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CARGAS

Rios da Amazônia carregam riquezas

Região tem papel central no transporte de mercadorias, mas novos complexos portuários podem gerar impactos sociais e ambientais negativos

Eduardo Laviano

15/06/2023

Nos quatro primeiros meses de 2023, mais de 103 milhões de toneladas de carga passaram pelos 83 portos em operação na Amazônia. Deste total, 78,5% é referente a produtos embarcados, ou seja, com origem na região. A mercadoria que domina as estatísticas é o minério de ferro, que responde por 41% de tudo o que entra nos navios que zarpam da Amazônia em direção a diferentes lugares do mundo. Ainda na lista estão soja (24,9%), bauxita (9,3%), petróleo e derivados (6%) e milho (4%), segundo dados da Agência Nacional de Transportes Aquaviários.


Assim, a região ganha papel central na balança comercial brasileira, uma vez que mais de um quinto dos grãos nacionais saem do Brasil pelos rios da Amazônia, tendo como principal destino a China, que é também o destinatário de 63% de todo o minério de ferro que trafega pela região. Trata-se de uma expansão rápida e bilionária: entre 1993 e 2012, a Amazônia brasileira respondia por 34,18% dos portos em atividade no país. Hoje, o número está em 40,76%. Para comparação, entre 1993 e 2012, o investimento em infraestrutura portuária na Amazônia Legal foi de R$ 5,92 bilhões. Entre 2012 e 2022, os investimentos chegaram a R$ 11,63 bilhões, um crescimento de 96,45%.


Há pontos focais distribuídos pela região. Um exemplo: desde a aprovação de uma lei em 2013 que permitiu a criação de portos privados em rios, pelo menos dez portos industriais foram construídos em torno da cidade de Itaituba, no Pará, em um centro de transportes que liga a BR-163 ao rio Tapajós. A maioria desses portos está ligada a gigantes da agroindústria, como a Cargill, o grupo Hidrovias do Brasil, Cianport e a Unitapajós, uma joint venture entre Bunge e a Amaggi. Somadas todas as empresas, os investimentos para a instalação de complexos portuários na região de Itaituba foram de aproximadamente US$ 150 milhões.


Tudo isso, porém, vem acompanhado de impactos sociais. Jondison Cardoso Rodrigues é pós-doutorando em geografia na Universidade Federal do Pará e pesquisa sobre os complexos portuários na região. Ele lembra que um porto nunca é só um porto. Eles reconfiguram o cenário socioeconômico dos locais onde se instalam, criam distritos industriais com o apoio de governantes locais, fomentam e financiam a expansão ou abertura de rodovias e causam aumento no fluxo migratório para cidades com pouca infraestrutura de saúde, educação, moradia e segurança.


"Há também o impacto na atividade pesqueira, que interfere não só na alimentação, mas em um dos principais meios de obtenção de renda das comunidades ribeirinhas. Além disso, a construção de portos na região também está relacionada com o desmatamento, tanto para a construção dos portos em si como de silos e pátios de triagem. Há um aumento na vulnerabilidade social nessas cidades, pois muitos empregos são criados durante a instalação do complexo portuário, mas são de curta duração. Depois de encerrada a construção, os empregos que levaram migrantes para o local não existem mais. E outro ponto que tem sido cada vez mais relatado é o da grilagem de terra, um desafio histórico na Amazônia", afirma.



Portos e agronegócio garantiram lugar no cenário internacional



O aumento no número de portos da região responde a algumas demandas globais. Na dimensão econômica, a primeira década do século XXI foi marcada por uma conjuntura macroeconômica de excesso de crédito e liquidez mundial e por um boom de commodities que beneficiou economicamente o Brasil. Houve ainda o crescimento do Produto Interno Bruto chinês ano após ano, com cada vez mais consumo e mais investimento em tecnologia e construção civil no país asiático. Isso fortaleceu a ideia de criação de um sistema contínuo de mobilidade induzida de produção de demanda por mercadorias, no caso as commodities agrícolas e minerais. Soma-se a isso a agenda política para produção de infraestruturas globais, incentivada pelo G20, o grupo de 20 países com as economias mais fortes do mundo, bancos e fundos.

