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TECNOLOGIAS SOCIAIS

Cisternas levam água potável a comunidades amazônicas

Enfrentando períodos extremos de seca, os povos da floresta precisam, cada vez mais, de sistemas de captação e armazenamento do recurso

Ádria Azevedo | Especial para O Liberal

07/09/2025

A Amazônia vive uma contradição no que diz respeito à água. Dona da maior bacia hidrográfica do mundo, grande parte de sua população não tem acesso à água potável. De acordo com dados de 2023 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), apenas 60% dos habitantes da região contam com ligação com a rede geral de abastecimento de água. Falando de zona rural, o percentual é exponencialmente menor: somente 18,9% das pessoas são abastecidas.


Algumas iniciativas, seja em âmbito governamental ou não governamental, pretendem melhorar esse acesso. A maior delas é do governo federal, por meio do Programa Cisternas, do Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome (MDS).

 


O programa começou em 2003, primeiramente atendendo a região Nordeste, que sempre sofreu secas extremas em função de seu clima semiárido. Há cerca de dez anos, o Cisternas chegou à Amazônia, implantando as chamadas tecnologias sociais para famílias rurais de baixa renda atingidas pela falta regular de água ou pela seca.

MAMIRAUÁ

 

O Programa Cisternas é executado por meio de parcerias do MDS com os entes federativos ou organizações do terceiro setor. Uma das organizações não governamentais que atua no programa na Amazônia é o Instituto Mamirauá, do Amazonas, que tem também outras frentes de atuação na área.

 

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De acordo com Maria Cecília Gomes, coordenadora do Programa de Qualidade de Vida do Instituto Mamirauá, 1.300 pessoas já se beneficiaram das tecnologias de acesso à água nas comunidades (Foto: Bernardo Oliveira/Instituto Mamirauá)


“O Instituto Mamirauá atua com três frentes para a melhoria do acesso à água nas comunidades: o aproveitamento de água de chuva, o bombeamento de água do rio e o tratamento domiciliar de água”, explica Maria Cecília Gomes, coordenadora do Programa Qualidade de Vida da instituição. Os projetos do Instituto já beneficiaram 22 comunidades em municípios como Alvarães, Uarini e Maraã, nas Reservas de Desenvolvimento Sustentável (RDSs) Mamirauá e Amanã, no Amazonas. Cerca de 1.300 pessoas foram beneficiadas com as tecnologias.


“Realizamos todas as ações necessárias: instalamos as tecnologias, fazemos atividades educativas, acompanhamos a qualidade da água, o funcionamento do que foi instalado e a gestão compartilhada com as prefeituras municipais”, diz Cecília. Além dos sistemas de aproveitamento de água da chuva, o Instituto já implantou cinco sistemas de bombeamento de água do rio com energia solar.


O Instituto também criou um kit emergencial para tratamento de água durante os períodos de seca, quando a água fica turva e escassa. Foram distribuídas cerca de 300 unidades na seca de 2023. A ideia deu tão certo que, em 2024, algumas prefeituras amazonenses passaram a distribuir o kit, com orientação do Instituto. Foram cerca de 5 mil unidades repassadas às famílias, beneficiando aproximadamente 25 mil pessoas.

 

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O Instituto Mamirauá criou um kit emergencial para tratamento de água durante os períodos de seca, quando a água fica turva e escassa. (Foto: Miguel Monteiro/Instituto Mamirauá)

Banhos a qualquer hora

 

Uma das comunidades beneficiadas pelas tecnologias implementadas pelo Instituto Mamirauá foi a de Nova Colômbia, na RDS Mamirauá, no município de Tefé, Amazonas. Larissa Benchimol, professora na comunidade, conta que a tecnologia recebida foi a de bombeamento da água do rio a partir da energia solar.


“O sistema puxa a água para um grande tanque que fica no meio da comunidade. Quando enche essa caixa d’água é que libera a água para passar por um filtro, porque a água é muito barrenta, e depois vai para todas as casas. Enchemos o tanque duas vezes por dia e fica dando água direto nas torneiras. E para consumir, beber e usar na alimentação usamos um outro filtro dentro de casa, que também foi disponibilizado pelo Instituto para a maioria da comunidade”, explica.


Larissa aponta o impacto que a tecnologia teve na comunidade. “Mudou muito a nossa realidade. Antes, tínhamos que ir juntar água do rio em baldes, no sol quente, e depois coar com um pano, para depois fazer o tratamento com cloro. Agora, a gente chega em casa e tem água suficiente para tomar banho quantas vezes quiser, porque antes só dava uma vez por dia. Tem água para a alimentação, para banho, para escovar os dentes, tudo”, comemora a moradora.

