Fruta nativa da Amazônia, o cupuaçu é conhecido pelo sabor ácido, concentrado e que dá origem a suco, sorvetes e doces típicos da região, consumido tanto no dia a dia quanto em ocasiões especiais - como os tradicionais cremes de cupuaçu, comuns nas festas de aniversário, Natal e fim de ano. Mas, para além do costume da população local, existem diversos potenciais ainda pouco explorados - um deles é o cupulate, produto semelhante ao chocolate tradicional.
O cupulate pode ser produzido tanto em formato de barra ou bebida, assim como aquele feito de cacau, e um dos pontos que tornam isso possível é que o cupuaçu (nome científico Theobroma grandiflorum) pertence ao mesmo gênero que o cacau (Theobroma cacao). Por fora, ambos os frutos parecem diferentes - o cacau é mais alongado, tem uma casca mais rugosa, e o cupuaçu é mais arredondado e com casca lisa. Mas suas amêndoas (parte aproveitável da semente) são bem similares, mesmo em aparência, e é dessa parte do fruto que se faz o chocolate e o cupulate.
Os dois produtos possuem textura, sabor e aroma semelhantes, mas o cupulate é mais cremoso, dissolvendo-se facilmente ao comer. “Outra vantagem do cupulate em relação ao chocolate do cacau é que o derivado do cupuaçu tem teor de cafeína quase inexistente. Isso é bem interessante para nichos de mercado para idosos ou pessoas que têm ansiedade, insônia, poderem comer o doce de noite sem problemas”, explica Rafael Moyses Alves, pesquisador da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) Amazônia Oriental, que trabalha com cupuaçuzeiro há mais de 20 anos.
Baseado no conhecimento ancestral da região, de comunidades que já produziam o cupulate artesanalmente, pesquisadores da Embrapa desenvolveram um processo tecnológico para produção do produto, baseado em pesquisa científica, e criaram também o nome "cupulate", que, desde 2015, é marca registrada da Empresa. O registro teve o objetivo de garantir que a Amazônia, de onde a planta é nativa, mantivesse a propriedade intelectual do nome e não corresse o risco de ver outros países reivindicarem esse direito, como aconteceu nos anos 2000, quando as multinacionais Asahi Foods e Cupuaçu International registraram o nome "cupuaçu" como marca exclusiva do Japão - assunto que gerou uma batalha judicial e, por fim, a anulação do registro feito pelas empresas estrangeiras.
O produto cupulate, em si, e o processo tecnológico de fabricação, desenvolvido na década de 1980 pela pesquisadora aposentada Raimunda Fátima Ribeiro de Nazaré, da Embrapa Amazônia Oriental, chegou a ter uma patente registrada pelo órgão, já expirada. Hoje, essa técnica é de domínio público.
"Já se produz bastante cupuaçu na região, mas ainda muito voltado para o uso da polpa e muitas vezes as sementes são simplesmente descartadas. Com a produção do cupulate, tem-se mais uma possibilidade de aproveitamento do fruto, contribuindo para agregar valor no cultivo do cupuaçu, gerar renda e também garantir mais sustentabilidade", explica o pesquisador da Embrapa. As sementes do cupuaçu representam boa parte do fruto (cerca de 20%) e, segundo Alves, são a parcela com melhor valor nutricional, rica em lipídios e em proteína. Depois de extraídas as amêndoas, elas são fermentadas, secas, torradas e moídas para se obter o cupulate.
Dificuldade - Para quem já produz chocolate a partir do cacau e tem os equipamentos e expertise nesse segmento, acrescentar o cupulate no catálogo é vantajoso porque as sementes do cupuaçu duram mais tempo e são mais baratas que a do cacau (justamente por serem subexploradas, atualmente). No entanto, há ainda um gargalo para a indústria: a retirada da película que cobre a amêndoa do cupuaçu é mais difícil que a do cacau e não existe ainda um equipamento que faça esse processo automaticamente, então, até o momento, é feito artesanalmente, o que acaba sendo mais demorado e trabalhoso. "Precisamos continuar pesquisando e investindo para simplificar essa etapa e tornar essa produção mais atrativa para o mercado", avalia Alves.
Origem remete às comunidades tradicionais
No Brasil, ainda são poucas as empresas que fabricam o cupulate, como a De Mendes, sediada em Santa Bárbara, interior do Pará. O proprietário, Cesar de Mendes, nasceu em Macapá, capital do Amapá, e cresceu na capital vizinha, Belém (PA), carregando consigo as tradições da Amazônia. Via sua avó e mãe fazendo chocolate e suco de cacau com o fruto colhido do pé. Nem imaginava que um dia se tornaria chocolatier, como são conhecidos os especialistas em chocolates.
