É impossível contar a história da Amazônia sem falar do ciclo da borracha. A matéria-prima símbolo da economia da região na virada do século XIX para o século XX ergueu palácios e teatros no Norte do Brasil, com a riqueza concentrada nas mãos de uma elite que explorava seringueiros por meio da escravidão por dívidas, conhecida como “sistema de aviamento”.
Hoje, o cenário é outro: os seringueiros extraem látex com o conhecimento adquirido de pais e avós e são remunerados. E não é só isso. Também transformam o produto bruto em sapatos, artigos de decoração e até biojoias. É o caso da cooperativa “Seringô”, que reúne mais de 1,2 mil famílias em torno da extração e beneficiamento do látex, que escorre pelo tronco da árvore conhecida como seringueira (Hevea brasiliensis).
Uma das cooperadas é Maria das Neves Bastos. Ela era uma criança curiosa e fazia questão de acompanhar o avô e os irmãos mais velhos na mata adentro no município de Inhangapi, situado no nordeste do Estado do Pará, sempre que eles iam extrair o látex. Foi assim que ela aprendeu a medida certa de força que precisa aplicar para fazer a linha no tronco da seringueira, bem como a profundidade do corte, que deve ser superficial para não machucar a árvore. O ideal é chegar até às seis horas da manhã na árvore que será cortada.
"Se vir tarde você vai perder tempo, pois bate o vento e o leite sobe todo, vai embora para cima. Cedinho, o leite está do meio da seringueira para baixo, então é o momento ideal do corte. Outra coisa importante é que se cortar sem folha, a árvore morre. Tem que esperar brotar bastante folha. Ela só começa a produzir muitas folhas em julho, que é o ápice da produção. Fevereiro e março são meses com muita chuva, então não cortamos também, pois a água molha o tronco e mistura com o leite, o que afeta a pureza do látex", conta.
Às nove horas da manhã, Maria das Neves e o irmão José do Carmo voltam para a árvore que foi riscada mais cedo e recolhem uma pequena vasilha com cerca de 300 mililitros do leite branco que mais tarde se tornará borracha. No dia seguinte, o processo se repete. Se engana quem pensa que todas as linhas são feitas de uma vez, remetendo a clássica imagem da seringueira com 20 linhas uma abaixo da outra em direção ao meio da árvore, formando um bico. Apenas uma linha pode ser feita por dia. Após 20 dias, completa-se uma bandeira ou painel, que é um espaço delimitado da árvore para a extração.
"Depois de um ano, uma bandeira aberta pode render leite novamente. Às vezes, dependendo da árvore, temos que esperar até dois anos para extrair de novo no mesmo local. É o tempo para a árvore se regenerar. Por isso, também é importante ser gentil nos cortes, sem atingir o caule, pois muita força causa feridas nas árvores e isso significa ainda mais tempo de espera para a regeneração da casca. Algumas árvores pegam três bandeiras. É o mais comum. No máximo, quatro. Mas tem uma enorme na minha área que pega até seis bandeiras e rende muito leite", conta Maria.
Na propriedade da família, José do Carmo é responsável por 120 seringueiras. Já Maria das Neves trabalha em 170. Tudo é planejado para que haja um revezamento perfeito entre as árvores que serão cortadas ao longo do ano, com o objetivo de garantir o tempo necessário de regeneração sem que a produção pare. Depois que o leite cai na vasilha, é preciso deixar a borracha que se amontoa nele descansar por um dia. No dia seguinte, é hora de lavar o material e adicionar um pouco de água sanitária, que ajuda a dissipar o forte odor do látex. Depois disso, basta enxugar o produto à sombra e ele fica pronto para ser vendido. Uma garrafa de dois litros de látex chega a custar R$ 50. Já o quilo da borracha é vendido a R$ 10. Para Maria das Neves, aplicar os conhecimentos que aprendeu com os familiares do passado para gerar renda para a família do presente é motivo de orgulho.
"O meu avô era seringueiro de montar barraca no mato, ficar longos períodos por lá. Antigamente, os seringueiros sofriam muito fazendo borracha... tinha que cortar muita madeira para fazer fogo, ficar enrolando a borracha lentamente para ser defumada no meio da floresta até ela ficar preta, que era a borracha mais cara. Tudo muito rudimentar e com poucos recursos. O vovô tinha uma bacia grande e, quando ficava cheia, ele furava a borracha e passava 20 dias com ela na água. E depois tinha que ir até Belém para vender. Eu ajudava ele e ficava pensando em um dia vender borracha. E é o que eu faço hoje, mas com muito mais estrutura, sem me deslocar para longe e com o apoio da cooperativa. Sou feliz e agradecida, pois a gente sabe extrair e tem para quem vender. Os produtos que são gerados são lindos. É uma completa virada de chave em relação ao passado de escravidão na Amazônia. Hoje, somos remunerados e livres", afirma.
Cooperados criam modelo de economia sustentável
Criada ainda na década de 1980, a cooperativa entendeu que era necessário ir além da extração. Também era preciso capacitar as famílias para agregar maior valor comercial à borracha. Coordenadora pedagógica da “Seringô”, Zélia Damasceno conta que o repasse dessa tecnologia social é fundamental para que o conhecimento sobre a extração do látex não se perca, já que vislumbrar uma possibilidade de renda a partir da floresta incentiva as novas gerações a aprenderem a extrair e beneficiar a matéria-prima. Ela comemora o engajamento de jovens na fabricação de biojoias, especialmente quando eles mesmo criam páginas nas redes sociais para divulgar e vender os próprios produtos.
