Há um ecossistema na Amazônia onde a pressão do desmatamento não consegue reinar: os manguezais.
Um estudo realizado pela Universidade Federal do Pará (UFPA), Universidade Federal Rural da Amazônia (Ufra) e Instituto Tecnológico Vale (ITV) atestou que menos de 1% dos mangues da região amazônica foi impactado por intervenções humanas como a expansão urbana e a construção de estradas.
Um mangue nada mais é do que uma área de transição entre a água e a terra firme, formando terrenos rebaixados úmidos e férteis e florestas constantemente alagadas.
O resultado da equação é solo lamacento e com elevado teor de sal. Porém, os manguezais apresentam plantas adaptadas para essas condições, o que explica as raízes aéreas. Além disso, o ecossistema abriga peixes e crustáceos.
A professora Sanae Hayashi, do Laboratório de Geotecnologias, Educação Financeira e Ambiental da Ufra, lembra que mais de 70% dos manguezais do Brasil estão em terras dos Estados do Amapá, Pará e Maranhão. É uma área equivalente a onze vezes o tamanho da cidade de São Paulo (SP).
Ela destaca que os manguezais exercem um forte papel para a sustentabilidade socioeconômica de comunidades ribeirinhas, além de atividades de extração de recursos para a subsistência a partir do consumo de peixes e caranguejos.
O estudo avaliou 7.820 quilômetros quadrados de manguezais via satélite por meio do sistema RapidEye, começando na foz do rio Amazonas, às proximidades do Arquipélago do Marajó, até a Ilha de São Luís, onde fica a capital do Estado do Maranhão.
O 1% detectado como área não conservada corresponde a 66,85 quilômetros quadrados. As imagens catalogadas entre 2011 e 2015 foram comparadas com imagens de satélites mais antigas, o que atestou a preservação dos mangues.
"Os manguezais também proporcionam a proteção do litoral contra os eventos catastróficos, além de serem abrigo e refúgio para espécies animais. São áreas produtivas em termos de produção primária, com uma enorme estocagem de carbono. Isso aponta para um diferencial da região no mercado de créditos de carbono, que está crescendo em um momento que o mundo quer reduzir os gases de efeito estufa na atmosfera. No mundo, as taxas de perda dos manguezais são de 1% a 2% ao ano. Nossos manguezais amazônicos são considerados conservados, com forte contribuição da baixa densidade demográfica da região, se comparamos com as regiões Nordeste e Sudeste do Brasil, por exemplo. Além disso, são áreas cada vez mais amparadas legalmente, com a criação de reservas extrativistas. Outro fator que contribui é que menos de 10% da malha rodoviária na região analisada é pavimentada", conta a pesquisadora.
Pesquisador defende mais políticas de conservação
Pedro Walfir de Souza Filho estuda os manguezais amazônicos há duas décadas. Ele, que é professor do Instituto de Geociências da Universidade Federal do Pará (UFPA) e pesquisador do Instituto Tecnológico Vale (ITV), conta que a análise contempla a maior extensão contínua de manguezal do mundo, com um nível de água que chega a seis metros e árvores entre 20 e 30 metros, criando grandes depósitos de lama em uma região de macromarés.
Ou seja, essa robustez natural do manguezal é, por si só, um expressivo inibidor da destruição deles para atividades econômicas.
“É muito caro derrubar um manguezal. Lá não entram máquinas e nem tratores. Iriam atolar na lama. Além disso, entre 80% e 90% estão como unidades de conservação, que limitam os usos desse manguezal”.
“Em outras partes do mundo, como no sudeste asiático e no Equador, boa parte desses manguezais é usada para o cultivo de arroz, ostras, peixes e camarões. Isso leva os manguezais a sofrerem com uma forte pressão econômica, com agentes substituindo a área nativa por tanques para aquicultura”.
“É um processo que já ocorre também nos Estados do Nordeste do Brasil. Temos dois ecossistemas bem definidos no manguezal: um é a floresta de mangue e outro é o apicum, que são as áreas hipersalinas, muito salgadas, e que não propiciam desenvolvimento de vegetação. Então, é essa área que tem sido utilizada para tanques, cultura de peixes, crustáceos e até salinicultura, a extração de sal. Nos manguezais, menos de 1% foi alterado. Mas, nos apicuns, dos doze quilômetros que mapeamos, 2% estão em uso e já foram alterados”.
"É uma preocupação que precisamos ter em virtude dessa atividade econômica que é rentável e se torna uma ameaça para esse ecossistema tão importante. A literatura tem apontado expressivas alterações em manguezais de países como a Índia, Bangladesh e Nova Guiné."
