Além de florestas, rios, lagos, cachoeiras e igarapés, que compõem os cenários mais característicos da região, a Amazônia brasileira tem vastas opções de paisagens e destinos que encantam, como as dunas, os mangues e a costa marítima. Mas não apenas as belezas naturais atraem os turistas, como também a oportunidade de vivenciar os diferentes modos de vida das populações. É essa a proposta trazida pelo Turismo de Base Comunitária (TBC), que pode incentivar o desenvolvimento sustentável e a valorização das comunidades da região.
Em entrevista exclusiva ao Grupo Liberal, o ministro do Turismo, Celso Sabino, ressaltou que o chamado TBC desempenha um papel fundamental para os povos amazônicos, além de ter um impacto significativo no cenário nacional. "O turismo é uma fonte vital de receita para muitas regiões, contribuindo para a geração de empregos e o aquecimento da economia local. Além disso, tem o poder de promover as preservações cultural, histórica e ambiental", explica.
A Amazônia, segundo o ministro, é um dos pontos prioritários para a pasta em termos de TBC. "Estamos desenvolvendo o projeto 'Experiências do Brasil Original' para ampliar e diversificar a oferta turística brasileira, por meio do desenvolvimento de experiências turísticas memoráveis ofertadas por povos indígenas e comunidades quilombolas em seus territórios", destaca.
DESAFIOS
Contudo, se por um lado há perspectivas positivas para o futuro desse modelo, trabalhar com TBC na Amazônia também representa superar desafios. Na Ilha dos Lençóis, no Estado do Maranhão, Fernando Gonçalves foi o pioneiro no segmento de hospedagem. Ele construiu a primeira pousada da ilha há 26 anos e, desde então, vem superando diariamente dificuldades como logística, alto custo de matéria-prima e a necessidade de manutenção constante para vencer os danos causados pela natureza.
Situada a 150 quilômetros de distância de São Luís, a capital do Maranhão (em linha reta), a ilha integra o município de Cururupu. A prefeitura não tem dados oficiais sobre o número de habitantes da ilha, mas a estimativa é que 365 pessoas vivam ali. Muitos confundem a Ilha dos Lençóis com os famosos lençóis maranhenses, um parque nacional com cenário desértico formado por dunas de areia e lagos naturais. Mas as duas localidades ficam em pontos bem distintos do território maranhense.
Falta estrutura em ilha maranhense
Chegar até a Ilha dos Lençóis, no Estado do Maranhão, é uma longa jornada. O ambiente natural formado por dunas, manguezais e palmeiras é como uma joia escondida. A equipe do Grupo Liberal fez uma viagem de cerca de seis horas a partir da capital maranhense. É preciso atravessar de ferry boat e seguir por uma estrada com trechos sem pavimentação para se chegar ao município de Apicum-Açu. Lá, é necessário pedir “carona” para algum barco de pescador que vá em direção à Ilha dos Lençóis. O fato é que não há uma linha fluvial regular entre a ilha e a cidade de Apicum-Açu.
Quando Fernando Gonçalves recebe algum hóspede em sua pousada, ele providencia comida e os itens que o visitante vai precisar e, muitas vezes, também acompanha nesse percurso desde a capital.
"Não temos uma rede de saneamento básico e coleta de lixo doméstico. No meu caso, depois da estadia, eu recolho o resíduo produzido na nossa pousada e levo para o 'continente' (Apicum-Açu). No caso dos recicláveis, eu transporto até São Luís", explica o empresário. Ele conta que o primeiro passo na hora de construir o empreendimento, então, foi garantir um esgotamento sanitário próprio. "Mas os moradores aqui têm somente a fossa séptica", aponta.
PREJUÍZOS
Essa já é a segunda vez que Fernando investe no negócio. A primeira pousada sofreu muitos danos com os ventos que trazem areia das dunas e com o avanço do nível do mar. "Eram seis casas à beira-mar, que foram 'levadas' pelas águas. Minha família não queria que eu reabrisse a pousada", explica.
A Ilha dos Lençóis fica dentro de uma reserva extrativista e tem pouca presença urbana. É preciso se locomover a pé e quase não há pontos de comércio ou restaurantes. A maioria da população vive da pesca. Hoje, quem mais visita a ilha são turistas do Sul e Sudeste do Brasil e também europeus.
Além da manutenção da pousada, Fernando oferece passeios de barco, visitas às dunas e ao farol, além da observação da coleta do camarão e dos voos dos guarás.
Vivência no meio da floresta amazônica
Na reserva extrativista Mamirauá, no Estado do Amazonas, o perfil dos turistas é similar. Se na Ilha dos Lençóis, a vista é de dunas brancas, na reserva extrativista é de rios e mata fechada. Ainda no final da década de 1990, se enxergou o potencial turístico do local e hoje a reserva abriga a pousada “Uacari” - ou “Uakari Lodge”, como passou a ser nomeada mais recentemente.
A pousada tem um faturamento médio de R$ 400 mil por ano. Tudo é revestido em benefício da comunidade. É uma iniciativa do Instituto de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá, organização social fomentada e supervisionada pelo Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI), que implementa programas de pesquisa, manejo de recursos naturais e desenvolvimento social, principalmente na região do Médio Solimões, no Amazonas.
