O fato de ser um bioma diverso faz da região amazônica um lar para muitas "Amazônias", com porções que se diferem entre si em razão de características próprias. As árvores da faixa sul do ecossistema amazônico, por exemplo, são mais vulneráveis à seca e, portanto, mais propensas a morrer. A conclusão é de um estudo assinado por 80 pesquisadores de instituições científicas brasileiras e estrangeiras, entre elas a Universidade Federal do Oeste do Pará (Ufopa), Universidade do Estado de Mato Grosso, Universidade de Campinas (Unicamp) e Universidade de Leeds, no Reino Unido.
O avanço das possibilidades de seca na Amazônia, uma região de clima equatorial e com muitas chuvas, tem origem na interferência humana no meio ambiente. As queimadas e o desmatamento mudam a configuração do solo, como pontua o professor Everton Cristo de Almeida, da Ufopa, um dos participantes do estudo. Ele lembra que os riscos e consequências relacionados ao desmatamento não podem ser medidos apenas pela área desmatada, já que o corte de árvores nativas provoca o chamado "efeito de borda": as áreas desmatadas afetam diretamente áreas vizinhas de floresta em pé, pois influenciam a transmissão de água entre plantas, gerando um déficit hídrico que potencializa os riscos de seca.
"Isso acelera a perda de condutância, ou seja, a transmissão de água do solo para a atmosfera. A planta é uma bomba de água, transportando água do solo pelo xilema até a atmosfera. Esse processo, que conhecemos por teoria de Dixon, faz a passagem de água pela planta e uma parte é emitida para a atmosfera em forma da transpiração. Quando a planta passa por estresse hídrico, a condutância diminui. E aí temos a embolia do xilema: falta de água na planta que vai cessar a condutância, gerando uma perda de 50% dessa água que vai até as folhas. Em alguns casos, esse déficit pode chegar até 80%", diz o pesquisador.
AMEAÇA
Mas, se há alguns anos, a possibilidade de faixas de seca se estenderem pela Amazônia parecia parte de um futuro distópico, hoje as localidades passando por este problema só se acumulam, inclusive fora da faixa sul da Amazônia. Segundo Everton, o fenômeno já é notado no município de Nova Xavantina, no Mato Grosso, e na Floresta Nacional de Caxiuanã, localizada no município de Melgaço, no Pará. O estudo também incluiu pontos de atenção na Bolívia e no Peru.
"No sul do Amazonas, o efeito da falta de água no solo tem causado a mortalidade acentuada de plantas. Esses longos períodos de seca estão relacionados ao avanço de alguns modelos de desenvolvimento que ajudam na perda de biomassa florestal", avalia.
Com menos água transitando entre árvores, os sumidouros de carbono também são afetados. Sumidouros de carbono são locais em que as quantidades de carbono absorvido são maiores do que as emissões. No sul do Pará e no norte do Mato Grosso, por exemplo, o efeito já é inverso, com ambas regiões se consolidando como fontes de carbono, com maior mortalidade de árvores. A floresta está 30% mais seca e de 2°C a 3°C mais quente.
"A floresta absorve muito carbono, transfere ele para a biomassa florestal e deposita isso no solo. Todo aquele material do vegetal vira nutriente que vai alimentar a floresta. Se você tem diminuição de umidade dos locais, pode diminuir a decomposição, deixar mais lenta a incorporação do carbono no solo. É um bom exemplo do efeito de borda, pois quando você tem o desmatamento ao lado de uma região de floresta intacta, aquela zona ali é algo que a floresta não estava acostumada. Então o microclima muda, a fauna sente, a dispersão de sementes muda, temos aumento de temperatura, o ciclo de chuvas muda, a fauna começa a desaparecer e temos efeitos danosos para pequenos rios e igarapés que permeiam a Bacia Amazônica. A floresta que é derrubada impacta diretamente na floresta que está em pé", afirma Almeida.
Estudo pioneiro contou com 500 amostras de árvores
A pesquisa é baseada em coletas de amostras de mais de 500 árvores em onze sítios da Amazônia brasileira, peruana e boliviana entre 2014 e 2018. Os pesquisadores mediram as características fisiológicas das árvores e analisaram o nível de estresse hídrico das plantas. A pesquisadora Julia Tavares, da Universidade de Uppsala, na Suécia, e autora principal do artigo, acredita que as conclusões do estudo podem contribuir para a conservação de regiões da Amazônia mais suscetíveis a eventos climáticos extremos.
"Para entender padrões de larga escala espacial e temporal na Amazônia, dada a sua grandeza e heterogeneidade, é imprescindível um enorme esforço colaborativo da comunidade científica. Além disso, todo esse trabalho de ecofisiologia requer medidas minuciosas, com as coletas sendo realizadas durante a madrugada e as amostras extraídas do topo das árvores, que tem entre 30 e 40 metros de altura. Para entendermos as nuances das respostas das diferentes florestas amazônicas às mudanças climáticas que já estão acontecendo e às mudanças futuras, é imprescindível o investimento de recursos para realização pesquisa e valorização dos pesquisadores nacionais”, diz Julia em entrevista para a agência Bori.
