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PROTAGONISMO

COP30: Amazônidas retomam lugar nos debates

Escolha da capital paraense para a realização da COP 30 deve colocar indígenas, quilombolas e ribeirinhos no centro das discussões pela primeira vez

Eduardo Laviano

09/06/2023

Anunciada como sede da 30ª Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (COP 30) pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, Belém deve atrair as atenções do mundo em novembro de 2025, quando líderes mundiais estarão na capital paraense para debater medidas para evitar os prognósticos preocupantes relacionados ao aquecimento global e aos desastres ambientais relacionados à degradação dos ecossistemas terrestres. E um desses ecossistemas é justamente a Amazônia, tão debatida ao redor do planeta sem a presença de amazônidas. A expectativa é que, desta vez, seja diferente.


"Receber um evento mundial desse no nosso país faz com que os povos originários do Brasil tenham mais facilidade de participar. Quando é feito fora do país, requer muito dinheiro para que sejamos incluídos nos debates. Uma COP aqui permitiria que pudéssemos falar o que consideramos importante", afirma Reinaldo Oliveira, da etnia Macuxi, que atua como gestor territorial na terra indígena São Marcos, no estado de Roraima.

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“Vejo os jovens da aldeia acompanhando muito o movimento indígena e isso me anima muito para a COP 30", diz Reinaldo Oliveira (Arquivo pessoal)


Oliveira acredita que a Conferência pode dar projeção internacional para a causa indígena no Brasil. Ele lembra que o futuro da preservação das florestas depende da proteção dos povos originários, que são os maiores defensores da floresta em pé, mas que estão sendo cada vez mais acuados por ameaças à demarcação de territórios que transitam no Congresso Nacional, como o Marco Temporal.


"Há muitos interesses, de vários segmentos, que discutem a redução das terras indígenas no Brasil sem a devida legitimidade, mas que possuem vozes muito amplificadas e são mais ouvidos. Há falta de contato da sociedade com as necessidades dos povos indígenas e com as necessidades da floresta e dos rios. E isso se reflete nas decisões do Congresso. Pouco disso está em evidência internacionalmente e precisamos nos articular para garantir que esta pauta será debatida em profundidade e que medidas serão tomadas. Vejo os jovens da aldeia acompanhando muito o movimento indígena e isso me anima muito para a COP 30. É uma educação diferenciada e social que precisamos fomentar para chegarmos até a Conferência fortes, unidos", afirma.

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“A Amazônia é pauta prioritária para as mudanças climáticas, então o principal tema deve ser o povo que mora aqui”, diz Luana Kumaruara (Leonardo Molino/Jornalistas Livres)


A antropóloga Luana Kumaruara, da terra indígena de mesmo nome localizada no oeste do Pará, vê que os esforços de lideranças indígenas para participarem de edições anteriores da Conferência valeram a pena. Ela espera ver não só os indígenas assumindo protagonismo, mas também os ribeirinhos e quilombolas. Ela defende ainda discussões profundas sobre bioeconomia e governança para a vigilância dos territórios, que devem incluir mais brigadas contra incêndios e desmatamento, além da proteção de lideranças locais, que vivem sob ameaças de morte.


"A Amazônia é pauta prioritária para as mudanças climáticas, então o principal tema deve ser o povo que mora aqui. Precisamos estar incluídos nas ações efetivas para manter a floresta em pé. Isso nunca é dialogado e pensado com a gente, então agora chegou a hora. Muitos projetos ao longo da história foram implantados aqui de forma alheia à realidade do povo, mas hoje somos protagonistas de nossas histórias e vamos quebrar essa invisibilidade que nos foi imposta ao longo dos últimos séculos", diz.

Evento lançará luz sobre problemas, até então, domésticos

Leonardo Barros Soares lembra que o Brasil é uma potência ambiental e, por isso, precisa puxar para si as discussões acerca do tema. Doutor em ciências políticas e professor da Universidade Federal de Viçosa, ele lembra que a Eco-92, no Rio de Janeiro, reposicionou o Brasil mundialmente em uma época em que as demandas ambientais eram menos explícitas e debatidas, além de menos complexas. Agora, em um mundo cada vez mais globalizado e bem informado, o país precisará equilibrar temas mundiais com temas domésticos se quiser se transformar numa liderança a ser seguida.


"A questão é: como estaremos até lá? O Brasil tem questões que se vinculam diretamente às mudanças climáticas e emissões de gases poluentes ligados ao desmatamento e à pecuária extensiva. Temos visto no Congresso uma demonstração de força da bancada ruralista. A classe política brasileira é fortemente calcada na concentração fundiária, um problema congênito de formação nacional. É uma política doméstica dominada por grupos do agronegócio, da pecuária e da mineração, atividades emissoras de gases poluentes. Esse grupo vai estar às voltas com todo o escrutínio internacional que irá ser reforçado. Acho que os observadores ficarão bem interessados de ver como o Pará, que se apresentou como um estado líder de bioeconomia, será questionado em relação ao garimpo ilegal, forte na região no Tapajós, e ao desmatamento das terras indígenas no sul do Pará. São questões domésticas pouco vistas pelo público internacional e que agora serão analisadas no detalhe", afirma.