Ainda no início de sua história, em 1996, o instituto criou um plano de gestão e um grupo de pesquisadores se dedicou a pensar em alternativas econômicas para a reserva que leva o mesmo nome, sendo uma delas o turismo.
"Era uma atividade que não existia ali na época e cada comunidade teve a liberdade de decidir se queria ou não seguir por esse caminho", recorda Pedro Nassar, que é o coordenador do Programa de Turismo Comunitário do Instituto Mamirauá.
Essa é a maior reserva de várzea do mundo e a maioria da população é formada por ribeirinhos, que vivem da pesca e da produção de farinha e outros produtos agrícolas. Existem cerca de 13 mil moradores e usuários da reserva, abrangendo seis munícipios, dez comunidades e uma terra indígena.
PARTICIPAÇÃO
Quem tinha interesse em se dedicar ao turismo passou por um processo de diálogo e construção em conjunto para desenhar os próximos passos. "Essa participação comunitária é um dos preceitos básicos para a definição do Turismo de Base Comunitária. Não basta gerar emprego para quem vive ali. São os próprios moradores que devem tomar as decisões e traçar o rumo da atividade", reforça Nassar.
"A pousada completa 25 anos e é sem fins lucrativos, como o Mamirauá. Todo o dinheiro é repartido entre cobrir os custos e guardar para a reserva financeira da própria pousada, e também vai para as comunidades que trabalham na pousada", detalha o coordenador.
O que chega às comunidades são não apenas os salários, mas os recursos financeiros para fortalecer a economia local. Os próprios moradores fundaram a Associação de Auxiliares e Guias de Ecoturismo do Mamirauá para organizar a gestão do turismo e fortalecer a organização comunitária.
Além disso, a equipe da pousada é estabelecida em sistema de rodízio, no qual cada pessoa trabalha em média dez dias por mês e depois volta para casa. O objetivo é que não haja dependência do turismo e as pessoas possam continuar exercendo suas atividades tradicionais. Apenas nos últimos 15 anos, a pousada contou com uma média de 100 famílias por ano atuando diretamente na equipe.
Ecoturismo mantém a floresta em pé
Cercada por rios e floresta nativa, a “Uakari Lodge” tem uma pegada ecológica que vai desde a sua autossuficiência energética vinda de painéis solares até a escolha dos passeios. Os turistas podem contemplar a natureza e respirar o ar fresco para relaxar e se distanciar da correria urbana. Podem também fazer passeios como trilhas e visitas às comunidades ribeirinhas.
"A pousada também foca no ecoturismo. É uma atividade que tem como condição manter a floresta em pé", informa Nassar. Por isso, segue-se também normas de rodízio de trilhas e controle do número máximo de turistas que podem estar ao mesmo tempo em cada área, como uma forma de mitigar os impactos humanos no ambiente.
O coordenador declara que existem desafios bem específicos da Amazônia, como a falta de saneamento básico, por exemplo, que precisam ser contornados para o investimento em TBC. A pousada, por exemplo, precisou desenvolver um sistema próprio de tratamento de água.
"As distâncias também são desafios imensos, ainda mais em uma região onde os deslocamentos são feitos por embarcações ou aviões. Demora mais e é mais caro. Isso impõe uma necessidade de se deixar o valor mais alto também para o turista. Devemos pensar em tecnologias novas, embarcações com painel solar, projetos desse tipo, ou algum subsídio que ajude as comunidades", reforça.
Por fim, Nassar analisa que apostar no TBC na Amazônia também implica em melhorar os índices de saneamento básico, saúde e educação, para garantir mais conforto e qualidade de vida para quem mora ou está de passagem por ali.
DIFICULDADES
Analista técnico do Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae) do Pará, Péricles Carvalho corrobora com esse argumento. Ele acredita que, apesar do turismo de base comunitária ter como público-alvo as pessoas que querem vivenciar a rotina das comunidades tradicionais, esses visitantes demandam uma infraestrutura mínima para ter uma experiência positiva.
"O turista chega já sabendo dessas dificuldades e das diferenças, mas quer ter um banheiro limpo, beber uma água de forma segura e ter conforto térmico. Para isso, não tem como depender totalmente do poder público. É preciso também a iniciativa privada para garantir as condições básicas para receber os turistas", avalia.
Segundo ele, o TBC depende do fluxo do turismo tradicional no Pará. "É muito difícil hoje virem apenas para o turismo comunitário. Geralmente, o turista vai para um destino mais consagrado como Alter do Chão, por exemplo, e aproveita a viagem para fazer algumas rotas para conhecer comunidades extrativistas", exemplifica. Mas Carvalho prospecta que é possível ir além das comunidades extrativistas, investindo em turismo comunitário que mostre diferentes atividades das populações amazônicas.
O Sebrae trabalha para identificar onde existe esse potencial de TBC e ajuda a estruturar as comunidades para atender os turistas, oferecendo treinamentos sobre atendimento ao cliente, comunicação empresarial e gestão de negócios.
"A nossa participação é, em um primeiro momento, despertar a comunidade para esse potencial e depois apoiá-la na estruturação dessa experiência. Quando percebemos que estão preparados, fazemos o processo de divulgação, para ganhar mais visibilidade e assim atrair visitantes", explica.