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PROTEÇÃO

Em defesa da fauna silvestre

Biólogos, veterinários e outros profissionais dedicam-se a resgatar, proteger e tentar proporcionar segurança e qualidade de vida a animais da floresta que são impactados pelo avanço da presença humana

Alice Martins

30/12/2022

A Amazônia é o bioma brasileiro com maior número de espécies de animais, abrigando  73% das espécies de mamíferos e 80% das aves do país, de acordo com o Ministério do Meio Ambiente. A riqueza da fauna, ainda hoje, não é totalmente conhecida, mas, segundo informações da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), pesquisadores calculam que podem existir cerca de 30 milhões de espécies animais.

Jacarés, cobras, onças e outras espécies da vida selvagem, em geral, não fazem parte do cenário urbano - à exceção de zoológicos e parques. No entanto, em razão de muitas cidades serem envoltas por matas e rios e do crescimento desordenado dessas áreas, ocasionalmente, animais silvestres acabam adentrando no espaço urbano, trazendo riscos tanto para a saúde desses bichos quanto para a do ser humano. Quando isso acontece, o que é feito?

A responsabilidade de resgate desses animais é compartilhada entre as esferas municipal, estadual e federal. Em todo o país, a Polícia Militar possui um papel estratégico nesse serviço - apenas no Pará, por exemplo, foram entregues, voluntariamente, para o Batalhão de Polícia Ambiental 176 animais, e resgatados 1398, em 2022. As entregas voluntárias ocorrem quando a própria população encontra ou possui em casa um animal silvestre e decide entregá-lo às autoridades - sem implicação de qualquer ocorrência judicial ou criminal. Já um resgate acontece a partir de denúncias, quando um animal está em uma situação de perigo, seja em cativeiro ou qualquer outro local fora de seu habitat natural. A pena para quem vende ou mantém em cativeiro um animal silvestre de forma ilegal é de seis meses a um ano de detenção, além de multa.

Em cada estado, há outras instituições que oferecem apoio para a tarefa. Em Manaus, capital do Amazonas, o Instituto de Proteção Ambiental do Amazonas (IPAAM) desempenha a atividade em suporte à atuação da PM. Desde 2014, o IPAAM já resgatou quase 5 mil animais em Manaus e arredores - sendo 600 apenas em 2022.

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Felipe Atem é um dos estagiários do Instituto de Proteção Ambiental do Amazonas - Foto: Arquivo pessoal 

Prática acadêmica - Os resgates são também um espaço de prática profissional para estudantes universitários. Na equipe do IPAAM, constam cinco estagiários (quatro de Biologia e uma de Medicina Veterinária), que já tiveram alguma experiência com a fauna silvestre e recebem, no Instituto, um treinamento para aprender a lidar com o resgate desse tipo de animal. Felipe Atem, estudante de Ciências Biológicas da Universidade Federal do Amazonas, é um deles e diz que a oportunidade tem sido uma janela de aprendizado sobre diversos aspectos, desde entender melhor como funciona a gestão pública voltada à fauna a conhecer os métodos de captura de animais e como a expansão da cidade afeta a floresta. “Também é interessante observar a relação das pessoas com a fauna e é uma oportunidade de conversar com a população e, de certo, também ensinar sobre a importância dos animais com que elas se deparam”, observa.

São os acadêmicos que vão a campo quando o IPAAM recebe uma denúncia pelo telefone (92) 2123-6739 (segunda à sexta-feira, das 8h às 16h). "Geralmente acontece quando o animal entra em uma residência ou quando ele está machucado, como em casos de atropelamento, ou aves e gaviões atingidos por linha de cerol [usada para empinar pipas], o que é ilegal", explica Marcelo Garcia, gerente de Fauna do Instituto.

O IPAAM troca informações e divide tarefas na capital com o Batalhão de Polícia Ambiental do Amazonas, auxiliando também no encaminhamento de animais resgatados nos municípios do interior do estado que não têm mais condições de retornar à natureza e precisam, então, encontrar um lar em um zoológico, por exemplo. É o que acontece, na maioria dos casos, quando os animais são resgatados em cativeiro e perdem características do seu comportamento natural da espécie, ou quando filhotes órfãos são encontrados, ou ainda no caso de primatas que, por viverem em bandos, depois de serem isolados de seu local de origem, têm dificuldades em se integrar e serem aceitos por um novo grupo.

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Profissionais de diferentes especialidades dedicam-se a cuidar e, quando possível,  reintroduzir os animais na natureza - Foto: Lenine Martins/ Sesp-MT

Desconhecimento e questão cultural contribuem para criação ilegal

Segundo a percepção de Marcelo Garcia, do IPAAM, falta maior conscientização sobre a criação e venda de animais silvestres na Amazônia - o que, no Brasil, são práticas ilegais. "Ainda é muito comum ver alguém que tenha um papagaio ou um macaco em casa, sem nem imaginar que não é permitido”, observa. Sinal disso é que até hoje é possível encontrar facilmente, inclusive nas capitais dos estados, animais sendo vendidos ilegalmente nas feiras livres, principalmente de aves, como curió, canário, sabiá e periquito verde.

