Thiago Gomes/O Liberal
SAÚDE E CIÊNCIA

Amazônia: um cenário propício ao estudo dos mosquitos

Pesquisadores da Amazônia mantêm tradição iniciada em 1901 pelo zoólogo suíço Emílio Goeldi e fazem descobertas importantes sobre os vetores de doenças como febre amarela e dengue

Eduardo Laviano

26/05/2023

Foi bem no início do século 20 que a ciência e a saúde pública começaram a olhar com mais atenção para os insetos, mosquitos e as doenças transmitidas por eles. Na Amazônia, quem liderou o movimento foi o zoólogo suíço Emílio Goeldi (1859-1917), que atuou como diretor do Museu Paraense de História Natural e Etnografia, em Belém, e é autor de vários trabalhos sobre os mosquitos amazônicos.


Goeldi começou a estudar os mosquitos amazônicos em 1901, momento em que o tema vivia certa efervescência graças à confirmação, em Cuba, de que a febre amarela era uma doença transmitida por mosquitos. Foi assim que a chamada "teoria dos mosquitos" começou a ganhar força. O que era apenas uma hipótese começou a suscitar curiosidade ao redor do mundo. No caso da febre amarela, os mosquitos foram postos sob suspeita ainda em 1881, pelo cubano Carlos Juan Finlay, que já defendia que a doença "misteriosa" tinha origem em um agente que não dependia do doente nem do elemento morbígeno: o mosquito. A teoria alinhava-se às pesquisas conduzidas sobretudo por médicos e bacteriologistas ingleses e alemães desde 1860.

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Pesquisadores da Amazônia mantêm tradição iniciada em 1901 pelo zoólogo suíço Emílio Goeldi (Thiago Gomes/O Liberal)


Os Estados Unidos então montaram uma comissão para investigar a fundo as causas da doença, bem como a Escola de Medicina Tropical de Liverpool. Os pesquisadores Walter Myers e Herbert Durham arrumaram as malas com destino a Belém, capital do Pará, mas antes fizeram uma parada em Cuba, onde se mostraram impressionados com as pesquisas de Finlay, que já eram observadas pelos norte-americanos. Eles desembarcaram na capital paraense em agosto de 1900 e foram instalados em um laboratório montado pelo governo do estado no Hospital de Isolamento Domingos Freire, no entorno do atual Hospital Universitário João de Barros Barreto.


"Os ingleses, contudo, não contavam, no Pará, com a quantidade de observações, experiências e estudos prévios que os norte-americanos encontraram em Cuba, e que podemos atribuir a Finlay e seus colaboradores. Desse modo, tiveram de iniciar suas atividades inventariando os culicídeos existentes na região e procurando delimitar sua distribuição geográfica. A coleção de mosquitos que fizeram tornou-se notória na cidade, atraindo até mesmo a atenção de médicos que residiam no vizinho estado do Amazonas", afirma o pesquisador Nelson Sanjad, no artigo "Da abominável profissão de vampiros: Emílio Goeldi e Os mosquitos no Pará".


Além disso, de acordo com Sajad, a expedição inglesa enfrentou um problema no Pará inexistente em Cuba: o baixo índice de morbidade e mortalidade por febre amarela em Belém, então o único foco da doença em toda a região amazônica. Esse fator, segundo Durham, impediu que ele prosseguisse com seus experimentos e influenciou-o na decisão de transferir, em maio de 1901, a expedição para Cuba.


Goeldi entra em cena


Emílio Goeldi nem sempre foi interessado por mosquitos ou pelas doenças carregadas por eles. Antes de 1901, o trabalho do zoólogo era mais voltado para a taxonomia de mamíferos e aves. Ele havia sido convidado em 1893 para assumir a direção do então Museu Paraense, que hoje leva o nome dele. Ao convidá-lo para a missão, a ideia do governador do Pará na época, Lauro Sodré, era converter a instituição abandonada em um grande centro de pesquisa sobre a região amazônica.

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"A qualidade do trabalho de Goeldi pode ser atestada pela repercussão de suas ideias e pela rede científica que manteve"
Nelson Sanjad, pesquisador


Nelson Sanjad supõe que os avanços das pesquisas sobre malária e febre amarela fizeram Goeldi perceber que ele estava em uma localização privilegiada para este tipo de estudo. Além disso, nas décadas de 1890 e 1900, no auge da produção gomífera na Amazônia, a febre amarela despontou como um dos principais entraves aos negócios com a Europa, principalmente a Inglaterra. O fluxo de imigrantes aumentou consideravelmente, elevando o número de casos de febre amarela.


"Em 1895, por exemplo, computou-se menos de 100 infectados, mas, em 1899, eram quase 400. A Intendência Municipal de Belém e o governo do estado elaboraram, então, um amplo programa de saneamento da capital. Foi nesse contexto que Goeldi começou a trabalhar com os mosquitos, tendo recebido irrestrito apoio das autoridades públicas para a execução de suas pesquisas", aponta Sanjad, que é doutor em história da ciência e da saúde.


Goeldi então começa a descrever os principais mosquitos associados às doenças na região e a enumerar todos os países onde esses mosquitos já haviam sido observados, para cruzar dados do mapa da distribuição geográfica dos mosquitos com o mapa da distribuição das doenças. O zoólogo faz comparações com a biologia de cada espécie estudada, auxiliado por diversos autores e por observações próprias, descrevendo a postura dos ovos, o desenvolvimento das larvas, a formação das pupas, o rompimento destas, a alimentação, a digestão, o acasalamento, o zumbido, a escolha do local para a postura dos ovos e, finalmente, a morte.