"Partimos então da hipótese de que os manguezais da Amazônia precisam de uma política especial para que permaneçam nesse estágio de conservação e que não se permita o avanço da degradação como vem ocorrendo em outros lugares do mundo", alerta ele, que destaca que o Código Florestal do Brasil, que entrou em vigor em 2012, permite o uso do apicum, enquanto os manguezais são considerados áreas de preservação permanente.
AMAZÔNIDAS
O município de Bragança, no nordeste paraense, concentra boa parte dos pontos de degradação mapeados pelo estudo.
O motivo é a construção da rodovia estadual PA-458, que corta o manguezal por 26 quilômetros, aponta o pesquisador. Por outro lado, Pedro entende que a estrada construída entre as décadas de 1970 e 1980 permitiu maior acesso dos pesquisadores à região, gerando mais conhecimento sobre a geoquímica, a biodiversidade e a conservação desses ecossistemas. Pedro compreende que a boa relação dos amazônidas com os manguezais também é fundamental para a construção desses dados positivos em relação à preservação.
"É uma população que conserva os manguezais e que entende como usá-los de forma sustentável. O amazônida sabe onde tem caranguejo grande, ontem tem caranguejo pequeno e respeita o ciclo das andadas dos caranguejos... Esses dados provam que eles exploram de maneira responsável, e não até a depredação total. Os amazônidas sempre buscam novas áreas ricas enquanto o local da extração anterior se recupera. Acho que o Brasil e o mundo tem muito a aprender com a forma que os amazônidas conservam seus manguezais. No leste do Pará, temos quase todas as florestas adjacentes desmatadas, mas o manguezal permanece intacto", afirma.
Comunidades tradicionais são "guardiãs" dos mangues, diz extrativista
"É do mangue que tiramos o nosso sustento. É a nossa sobrevivência", explica João Carlos da Silva
O pedagogo e comunicador social Mailton Silva dos Santos entende bem a importância do manguezal na Amazônia e se orgulha de fazer parte desse histórico de conservação e respeito à natureza. Ele mora na comunidade de Santo Antônio do Trombetas, no município de Santarém Novo, nordeste do Estado do Pará, onde vivem mais de 300 famílias. Lá, ele trabalha pela conscientização do ecossistema e acredita que é a união que faz a força.
"Nós só conseguimos essa façanha de termos os manguezais mais preservados do mundo por conta da participação e envolvimento de todos. O manguezal é extremamente importante porque serve de berçário para várias espécies, pois a lâmina d'água abriga a desova de várias espécies de peixe, o que também contribui para a alimentação do povo extrativista, além de ter uma vegetação marcante e única com árvores como tinteiro, siriubeira e mangueiro. É uma região que absorve muito mais carbono do que floresta de terra firme, protege a gente da erosão e tem uma importância cultural grande. Em muitos territórios, o mangue é tido como lugar sagrado, que inspira, por exemplo, os mestres de carimbó na composição de canções. Quanto mais preservado estiver o mangue, melhor é o pescado e caranguejo e todas as outras espécies que o povo extrativista captura para se alimentar. E isso gera mais renda, qualidade de vida e dignidade para o nosso povo", destaca.
SOBREVIVÊNCIA
O extrativista João Carlos Gomes da Silva, o "Donda", é presidente da Associação de Usuários da Reserva Extrativista Marinha de Tracuateua, também no Estado do Pará. Para ele, ninguém sabe cuidar melhor dos mangues do que os amazônidas.
"As comunidades tradicionais daqui são verdadeiras guardiãs do mangue. É do mangue que tiramos o nosso sustento... é o que garante a nossa sobrevivência. É o berçário de diversas espécies aquáticas e terrestres. Mais de 95% das espécies que capturamos do mar vêm dos mangues. É um patrimônio de todos e que devemos cuidar, bem como ensinar os filhos e netos a cuidarem também, para que essa boa relação se estenda por várias gerações", diz.
FISCALIZAÇÃO
O pesquisador Pedro Walfir de Souza Filho avalia que o poder público desempenha um papel fundamental na preservação dos manguezais, mas que pode ser aprimorado.
"Podemos melhorar muito quando o assunto é fiscalização. Temos excelentes leis para a conservação dos manguezais, algo que já era uma preocupação desde a época do Império, com Dom Pedro, mas precisamos reforçar uma política de monitoramento pela fiscalização. E temos tecnologia para isso, inclusive por meio da utilização de drones, que podem contribuir para uma investigação em larga escala. É importante preservar agora para não chorar pelo que foi perdido, sempre intervindo antes que grandes áreas sejam desmatadas", completa.