A criação amadora ou comercial de animal silvestre, para fins de estimação, só é permitida no país quando o espécime é adquirido em criadouro ou estabelecimento comercial autorizado pelo Ibama ou pelo órgão estadual responsável. A pessoa interessada em ter o animal também deve se cadastrar junto à Secretaria de Meio Ambiente de seu estado antes de levar o animal para o ambiente doméstico. Apenas não são considerados silvestres as espécies listadas na portaria nº 2489/2019 do Ibama, que alterou o parágrafo único do artigo 1º da portaria anterior, de julho de 1998, excetuando peixes e invertebrados aquáticos não listados nos Apêndices da Convenção sobre Comércio Internacional das Espécies da Flora e Fauna Selvagens em Perigo de Extinção (Cites) e os animais isentos de controle para fins de operacionalização do Ibama, conforme Anexo I da presente Portaria. A lista está disponível para consulta online. Um exemplo é o marreco e a calopsita, que podem ser adquiridos e criados sem necessidade de registro no órgão.

O gerente de Fauna do IPAAM acredita que a tendência é que esse costume de criar animal silvestre em casa, ilegalmente, mude conforme o passar das gerações, graças ao aumento da consciência ecológica dos mais jovens. "Aqui, percebemos que os jovens não querem mais comer quelônios, algo que é bem frequente entre os mais velhos. Existe uma consciência ecológica maior. Com o tempo, maior educação ambiental e conhecimento da lei, a tendência é parar esse tipo de prática", pondera.

Orientação - Ao se deparar com um animal silvestre fora de seu hábitat natural, a recomendação geral é manter distância e acionar o Batalhão de Polícia Ambiental, ou mesmo o serviço de urgência 190, que pode direcionar para o órgão competente. Marcelo Garcia orienta que, se a visualização ocorrer à distância e em segurança, é sempre bom tentar fazer fotos para compartilhar com a equipe especializada, para que ela já possa ter melhor entendimento do animal que precisará resgatar e melhor oriente a pessoa que fez o contato.

Desmatamento empurra animais para fora de seu hábitat natural

Marcelo Garcia, do IPAAM, alerta para o impacto que o desmatamento tem sobre os animais silvestres. Segundo ele, além de considerar a grande perda de plantas e os drásticos danos que são obtidos para o meio ambiente, clima e até mesmo a saúde dos seres humanos, quando há desmatamento a fauna é gravemente atingida.

"A floresta é recheada de animais, desde insetos a mamíferos e aves. Quando não morrem no desmatamento ou incêndio florestal, eles precisam migrar, trazendo impactos em outros ambientes", reforça. Assim, podem acabar invadindo uma floresta vizinha e trazer um desequilíbrio na cadeia alimentar dali ou mesmo ingressando no espaço urbano.

Dados do Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon), divulgados no último dia 20, mostram que em novembro deste ano o desmatamento da Amazônia aumentou 23% em comparação com o mesmo período de 2021. Ainda segundo o Imazon, o acumulado, desde janeiro deste ano, chegou a 10.286 km² desmatados na região, a pior marca para o período em 15 anos.

Animais resgatados ganham segunda chance no Pará

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O veterinário Nereston Camargo cuida dos animais do bioparque com muito carinho e respeito - Foto: Anderson Souza

O Bioparque Vale, localizado no município de Parauapebas (PA), é um dos locais que recebem e reabilitam animais resgatados da natureza. Aqueles que estão aptos, retornam ao seu hábitat natural; os que ficaram com algum tipo de limitação ou incapacidade para voltar à natureza, passam a ser moradores do parque. Criado em 1985, o espaço conta com 30 hectares de floresta nativa e é aberto à visitação, onde os transeuntes podem conhecer diversas espécies de fauna e flora da Amazônia e terem uma experiência de imersão no bioma, visualizando animais como onças, javalis, gavião-real (harpia), dentre outros.

De janeiro a novembro de 2022, o Bioparque recebeu 68 animais, dos quais 20 foram reintroduzidos à natureza. Aproximadamente 360 animais são cuidados no local, distribuídos em mais de 70 espécies de aves, mamíferos e répteis, incluindo tanto aqueles que foram resgatados, quanto que foram transferidos de outros zoológicos e os que nasceram no Bioparque.

Na ala veterinária do Bioparque, onde visitantes não podem ingressar, constantemente chegam novos animais. O veterinário Nereston Camargo trabalha há quatro anos no local e cuida dos bichos com muito carinho e respeito. "Nosso objetivo maior é que eles preservem ao máximo seu comportamento natural, seja voltando ao seu hábitat ou permanecendo no parque", explica.

Nereston aponta como exemplo um filhote de veado, que foi encontrado em uma zona rural de Belém e levado até o Bioparque. "Quando chegou, ele era muito pequeno e fraquinho. Nós queremos reintroduzir ele na natureza, deixar livre dentro da área do parque, porque é assim a vida normal que ele teria. Mas, como ele está sem a mãe, precisa ficar conosco para se alimentar até o período que seria de desmame, e poder ser independente na floresta", esclarece o veterinário.