 

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Equipe do Instituto Mamirauá mostra para as comunidades como usar o kit emergencial de tratamento de água (Foto: Miguel Monteiro/Instituto Mamirauá)

Sanear Amazônia beneficiará 15 mil pessoas

 

Uma outra iniciativa, relacionada ao Programa Cisternas do MDS, é o projeto Sanear Amazônia. Desenvolvido em parceria com o Conselho Nacional dos Extrativistas e o Memorial Chico Mendes (MCC), de Manaus, com investimentos do Programa de Aceleração do Crescimento 3 (PAC 3) e do Fomento Rural, o projeto pretende implantar 3.476 sistemas de acesso à água potável até 2026, em cinco estados amazônicos, beneficiando cerca de 15 mil pessoas.


Segundo o coordenador do projeto pelo MCC, Willians Santos, até o momento já foram beneficiadas diretamente 4.074 pessoas com as tecnologias implantadas no Amazonas, no Pará, no Amapá, no Acre e em Rondônia. 

 

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Willians Santos, coordenador do projeto Sanear Amazônia pelo Memorial Chico Mendes: “Iniciativa vai beneficiar 15 mil pessoas", diz ele (Foto: Arquivo pessoal)

 

Cada estado tem uma executora local, responsável pela implantação de sistemas pluviais multiuso, ou seja, de captação da água da chuva, descarte da primeira água, com impurezas, e ligação de pontos de água nas residências. “O projeto contempla, também, instalações sanitárias domiciliares e a entrega de filtros de barro e sistemas complementares de tratamento de água”, complementa Santos. 


Suely Trindade, da comunidade Igarapé Grande, no município de Manicoré, no Amazonas, recorda a dificuldade que costumava ter no acesso à água. “Íamos buscar água de noite lá no rio. Era perigoso. Teve uma vez aqui em casa que eu ri, mas depois chorei, porque a água só pingava na caixa. Dormíamos sem tomar banho e só tínhamos um pouquinho para beber. Já pensou? Pouca água para tanta gente. A gente ficou muito feliz de receber o sistema”, diz.

CENÁRIO

 

Willians Santos comenta que, apesar de a Amazônia concentrar cerca de 20% da água doce superficial do planeta, ainda há milhares de pessoas sem acesso à água potável. “Isso ocorre porque grande parte dessas comunidades vive em áreas isoladas, sem rede pública de abastecimento. A água disponível é a dos rios e dos igarapés, que muitas vezes está contaminada por esgoto, mercúrio ou outros fatores, ficando imprópria para uso”, lembra. 

 

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O Sanear Amazônia implanta sistemas pluviais multiuso, ou seja, de captação da água da chuva, descarte da primeira água, com impurezas, e ligação de pontos de água nas residências. “O projeto contempla, também, instalações sanitárias domiciliares e a entrega de filtros de barro e sistemas complementares de tratamento de água”, explica Willians Santos (Foto: Arquivo pessoal Willians Santos) 


Para Maria Cecília Gomes, do Instituto Mamirauá, existe carência de investimento na área, mas isso tem sido revertido com o Programa Cisternas, nos diferentes estados amazônicos. “O modelo de implementação valoriza as organizações locais e o uso de tecnologias adaptadas, que não passariam no crivo do saneamento tradicional”, informa a profissional.

SECA

 

Para Cecília, as tecnologias sociais de acesso à água potável se tornam mais importantes ainda diante dos eventos causados pelas mudanças climáticas. “As secas de 2023 e 2024 levaram ao extremo a capacidade de adaptação da população. As cheias e as secas na Amazônia são esperadas, mas o ocorrido nesses anos abalou até mesmo as comunidades de várzea, que convivem com o subir e descer das águas. Esse novo contexto demanda armazenamento de água, algo que nunca foi prioridade na região; também aponta para a necessidade de projetos de saneamento resilientes às mudanças do clima; por fim, aponta para a necessidade de independência energética para o acesso à água, com uso de energia solar”, destaca.

Ufra e UFPA atuam em comunidades

 

A professora Vânia Neu, pesquisadora do Laboratório de Hidrobiogeoquímica da Universidade Federal Rural da Amazônia (Ufra), é responsável por um projeto que já levou sistemas de abastecimento de água a 15 famílias na ilha das Onças, em Barcarena; a um empreendimento na ilha do Combu, em Belém; e a uma escola em Marapanim. 