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“O Brasil na década de 2000 decidiu jogar o jogo da mundialização por meio do que é elemento congênito do país, que é oferecer matérias-primas", diz Jondison Rodrigues


"O Brasil na década de 2000 decidiu jogar o jogo da mundialização por meio do que é elemento congênito do país, que é oferecer matérias-primas. Foi a maneira que o Brasil achou para ganhar importância no comércio global e por isso vimos tantos investimentos em transporte e comunicações na Amazônia. Na questão portuária, os governos Lula e Dilma fizeram mais de 30 projetos, ações e marcos regulatórios relacionados aos portos, desde integração hidroviária e logística, financiamento de bancos públicos, com foco no grupo Hidrovias do Brasil e Cargill, e um forte incentivo ao agronegócio. Esse modelo de neoextrativismo tem características neoliberais também e é apoiado por governos de esquerda e direita. O resultado é que mais de 40% dos portos na Amazônia são de grupos nacionais ou estrangeiros, ligados a bancos ou a fundos de investimento de Estados-nação. Isso gera um efeito cascata que é fundamental para a sincronização territorial e técnica destas empresas dentro de um mesmo território", diz ele, ao lembrar de iniciativas como o Programa de Aceleração do Crescimento (2007), Plano Nacional de Logística Portuária (2012) e o Regime Tributário para Incentivo à Modernização e à Ampliação da Estrutura Portuária (2013).


A maior expressão do avanço do agronegócio por meio dessa territorialização sincronizada pode ser medida pelo fluxo do transporte de grãos no chamado Arco Norte, que engloba complexos portuários como os de Itaqui, São Luís e Ponta da Madeira (no estado do Maranhão); e em Belém, Barcarena, Santarém e Itaituba (no estado do Pará). Enquanto entre 2010 e 2022 a movimentação de grãos teve alta de 181,49% no Brasil, os portos do Arco Norte tiveram aumento de 693,07%. Para se ter ideia, durante a alta safra da soja, cerca de 1.500 caminhões transitam diariamente em Miritituba, distrito de Itaituba, onde vivem 15 mil pessoas.

Ouça o podcast em inglês:



“Todos os projetos desde a década de 1950 articularam rodovias com ferrovias, hidrovias e portos”



O geógrafo Andrei Paiva Rodrigues aponta que, no médio Tapajós, algumas vias navegáveis passam a ser objeto de crescente controle por empresas e grupos políticos por estabelecerem uma ligação entre grandes áreas produtoras e portos estratégicos e modernos. Em outros casos, por permitirem acesso e integração aos modais rodoviários e ferroviários de exportação, aumentando a fluidez e opções de circulação. Com mais rodovias, o impacto ambiental é acompanhado por impactos no modo de vida de áreas urbanas na região, muitas vezes localizadas nas margens de rodovias. "O sobre-uso do rio e das vias urbanas, com a circulação e presença crescente de veículos graneleiros, como carretas, embarcações e automóveis, promovem grande pressão sobre as vias urbanas, tendo como consequência um aumento excessivo no trânsito, inclusive com congestionamentos na BR-163, formação de nuvens de poeira e interferência no conforto ambiental com enormes implicações sobre a saúde e o ecossistema", pontua ele no estudo "Cidades e portos na Amazônia Central".


Ele destaca que iniciativas de ampliação e modernização de rodovias e ferrovias registram avanço no município de Itaituba e entorno, por exemplo, como a estrada de ferro entre Lucas do Rio Verde (MT) e Itaituba (Ferrogrão, EF- 170), com extensão de 933 km e investimentos previstos que ultrapassam os R$ 8,26 bilhões, e a complementação de dois ramais: Santarenzinho (entre Itaituba e Rurópolis, com cerca de 32 km de extensão) e Itapacurá (em Itaituba, com aproximadamente 11 km de extensão), assim como o asfaltamento e  concessão da  BR-163, com extensão de 1.009 km e investimentos de R$ 1,76 bilhões, ligando os distritos de Miritituba e Itapacurá, em Itaituba, aos principais terminais portuários do rio Tapajós e às áreas produtoras do Mato Grosso, Mato Grosso do Sul e o região Sul do Brasil.