Por não terem as mães, seja qual for a espécie, a equipe veterinária precisa encontrar uma alimentação substituta para os filhotes, como leite de cabra ou mesmo de vaca, dar suplementação vitamínica, quando necessário, e desempenhar papéis que seriam da matriarca, como a limpeza dos pequenos animais. No entanto, tudo é feito com o máximo de rigor, utilizando luvas e mantendo a distância sempre que possível, para proteger tanto a saúde dos bichos quanto do ser humano e não intervir no comportamento natural do animal. "Se a gente fosse acariciar o tempo todo, tratar como animal doméstico, um animal silvestre poderia perder suas características normais de como se alimentar, como dormir, como agir. Já tivemos casos de receber um macaco que não sabia como usar a cauda, porque foi criado como doméstico, e isso é muito danoso para o animal, porque não consegue socializar com outros da mesma espécie e tem mais dificuldades de sobrevivência e de reprodução", acrescenta Camargo.

Aproximação - Em alguns casos, quando chega um filhote órfão e há uma fêmea adulta que já vive no Bioparque, da mesma espécie, é possível fazer uma aproximação para que ela "adote" o pequeno. Isso também é feito e monitorado constantemente pela equipe de profissionais, que introduzem aos poucos e avaliam como está essa interação entre os dois espécimes. Foi o caso de um macaco-aranha-da-cara-preta, de cerca de um ano de idade, que foi aproximado a uma fêmea e, com o tempo, ela passou a adotar uma postura materna, cuidando do filhote naturalmente, fazendo a limpeza, protegendo, ficando por perto. "Para nós, é uma felicidade muito grande quando essa aproximação dá certo. O objetivo do Bioparque é preservar as espécies nativas da Amazônia e essa convivência entre animais da mesma espécie é fundamental para garantir seu bem-estar”, ressalta o veterinário.

Ibama arrecada bichinhos de pelúcia para ajudar filhotes órfãos

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Filhotes resgatados ficam mais tranquilos e seguros com bichinhos de pelúcia - Foto: Divulgação Ibama

Quando a reportagem do Liberal Amazon esteve no Bioparque da Vale, no Pará, havia um membro recém-chegado: um filhote de macaco da espécie Bugio (também conhecido como guariba), de aproximadamente 2 meses de idade, que Nereston Camargo cuidou e deu a mamadeira com muito zelo. Um aspecto que chamou atenção foi que o pequeno macaco não desgrudava de seu cobertor (enrolado como uma trouxinha, que o animal abraçava) ou seu bichinho de pelúcia. Isso, de acordo com o veterinário, é uma forma de simular o acalento que o animal receberia da mãe, na vida selvagem: "Ele precisa desse aconchego não só pelo aspecto emocional, mas até mesmo pelo calor como de um abraço animal e ele fica mais tranquilo, sente-se mais seguro com o cobertor, toalha ou bichinho de pelúcia", explica.

Isso acontece também com filhotes de diversas outras espécies que precisam desse acalento quando são resgatados órfãos, como preguiças, corujas, tamanduás e capivaras. E, todos os anos, o Ibama, por meio do Centro de Triagens de Animais (Cetas), acolhe centenas de filhotes acidentados ou órfãos, que precisam de cuidado intensivo.

Por isso, o Ibama lançou em novembro deste ano (sem prazo para encerrar) uma campanha solidária com o objetivo de recolher pelúcias, toalhas e meias com ou sem par. A campanha é nacional e as doações podem ser entregues nos Cetas espalhados pelo Brasil.

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Veja, abaixo, endereços dos Cetas do Ibama, na Amazônia, para entregar suas doações de bichos de pelúcia, toalhas e meias para animais órfãos

  • Rio Branco (AC): rua Hidelfonso Cordeiro, Vila Acre, 69909-808 - cetas.ac@ibama.gov.br/ Tel: (68) 3211-1719
  • Macapá (AP): avenida do Pinhal n° 408, Brasil Novo, 68909-329 - cetas.ap@ibama.gov.br / Tel: (96) 98408-4944
  • Manaus (AM): avenida 1, Distrito Industrial, 69075-830 - cetas.am@ibama.gov.br / Tel: (92) 3878-7100 e (92) 3878-7129
  • São Luís (MA): rua do Horto Florestal s/nº, Jardim São Cristovão 2, 65052-152 - cetas.ma@ibama.gov.br / Tel: (98) 3244-3133 e (98) 8189-8460
  • Benevides (PA): endereço: Rua João Coelho, s/nº (antiga estrada do Maratá), 68795-000 / Tel: (91) 3210-4775
  • Porto Velho (RO): avenida Governador Jorge Teixeira, nº 3559, Bairro Costa e Silva, 76803-599 - cetas.ro@ibama.gov.br / Tel: (69) 3217-2700
  • Boa Vista (RR): rua Andrômeda, s/nº, bairro Cidade Satélite, Cep: 69317-450 - cetas.rr@ibama.gov.br / Tel: (95) 3625-0812