AEDES AEGYPTI


Sanjad lembra que foi nesse período que Goeldi manipulou mais de 220 indivíduos adultos do Stegomyia fasciata, mais tarde rebatizado de Aedes aegypti, o famoso mosquito da dengue, além de mais de 260 indivíduos do Culex fatigans, bem como milhares de ovos e larvas. Os estudos deram origem ao livro "Os Mosquitos do Pará", que reúne quatro artigos de Goeldi sobre doenças transmitidas por mosquitos e que se tornou um marco na história da pesquisa científica na Amazônia.


As conclusões de Goeldi alçaram o Museu ao prestígio internacional, bem como incitaram dirigentes públicos a assumirem um compromisso com o saneamento de Belém, além de provocar parte da classe médica que ainda se mantinha cética com relação ao papel dos mosquitos na transmissão de doenças, como aponta Sanjad.


"Ao mesmo tempo, ele estabeleceu um programa de pesquisas que incluiu a observação do ciclo biológico dos mosquitos, experimentos com a alimentação e desova, inventário e descrição de espécies que ocorrem na Amazônia. A qualidade do trabalho de Goeldi pode ser atestada não apenas na permanência das espécies que descreveu e do gênero que criou, ou nas suas contribuições para o estudo da biologia e fisiologia dos mosquitos, mas também pela repercussão de suas ideias e pela rede científica que manteve", sublinha Sanjad. Em 1907, após 13 anos de atividades em Belém, Emílio Goeldi retornou para a Suíça já doente, onde faleceu aos 58 anos, na cidade de Berna, por conta de um infarto.


Região segue como referência para pesquisas com mosquitos


A localização tropical da Amazônia, envolta por florestas e rios, ajuda a manter a tradição de pesquisa científica sobre mosquitos que possuem a região como cenário. No início de maio de 2023, a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) alertou para o ressurgimento recente do sorotipo 3 do vírus da dengue no Brasil, que há mais de 15 anos não causa epidemias no Brasil.


"Os sorotipos são uma maneira de classificar o vírus de acordo com a resposta de anticorpos. Então a infecção de um sorotipo dá proteção contra aquele sorotipo, mas não contra os outros. Ou seja, podemos ter dengue até quatro vezes, pois o vírus da dengue tem 4 sorotipos. O sorotipo 3 foi identificado inicialmente pelo Laboratório Central de Roraima e também no Paraná. E os casos em Roraima são de pessoas que não viajaram. É um sinal de alerta, especialmente para o ano que vem", afirma Felipe Naveca, chefe do Núcleo de vigilância de vírus emergentes, reemergentes e negligenciados da Fiocruz Amazônia.

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“Na segunda infecção de dengue, a chance da doença ser mais grave é maior, cientificamente. Por isso, é importante reforçar a vigilância”, Felipe Naveca e pesquisador da Fiocruz Amazônia


O estudo é importante porque mostra que não se trata da dengue de tipo 3 que já circulava nas Américas, mas sim uma nova introdução originária da Ásia e que já circula em outros pontos da América Latina, como Cuba, Suriname e Porto Rico. No estado americano da Flórida, já são mais de 50 casos. Em Porto Rico, foram seis infecções. Outras três ocorreram em Roraima e outra no estado do Paraná, que foi importada do Suriname.


"O número deve ser bem maior que o identificado. É natural que os sorotipos se substituam. Temos um predomínio de dengue 1 e dengue 2, mas ano que vem a dengue 3 deve aumentar. É difícil impedir a entrada desses vírus no país, pois as pessoas viajam o tempo todo. Às vezes a pessoa volta para o país de origem até sem sintomas, pois eles podem demorar a aparecer. Quando temos mais de um sorotipo circulando, aumentam as chances de doença grave. Na segunda infecção de dengue, a chance da doença ser mais grave é maior, cientificamente. Por isso, é importante reforçar a vigilância", diz.


Pesquisa descobre novo vetor de febre amarela


A bióloga Rossela Damasceno Caldeira também faz parte da nova geração de pesquisadores na Amazônia que se dedicam aos impactos que os mosquitos da região podem ter na saúde humana. A pesquisa dela publicada no periódico científico Viruses aponta um novo vetor para a febre amarela: o Aedes albopictus, que habita tanto ambientes silvestres como urbanos, o que é preocupante considerando que a febre amarela já não é encontrada em grandes massas urbanas. Trata-se de um estudo extenso, que durou quatro anos, e que constatou que esse novo vetor está migrando para a cidade.

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“Foi um processo importante para comprovarmos a nossa hipótese. Antes, ninguém nunca tinha pensado que esse mosquito poderia ser um vetor”, Rossela Damasceno Caldeira, bióloga


A detecção do vírus da febre amarela na saliva, na cabeça, no tórax e nas pernas de macacos utilizados no estudo confirmou que Aedes albopictus pode ser infectado e transmitir febre amarela por meio da alimentação sanguínea de primatas não humanos, o que reforça a importância de que mais estudos sejam realizados com a espécie. Segundo ela, além de mais investimentos em pesquisas sobre o tema, outro desafio agora é aumentar a cobertura vacinal.


"Usei macacos e mosquitos. Em laboratório, consegui transmitir o vírus tanto para o mosquito quanto para o macaco. Eu criei o mosquito no laboratório, desde ovo até fase adulta. Então, eles eram alimentados com sangue, ao longo de várias gerações. Já os macacos foram cedidos pelo Centro Nacional dos Primatas. A gente levava os mosquitos para se alimentarem do sangue do macaco. Foi um processo importante para comprovarmos a nossa hipótese. É um grande projeto do Instituto Evandro Chagas (IEC) pois em 2017 e 2018 houve um surto de febre amarela no sudeste do Brasil e mandaram as amostra para o IEC. Antes, ninguém nunca tinha pensado que esse mosquito poderia ser um vetor", diz.