Jondison Rodrigues destaca que este sempre foi o curso natural da instalação de infraestrutura portuária no Brasil. "Todos os projetos desde a década de 1950, como a Belém-Brasília, articularam rodovias com ferrovias, hidrovias e portos. Quanto mais portos, mais rodovias surgem. A tendência é continuar. Há expectativa pela Ferrovia Paraense, pelo Ferrogrão, pela derrocada do Pedral do Lourenço, que já tem licença prévia, além de termelétricas em Barcarena. É um efeito dominó e aqui se encontra ambiente fértil para essa privatização de territórios, rios e florestas. É um conceito de colonialidade, de civilizar outras sociedades para que elas se tornem produtivas. Sempre há esse olhar para a Amazônia que é de modernizar a região, trazer tecnologia e grandes empreendimentos que irão solucionar os problemas daqui. Entretanto, seguimos vivendo em atraso em muitos aspectos", argumenta.



Impasses socioambientais são principal desafio



Em maio de 2023, a organização não-governamental (ONG) Terra de Direitos publicou um relatório sobre os impactos socioambientais da atuação da Cargill nos municípios de Santarém e Itaituba, no oeste do estado do Pará. De acordo com a ONG, a atuação da empresa descumpre leis desde que a companhia obteve as licenças para iniciar a construção de uma Estação de Transbordo de Carga (ETC) em 2000 e passou a operar em 2003, em Santarém. Em 2004, movimentos sociais da cidade passaram a protestar contra violações que incluíam a falta de apresentação de estudos de impacto ambiental e, por conseguinte, a ocupação irregular da praia de Vera Cruz para a construção dos silos para armazenamento de grãos e de um dique de 580 metros. De lá para cá, as denúncias de violações nos processos de licenças e de expansão do porto só se avolumaram e o conflito nunca foi pacificado.
Dez anos depois, a Cargill começou a se instalar em outra parte do rio Tapajós: o município de Itaituba. Segundo a ONG, o porto da Cargill repetiu e intensificou uma série de violações de direitos e impactos socioambientais na região e atua com indícios de irregularidades, além de ter a licença de operação vencida desde abril de 2022.


"Durante todo esse tempo, organizações quilombolas, indígenas, ribeirinhas e agroextrativistas apontaram de diversas maneiras os impactos do porto da Cargill e de toda a cadeia de produção da soja. Foram diversas irregularidades no licenciamento ambiental, com impactos no rio e intensificação do tráfego, impossibilitando que essas áreas fossem propícias para a pesca, como eram antigamente. Além disso, houve impacto nos sítios arqueológicos e não houve nenhuma política adequada de compensação. A reparação parte da ideia de reconhecer os danos causados e que se faça uma consulta prévia para a renovação da licença, bem como que as condicionantes sejam cobradas pelos órgãos competentes. Em Itaituba também não houve consulta prévia, livre e informada. São impactos que não dizem respeito a somente uma empresa e que precisam ser avaliados", diz o assessor jurídico da organização, Pedro Martins.


Em nota, a Cargill repudia as acusações do relatório e afirma que nunca foi procurada pela Organização Não Governamental (ONG) Terra de Direitos. "Em relação ao porto de Santarém, a renovação da licença de operação foi expedida pela Secretaria Estadual de Meio Ambiente e Sustentabilidade (Semas) em novembro de 2021. Cabe esclarecer que em momento algum operamos esse terminal sem as devidas autorizações para tanto. Em relação à estação de transbordo de Miritituba, não é verdade que esta unidade funciona sem licença desde abril de 2022. Esclareça-se que tal licença era originalmente válida até abril de 2022, mas, em dezembro de 2021, demos entrada no pedido de renovação da licença de operação, portanto, dentro do prazo legal para fazê-lo", afirma.