O Norte é a região do Brasil com maior potencial de crescimento de exportações para a China: 125,8%, o que poderia levar a uma arrecadação superior a R$ 58 bilhões para sete dos estados da região amazônica, segundo estudo do Conselho Empresarial Brasil-China publicado em 2023. Entre 2012 e 2021, o aumento das exportações chegou a 14,6%. São dados que expressam o quanto a China ganhou importância para a economia da região amazônica nos últimos anos, e que também apontam para desafios no horizonte.
"A relação se caracteriza por uma atuação econômica diversa, desde o investimento em commodities, do comércio ou do agronegócio, e em infraestrutura, muitas vezes ligadas às necessidades de escoamento da cadeia de produção dessas commodities agrícolas, como portos e ferrovias. Mas o rápido aumento das exportações brasileiras de produtos primários para a China tem consequências para o desmatamento da Amazônia que são complexas de quantificar e devem ser interpretadas com cautela", explica a Dra. Flávia Vieira, pesquisadora sênior da plataforma Cipó.
Apesar de existirem limitações de dados em domínio público para avaliar as relações entre o desmatamento e a logística, infraestrutura e as possíveis falhas de fiscalização que envolvem o comércio de commodities na Amazônia, é fato que um aporte tão massivo para investimento em infraestrutura e commodities repercute em impactos sociais e ambientais graves, ressalta Vieira. Especialmente em razão dos conflitos históricos na região. A Amazônia é marcada por conflitos ambientais que envolvem desde a implementação de políticas públicas de promoção de cidadania e de gestão ambiental, até a regularização fundiária e o ordenamento territorial.
A pesquisadora acredita que a pauta ambiental e o desenvolvimento sustentável devem servir a um alinhamento cada vez mais relevante entre os dois países. Segundo Vieira, o governo brasileiro tem acenado para um movimento de reconstrução das políticas públicas relacionadas ao meio ambiente e reforçado a capacidade de fiscalização dos órgãos ambientais. Além disso, ambos os países também têm sofrido pressão internacional e de entidades do terceiro setor por um maior monitoramento da cadeia de commodities na Amazônia.
"Uma dificuldade são os sistemas de rastreio das cadeias de fornecedores brasileiros, que possuem lacunas e falhas, e que precisam ser aprimorados. A política externa Chinesa tem mudado significativamente na última década, quando passou a assumir compromissos para descarbonizar sua economia. Nesse sentido, a Amazônia passou a ser relevante para a China não só por seus recursos, mas também por seu papel no estoque de carbono e no controle ao aquecimento global. A questão ambiental e climática deverão integrar o debate sobre a expansão dos investimentos chineses na Amazônia. Um outro ponto que merece atenção são indícios de aumento do tráfico de animais silvestres em direção à China, para abastecer com ingredientes a medicina tradicional chinesa e, possivelmente, também a indústria da moda e mesmo a de animais domésticos. Ainda não há muita informação sobre essa questão, que demanda maior estudo e análise", avalia.
País precisa ir além de soja, carne e minério
O pesquisador João Cumaru, mestre em ciências políticas pela Universidade Federal de Pernambuco, pontua que a relação entre a região amazônica e a China passou por diferentes momentos ao longo das décadas. O foco no comércio de commodities, com 70% das exportações brasileiras absorvidas pelo país asiático, e a exportação de minério de ferro, tornaram o Norte do Brasil central para a relação bilateral entre os dois países. "Outra atuação muito enfática na região são os investimentos em infraestrutura, com maior parte nas últimas duas décadas direcionada ao setor de energia. Quando olhamos o histórico, a inserção da China nesse setor começou na região Norte, por conta das hidrelétricas, como Belo Monte. Também se destacam os linhões que escoam energia da região Norte para o grande centro consumidor, o sudeste brasileiro, pela State Grid, que comprou a (empresa de energia) CPFL. São linhões muito aperfeiçoados tecnologicamente, com poucos iguais no mundo", diz.
Porém, há um ponto de preocupação. Enquanto a China foi se industrializando, o Brasil foi se tornando cada vez mais um exportador de produtos primários, uma característica própria de países mais pobres e em desenvolvimento, que não conseguem agregar valor para o que produzem a partir da verticalização da cadeia produtiva. Em meio à pandemia de covid-19, com as commodities em alta, a soma da agropecuária e mineração superou a manufatura no Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro pela primeira vez em décadas. Além de ir na contramão do mundo, a desindustrialização do país se reflete em menos emprego e aumento do custo de vida da população. E a China acaba sendo um agente neste tabuleiro por conta da alta demanda por produtos primários.
Cumaru defende que o Brasil reflita sobre o que, de fato, espera dessa relação, traçando metas e observando outras experiências de cooperação internacional.