 

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“O sistema de captação de água da chuva transforma a realidade das comunidades e dos povos afetados pela desigualdade, ao restituírem o direito fundamental ao acesso à saúde, à dignidade e à qualidade de vida”, afirma a professora Vânia Neu (Foto: Ivan Duarte/O Liberal)


A tecnologia é semelhante à utilizada pelo Sanear Amazônia: a água da chuva cai sobre o telhado, escorre por uma calha e é direcionada para um sistema de armazenamento, que despreza o primeiro milímetro cúbico da água, que contém folhas e outros resíduos sólidos. O restante do líquido coletado vai para uma caixa d’água e segue para as moradias, por tubulações. Para ser consumida, passa por desinfecção com hipoclorito de sódio e vela de carvão ativado revestida com feltro. O sistema não usa energia, apenas a força da gravidade. 


“O sistema de captação de água da chuva transforma a realidade das comunidades e dos povos afetados pela desigualdade, ao restituírem o direito fundamental ao acesso à saúde, à dignidade e à qualidade de vida”, afirma a professora. 


Outra instituição superior de ensino paraense que já levou tecnologia semelhante a comunidades ribeirinhas foi a Universidade Federal do Pará (UFPA). O Grupo de Pesquisa Aproveitamento de Água da Chuva na Amazônia, Saneamento e Meio Ambiente na Amazônia, ligado ao Núcleo de Meio Ambiente da universidade e coordenado pelo professor Ronaldo Mendes, implantou o sistema na Ilha Campompema, em Abaetetuba, e também em localidades do oeste do Pará, beneficiando cerca de 150 pessoas.

ÁGUAS PLUVIAIS

 

Da mesma forma que o sistema da Ufra, o da UFPA utiliza a água da chuva, o descarte da primeira água e o direcionamento às torneiras, para depois passar pela desinfecção. Segundo o professor Ronaldo Mendes, as águas pluviais têm vantagens em relação à água do rio ou mesmo à subterrânea. 

 

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Para o pesquisador Ronaldo Mendes, a captação da água da chuva é uma excelente alternativa para fornecer acesso à água potável, sobretudo diante dos períodos de seca extrema, armazenando durante os períodos chuvosos para consumir durante a estiagem (Foto: Igor Mota/O Liberal)


“A água da chuva é muito mais fácil de potabilizar. Ela é muito mais próxima da água potável do que as águas dos rios e igarapés e precisa apenas de procedimentos relativamente simples, com a filtragem e a cloração. Já nos rios e mesmo nos lençóis freáticos, a presença de microplásticos é maior. E também há outras substâncias que podem se acumular nessas águas, como hormônios, medicamentos ou fezes”, explica. “Outra vantagem é que esse sistema não exige energia elétrica, porque muitas comunidades não contam com esse recurso”, completa.


Para o pesquisador, a captação da água da chuva é uma excelente alternativa para fornecer acesso à água potável, sobretudo diante dos períodos de seca extrema, armazenando durante os períodos chuvosos para consumir durante a estiagem. 


A dona de casa Rosilda Nascimento, moradora da ilha das Onças, recebeu a tecnologia da Ufra e faz um comparativo entre o antes e o depois. “Antigamente, era uma dificuldade muito grande. Recebíamos apenas 60 litros de água da prefeitura por semana, o que não era suficiente para uma família. Às vezes, tínhamos que pegar água do rio para consumir. Porque esses 60 litros eram só para beber, não dava para cozinhar, bater o açaí. A gente bebia açaí batido com água do rio. A gente só vivia com roupa encardida, porque tinha que lavar no rio. Foi uma grande melhoria para as famílias contempladas. Hoje tenho água de qualidade para beber, cozinhar, bater açaí, tomar banho, lavar roupa. Veio para mudar nossa vida”, agradece.

DIREITO

 

O professor Ronaldo Mendes lembra que o acesso à água é um direito universal, garantido pela Constituição brasileira. “Infelizmente, o Estado brasileiro ainda não garante esse acesso universal. A universidade trabalha para que esse direito seja garantido, encontrando caminhos reais para que isso possa acontecer. Pretendemos unir o direito à água à nossa capacidade de desenvolver tecnologias, em conjunto com as comunidades, para que isso seja efetivado. A água da chuva literalmente cai sobre nossas cabeças. Você não precisa de bomba ou ir atrás dela. Ela vai aonde você está. Então, entendemos que o uso das águas pluviais amplia as possibilidades de garantir o direito das comunidades à água potável”, afirma.

 

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