviane Firmino, do Laboratório de Ecologia e Conservação da UFPA. A pesquisa apontou que insetos aquáticos importantes no funcionamento dos rios amazônicos podem sofrer danos também. Conhecidos como fragmentadores, eles habitam pequenos riachos do bioma e consomem a matéria orgânica - como folhas e galhos -, promovendo, com isso, o fluxo de energia dentro dos ambientes. Peixes e outros invertebrados fazem a ingestão do material.

A pesquisa foi feita em ambiente controlado, com o objetivo de preencher uma lacuna no conhecimento. “O aumento das concentrações de microplásticos reduz a sobrevivência dos fragmentadores e reduz o risco de mortalidade. Contudo, a gente não observou um efeito independente ou isolado dos microplásticos no consumo do fragmentador. Nesse resultado, os microplásticos não afetam o consumo, mas interagem com as mudanças climáticas e podem levar à redução dele. Se o fragmentador morre, a função que ele desempenha no ecossistema não vai mais ser desempenhada”, diz Viviane.