"A China é muito pragmática e sabe bem o que quer do Brasil. Então, é importante o Brasil fazer a tarefa de casa e construir uma estratégia de desenvolvimento, saber o que queremos dessa relação, tendo a consciência de que temos muitos ativos que precisam ser colocados à mesa para negociar com os chineses. As nossas commodities, querendo ou não, são um ativo para o Brasil, mas precisamos agregar valor para esse comércio. É importante fazer a tarefa de casa. A gente ainda não incorpora tanta tecnologia dos chineses e precisa entrar nessa estratégia, que é um movimento que a Argentina já está fazendo. A Bolívia também tem avançado nessa questão de compartilhar tecnologia por conta da exploração de lítio. A Tailândia fechou um acordo de cooperação tecnológica para linhas de trem-bala. Existem empresas que já começam a incorporar um pouco de tecnologia no Brasil, como a BYD, que produz de painel solar até veículos elétricos e, desde 2020, estão em Manaus, produzindo baterias de ônibus, algo importante para o armazenamento de energia e a transição energética. Talvez seja o caso de olhar esses países e essas experiências e ver como esses acordos estão sendo fechados, para irmos além de soja, carne e minério", argumenta.
Acordos de governança climática devem ser priorizados
João Cumaru entende que o principal desafio é traduzir em ações efetivas os compromissos firmados nos acordos multilaterais de governança climática, pensando em como a China pode colaborar para uma gestão sustentável da floresta.
Segundo Cumaru, a declaração sobre mudança climática assinada recentemente pelos presidentes Luiz Inácio Lula da Silva e Xi Jinping sinaliza o anseio de ambos os países por um comprometimento maior com a sustentabilidade, tendo como principal mecanismo a Comissão Sino-Brasileira de Alto Nível de Concertação e Cooperação (Cosban), que agora possui um subcomitê focado em meio ambiente. Na opinião do pesquisador, trata-se de um caminho sem volta, pois o contexto das emergências climáticas colocou a China em uma nova fase de desenvolvimento.
"Nas décadas de 1980, 1990 e 2000, a preocupação da China era retirar a população da pobreza. Dos anos 2000 para cá, o foco foi o desenvolvimento industrial. Agora, estão numa terceira fase, de desenvolvimento socialmente justo e inclusivo, mas também ambientalmente sustentável, lutando para a construção de uma civilização ecológica, ecossocialista, para atingir o bem-estar sustentável. A China possui a pecha de maior poluidor, mas Xangai já tem quase 90% da frota de ônibus públicos elétricos. A dependência do carvão é gigantesca, mas já caiu. Os números de poluição são superlativos, mas o esforço para reduzi-los é tão superlativo quanto", afirma.
Pará quer implantar zona de exportação
O diálogo entre a China e o Pará é cada vez maior por conta da pauta de exportação do estado. Na prática, 60% de tudo o que é produzido no segundo maior estado da região amazônica vai para o país asiático, de ferro e bauxita a carne e soja. Só o ferro, por exemplo, responde por 80% dessas exportações, tornando o Pará fundamental para o mercado da construção civil da China, que estava cambaleando nos últimos dois anos, mas já demonstra fôlego novo. Já a produção de soja na região do município de Paragominas só cresce, o que ajuda a diversificar a exportação.
Vitor Hugo Gomes é assessor estratégico da Companhia de Desenvolvimento Econômico do Pará e lembra que a cooperação bilateral tem sido muito proveitosa, com projetos de cooperação para o uso de fertilizantes orgânicos e a intenção de se criar uma Zona de Processamento de Exportação (ZPE) no município de Barcarena, nordeste do Pará, que abriga mineradoras e indústrias multinacionais.
"São zonas que a China já está usando há décadas como vetores de desenvolvimento a partir de incentivos fiscais e facilidades nos processos de importação e exportação. No Brasil, tivemos o marco regulatório das ZPEs, pela lei 14.184, que mudou o escopo de atuação, antes considerada engessada pelo mercado. Com a implantação da zona, podemos ter uma ligação direta com nosso principal importador. Isso iria fortalecer muito o porto de Vila do Conde, que conecta o Pará com o mundo. É um local estratégico. Entendo que existe o anseio e a busca para que possamos sempre verticalizar a produção. O Pará é muito rico, mas depende muito da exportação primária. Um cenário futuro mais vantajoso seria a verticalização dos produtos aqui, para vender com valor agregado, mas neste meio tempo, temos setores atuantes com acordos comerciais. Então estamos tentando mapear as oportunidades, atraindo investimentos para o estado", diz.
Desdolarização da economia fortalece a China no cenário internacional
De acordo com o professor Mário Tito, doutor em relações internacionais, o Brasil está trilhando um caminho na diplomacia internacional que aponta para uma Ásia mais poderosa e influente, cenário que já ocorreu na Antiguidade. E há motivo: 60%da população mundial está na Ásia, com uma indústria de produção em larga escala cada vez maior para atender um mercado consumidor gigante e diverso.
"A ascensão da China no cenário internacional faz parte da nova dinâmica global hoje e o Brasil se coloca como parceiro comercial e de políticas públicas. Ao mesmo tempo, há um declínio da importância dos Estados Unidos, que está profundamente endividado. Ele perde importância no mundo e investe menos em outros países. Como consequência, vemos um processo de desdolarização da economia. Nesse contexto, há uma expectativa dupla em relação à Amazônia: a primeira é a valorização da preservação e conservação florestal. Ao mesmo tempo, há uma pressão para que o Brasil não deixe de fornecer produtos como soja e carne, e produzir energia e minérios. São dois lados que se confrontam. Mas, se não tivermos cuidado, iremos renovar essa vocação de ser exportador de produtos primários sem gerar benefícios reais para a população, tendo que importar produtos de alto valor que não produzimos. É preciso recuperar protagonismo", defende.