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Leonardo Barros Soares lembra que o Brasil é uma potência ambiental e, por isso, precisa puxar para si as discussões acerca do tema (Arquivo pessoal)


Soares destaca que este tipo de evento costuma incentivar ações concretas dos governos anfitriões, como foi o caso da Eco-92, que fez do governo de Fernando Collor de Mello o recordista de demarcação de terras indígenas no Brasil, incluindo o território Yanomami, com 9,6 milhões de hectares. Ele está curioso para saber se o fenômeno irá se repetir, mas pontua que apesar da pressão internacional poder muito, ela não pode tudo.


O professor também lembra que a presença de indígenas nas conferências tem sido cada vez mais frequente e que uma COP em Belém deve ser ápice dessa participação.


"As conferências têm trazido metas de redução de emissões de gases para conter o aumento da temperatura global, mas meta climática sem meta demarcatória é golpe. Nós sabemos que as terras indígenas são as que conseguem manter o bioma e o ecossistema mais equilibrados, mas o Brasil não consegue se comprometer com uma meta de demarcação, que seria uma estratégia certeira no combate ao desmatamento. A questão da descarbonização e da sustentabilidade do agronegócio é importante, mas nossa política vai no sentido contrário. Nossas questões são domésticas, seculares, como a questão fundiária, relacionada a problemas antigos de exploração desregrada do território com pessoas poderosas que se beneficiam e muito desse cenário. São ganhos concentrados em poucas mãos, mas de prejuízo compartilhado com milhões de pessoas. Espero que a COP trabalhe para promover políticas públicas que equilibrem este cenário", argumenta.

Países desenvolvidos precisam apoiar o Sul Global

A doutora em antropologia social Helena Dolabela avalia que um evento desta magnitude no Brasil tem dois significados: o primeiro é de retomar o protagonismo brasileiro na agenda climática e ambiental, um papel importante que foi se desfazendo nos últimos anos. O segundo significado é que corrobora uma tendência de inversão da lógica que privilegia o Norte Global, dos países desenvolvidos, em detrimento do Sul Global, dos países mais pobres e ainda em desenvolvimento.


"É um ponto importante no sentido de reconhecer e dar mais espaço aos países do Sul Global, pois somos nós os países que mais sofrem com os efeitos e consequências da crise climática, seja por falta de políticas públicas, de infraestrutura ou de recursos. Precisamos ocupar este espaço e fortalecer uma agenda de justiça climática que reconheça a necessidade de um equilíbrio histórico, já que os países desenvolvidos foram os que mais contribuíram para o aquecimento global e os efeitos que vemos hoje. Então, eles devem propor medidas e estar abertos ao diálogo", comenta.


"Os impactos se mostram mais graves aqui na medida em que são países que passaram por processos históricos de vulnerabilização, com áreas ambientalmente frágeis que são ocupadas por populações de baixa renda e com um recorte étnico racial de pessoas historicamente excluídas. Isso tudo precisa aparecer quando se realiza uma COP, pois são questões que não são vistas pelo Norte Global. São desafios atuais e que precisam ser contextualizados", afirma ela, ao citar as enchentes que mataram mais de mil pessoas no Paquistão em 2022, e também os deslizamentos de terra no litoral norte de São Paulo, no mesmo ano.

Pauta deve incluir ações contra males que já não podem ser evitados

Para o engenheiro florestal e mestre em desenvolvimento local na Amazônia, Wendell Andrade, o Brasil não pode incorrer em violações de direitos humanos decorrentes do afrouxamento de leis ambientais e territoriais. Ele lembra que enquanto o avanço do desmatamento e a perda de biodiversidade já significam forte prejuízo econômico ao agronegócio brasileiro, os mesmos problemas são definidores de vida ou morte para populações vulneráveis, como indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais.

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Wendell Andrade: pauta deve incluir ações contra males que já não podem ser evitados


Andrade estima que os três eixos temáticos da COP serão a redução de emissões de gases de efeito estufa, que traz vários assuntos a reboque, como energias renováveis e controle definitivo do desmatamento na Amazônia, África e sudeste Asiático; a pactuação de uma estratégia de adaptação climática, um conjunto de ações que devem ser tomadas para preparar as cidades para os efeitos do que já não é mais possível evitar; e, por fim, aprofundar o debate de financiamento de ações climáticas que sejam capazes de estimular o desenvolvimento de nações com impactos ambientais mínimos.


Para Wendell, este terceiro tópico também abraça a transferência de tecnologias de países desenvolvidos para países subdesenvolvidos, a fim de potencializar o relacionamento entre Norte e Sul do planeta rumo à transição energética até a emissão zero.


Outra pauta importante que precisa ressurgir, avalia, é a das Unidades de Conservação (UCs). Na opinião de Andrade, elas são a melhor estratégia que o Brasil encontrou nos últimos 50 anos para garantir a manutenção do patrimônio ambiental do país.


"Por último, mas não menos importante, temos que lembrar das pautas de mobilidade urbana e de resíduos sólidos, duas com 'jeitão' de urbana, mas que afetam a todos, sem escapatória. Na medida em que nossa locomoção é cada vez mais caótica e nossos meios de transporte seguem poluindo pesadamente, também nunca resolvemos nossa relação com os resíduos que produzimos. O brasileiro, em geral, acha que o ‘lixo’ some quando ele é recolhido na porta de casa. É preciso aproveitar o holofote da COP desde já para levantar estes temas. É a vida de cada um ali. Não é algo distante, é real", afirma.