Níveis dos rios amazônicos são afetados
As secas provocadas pela expansão do desmatamento e das queimadas não afetam somente as árvores. Os rios da região amazônica enfrentaram doze anos consecutivos com a superfície de água abaixo da média. O placar foi finalmente revertido em 2022, com ajuda do fenômeno La Niña.
Conforme dados divulgados pela plataforma MapBiomas Água, a Amazônia apresentou, no ano passado, uma superfície de água de 11,3 milhões de hectares, 13% a mais do que em 2021. Ainda assim, o histórico de secas na região preocupa. Entre 1985 e 2022, a Amazônia viveu 23 anos com superfície de água abaixo da média, 14 anos acima e apenas um ano na média. O pior cenário de seca ocorreu entre 2016 e 2021, quando a superfície de água variou de 8% a 4% abaixo da média. Não faltam exemplos nos últimos anos: a maior seca da história do Estado do Amazonas foi registrada em 2010. Na época, o nível do rio Negro, na capital Manaus, chegou a apenas 13,63 metros. Para se ter ideia, no período da cheia, o rio chega a atingir os 29 metros. Os rios Acre e Solimões também enfrentaram secas históricas em 2022.
As secas também afetam regiões brasileiras distantes da Amazônia. O professor Henrique Barbosa, do Instituto de Física da Universidade de São Paulo, é responsável por um artigo que calculou como a umidade amazônica se transforma em chuva no Sul e Sudeste do Brasil. A pesquisa demonstrou, de forma inédita, que o transporte direto junto com o transporte secundário da umidade da região é responsável por 27% das chuvas nessas duas regiões do País. Ou seja, se há perda de cobertura vegetal na Amazônia, há menos chuvas em outras regiões do País.
Capacidade de adaptação sofre redução
A pesquisadora Monique Rodrigues, do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais, lembra que os Estado do Pará e do Amazonas possuem uma sazonalidade da redução da precipitação de chuva estabelecida após o mês de junho e que pode ir até o mês de novembro, enquanto na região ao norte do Mato Grosso as taxas de precipitação ficam abaixo de 100 mm entre os meses de abril e setembro, podendo chegar a 0 mm de média de precipitação mensal. Essa sazonalidade do regime de precipitação geralmente tem como resposta uma vegetação que está adaptada com esse ambiente, principalmente nas zonas de transição de cerrado e floresta mais densa dentro do bioma amazônico.
Porém, com os extremos de seca, essa adaptação não é suficiente em alguns períodos, gerando a mortalidade das árvores mais altas e também de exemplares em locais com maiores estoques de biomassa na vegetação, como na região leste da Bacia Amazônica. Rodrigues lembra que tratam-se de áreas próximas a estradas e locais de fácil acesso, além de regiões com atividades de mineração e arrendamento de terras para a produção de monoculturas e pecuária.
"Com o aumento do desmatamento dos biomas nativos das regiões, reduz-se a evapotranspiração, aumentam-se os extremos climáticos e temos ambientes e pessoas cada vez menos resilientes e adaptados a esses contextos. A seca é um período seco prolongado no ciclo climático natural que pode ocorrer em qualquer parte do mundo. Porém, quando elas se tornam mais recorrentes, intensas e prolongadas, as espécies mais sensíveis podem sofrer os impactos da indisponibilidade da água. Isso gera mortalidade nos tecidos e células mais sensíveis das trocas gasosas e do equilíbrio osmótico das células das espécies vegetais", aponta.
Consequências mais graves podem ser evitadas
Pesquisadora do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais, Monique Rodrigues crê que o caminho para frear a ameaça da seca é garantir a execução de projetos com viés de soluções baseadas na natureza, com foco na preservação e restauração onde ocorrem os arcos dos desmatamentos. Ela elenca alguns caminhos: investir em sensoriamento remoto, depois classificar e avaliar as dinâmicas de ocupação e uso de cada região e, por fim, identificar atores responsáveis pelas áreas para engajá-los na reversão de processos que causam efeitos climáticos extremos.
"(É importante) identificar os jovens da região, as pessoas vulneráveis e de baixa renda que serão capacitadas e treinadas para implementar as soluções. Outras atividades como instalações de novos viveiros, coleta de sementes, marcações de árvores matrizes com GPS e identificação em tecnologia geoespacial, preparo de mudas, preparo de compostos como terra preta, comercialização de produtos da biodiversidade local e bioeconomia. Muitas vezes existem cooperativas estruturadas e não possuem regularidade jurídica. Também existem equipes de brigadistas voluntários que já possuem estrutura de coleta de sementes e criação de viveiros, mas não possuem recursos para manter periodicamente a atividade", relata.
Segundo a pesquisadora, as formas de financiar esses projetos podem ser via governo federal ou por meio dos mercados voluntários de crédito de carbono, bem como investidores dos setores privados via abatimento fiscal ou responsabilidade socioambiental das empresas.