"A ideia é que todos possam vender por si só, ganhar autonomia, mas quando precisa, também ajudamos fazendo uma ponte com lojas locais. Tudo é aproveitado. Os componentes dos tênis são produzidos na fábrica com a borracha do seringueiro. O látex líquido é usado para pintar camisetas em relevo também, com corantes artificiais ou naturais. E tudo é etiquetado com informações sobre as comunidades e os produtores. E tenho certeza que quanto mais capacitações a gente promove, mais as pessoas vão aprender e repassar o conhecimento para outras. Elas se tornam multiplicadoras desse espírito empreendedor e isso é muito bonito de se ver, porque inclui quilombolas, indígenas e ribeirinhos em um modelo de economia que é sustentável", diz.
Mobilização
Natural do município de Anajás, no Arquipélago do Marajó, Marizeli Freitas é uma das artesãs beneficiadas pelas capacitações da cooperativa. Hoje, ela também dá cursos sobre como produzir folhas decorativas e biojoias nos arredores do bairro onde mora.
"Foi um passo que fez uma diferença enorme na minha vida. Comecei a produzir no mesmo período em que iniciei o curso de Pedagogia. Naquela época, eu trabalhava como serviços gerais, mas eu ganhava muito pouco. Então, a borracha me ajudou no sustento da família e várias portas foram abertas. Me formei e hoje consigo ajudar outras mulheres. Temos tantos sonhos e é bom ajudar outras pessoas a realizarem os sonhos também. Hoje, meus filhos estão envolvidos no projeto. Sabemos que o emprego está difícil, então empreender ajuda muito. Tenho visitado cada vez mais as áreas de seringais próximas, incentivando as pessoas a voltar a produzir borracha. É algo que a natureza nos deu e que pode ser utilizado de maneira responsável e consciente. Adoro ver como as pessoas ficam admiradas quando mostramos o produto final e dizemos que é feito com leite da seringa", destaca.
Fábrica instalada em cidade paraense produz até calçados
A cooperativa possui ainda uma fábrica no município de Castanhal, no nordeste do Estado do Pará, que é responsável por produzir calçados que levam a marca “Seringô” para todo o mundo. São tênis e sandálias que podem ser feitos inteiramente ou parcialmente com borracha, no caso dos produtos que mesclam outros elementos regionais da Amazônia, como a juta. Nenhum produto sai igual ao outro, já que as peças de borracha de diversas cores passam juntas pelo compressor, criando cores e formatos impossíveis de replicar. E tudo isso começou com Francisco Samonek, idealizador da cooperativa que comanda a produção. Ele migrou do Paraná para o Acre na década de 1980 e começou a reunir seringueiros amazônicos em torno de um modelo de negócio horizontal e cooperativo. Ele afirma que o número de 1,2 mil cooperados deve ser celebrado, mas acredita que a cooperativa tem potencial de agregar até 18 mil produtores, artesãos e trabalhadores.
"Cada unidade familiar é uma escola, porque eles aprendem e podem ensinar famílias do entorno com custos baixos. A cooperativa fornece materiais e capacitações, mas essa habilidade da extração é única e secular, que vem de avô para pai e de pai para filho. É uma mão de obra que contribui para a sustentabilidade. Vejo o significado desse novo momento da borracha na região como muito positivo, pois passamos por um momento crítico no planeta Terra. E isso desperta atenção da população para questões ambientais e cadeias de produção inclusivas e sustentáveis. A Amazônia e a produção sustentável na floresta são uma oportunidade, pois se o cidadão da Amazônia tiver renda, ele vai conservar a floresta, pois ele sabe produzir sem destruir. É o que sempre digo: os guardiões da floresta precisam ser incentivados e capacitados para obter rendas dignas. Essa é a chave", avalia.
Brasil perde protagonismo para o Sudeste da Ásia
O mercado da borracha movimenta R$ 28 bilhões por ano no Brasil. Desde os anos 90, o maior polo de produção é o Estado de São Paulo, na região Sudeste, que detém 67% das 200 mil toneladas fabricadas por ano no país, com boa parte dos seringais sendo plantada. No mundo, a liderança na produção fica no Sudeste da Ásia, em países como Tailândia, Indonésia e Vietnã, que, juntos, produzem cerca de um terço das 14 milhões de toneladas de borracha consumidas no mundo. O sucesso asiático no setor data de 1876, quando sementes de seringueiras originárias da Amazônia foram contrabandeadas do Vale do Tapajós para a Inglaterra pelo botânico Henry Wickman. De lá, foram levadas para colônias britânicas, principalmente para a Malásia, que hoje é o sétimo maior produtor do mundo. O transporte dessas mudas foi o prenúncio da derrocada da dominação amazônica no mercado, que viveu um auge entre o fim do século XIX e início do século XX, causando um expressivo aumento populacional na região.
Houve ainda um segundo ciclo da borracha entre 1941 e 1945, durante a Segunda Guerra Mundial, pois os Estados Unidos necessitavam de altos volumes do insumo por causa do conflito. O final da guerra levou a produção da borracha na região amazônica a decair novamente. Hoje, onde prevalece o extrativismo a partir de árvores nativas da Amazônia, o Pará lidera a produção, com 1.412 toneladas produzidas em 2021, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. O Brasil, que até o século XIX foi o principal fornecedor mundial graças ao ciclo da borracha na Amazônia, detém hoje apenas 1,5% deste mercado, segundo dados da Associação Paulista de Produtores e Beneficiadores de Borracha.