A De Mendes começou a produção com o chocolate de cacau mesmo e apenas a partir de 2019 incorporou o cupulate. Hoje, são comercializadas duas opções de tablete do tipo: a Kukuni (70% de cupuaçu) e a Amabela (53% de cupuaçu). A primeira é feita a partir da colheita da Colônia Chicano, em Santa Bárbara, no Pará, que planta o cupuaçu em sistema agroflorestal - os sistemas agroflorestais são que aqueles que recuperam a área degradada da produção agrícola, em modelo que associa árvores com culturas agrícolas e, às vezes, também com animais.
Já a segunda é com a colheita da Associação de Mulheres Trabalhadoras Rurais do Município de Belterra (sudoeste paraense), a Amabela - que dá nome ao produto final. Foram elas, na verdade, que apresentaram ao empreendedor sua técnica tradicional de tratamento das sementes de cupuaçu, transmitida por gerações. "Eu já havia experimentado cupulate algumas vezes antes, mas não gostava do sabor, foi só a da Amabela que me animou mesmo a trabalhar com essa linha", conta De Mendes. Segundo ele, a técnica da Associação mantém um sabor e frescor do cupuaçu.
Foi a partir desses conhecimentos de Belterra que o empresário começou a fazer testes na fábrica e repassou o aprendizado à Colônia Chicano, com quem já trabalhava na fabricação de chocolates há mais tempo. "Os sabores dos dois tabletes são bem similares, só muda mesmo a porcentagem do cupuaçu. O gosto lembra um pouco a polpa de cupuaçu. O perfume e acidez do fruto dão um toque diferente. Agora, ambos são campeões de venda na De Mendes", destaca.
O sucesso tem sido tão grande que mesmo no exterior, quando o proprietário leva os produtos para exposições internacionais, o estoque acaba rápido. As vendas no Brasil são feitas em lojas físicas e online, sendo São Paulo o maior mercado, superando até a clientela de Belém.
Cultivo do fruto ainda se concentra na agricultura familiar
O cupuaçu é uma fruta que, na floresta nativa, vem de uma árvore muito alta (pode chegar a 15 metros de altura) e sua polpa é rica em vitamina C, vitaminas do complexo B e sais minerais. Com intervenção da Ciência, diversos avanços de melhoramento genético foram feitos para aumentar a competitividade da produção do cupuaçu, como cultivar cupuaçuzeiros mais baixos (facilitando a coleta e reduzindo as perdas de frutos) e mais resistentes a doenças.
Segundo Rafael Moyses Alves, da Embrapa, a cultura de produção de cupuaçu ainda é concentrada em pequenos produtores, na agricultura familiar. E algumas das dificuldades passam justamente pela falta de organização social desses grupos e pela ausência de dados oficiais. "A gente não sabe, com precisão, o quanto se produz na região. Cabe a cada estado fazer esse monitoramento. E os produtores de cupuaçu não possuem uma organização que permita se juntar para compartilhar experiências e buscar recursos, melhorias, juntos", avalia.
Alguns estados computam sua produção, como o Instituto de Desenvolvimento Agropecuário e Florestal Sustentável do Amazonas (IDAM), que contabilizou 9 milhões de cupuaçus produzidos no estado em 2021 (quantia em unidade). O Liberal Amazon solicitou os dados aos demais estados da Amazônia Legal, mas, até o fechamento desta edição, apenas Maranhão e Acre, além do Amazonas, deram retorno, informando que não possuem dados de produção de cupuaçu.
Manteiga extraída da semente tem diversas aplicações
A partir da descoberta do potencial da semente do cupuaçu, abriu-se um leque de possibilidades de uso. Além do cupulate, essa parte rica em óleos serve para produzir uma manteiga que hoje já é aproveitada pela indústria de cosméticos e também para produção de chocolates que misturam a manteiga de cacau e de cupuaçu.
Uma das fabricantes desse tipo de chocolate é a Cacau Way, empresa formada pela Cooperativa Agroindustrial da Transamazonica (Coopatrans), sediada em Medicilândia, no sudoeste do Pará.
"A gente via que as pessoas aproveitavam a polpa do cupuaçu e a semente era descartada, mas que ela tinha bastante manteiga, assim como a de cacau, e podia agregar valor aos cooperados", conta Hélia de Moura, uma das sócias da Cacau Way.
Hoje, a Cacau Way tem três produtos desse tipo: o tablete com 52% de manteiga de cupuaçu, lançado há mais de cinco anos; o chocolate branco com 50% de manteiga de cupuaçu, lançado em 2021; e o Choconuts, uma pasta de cacau que, na sua composição, leva manteiga de cupuaçu, lançada em setembro de 2022.
De acordo com Moura, o toque do cupuaçu é sutil. "É como se tivesse comendo chocolate normal, não difere muito da manteiga de cacau. O diferencial está na sustentabilidade, utilizando mais produtos da floresta", ressalta.
Por enquanto, a empresa não tem planos de incorporar o cupulate em si na sua linha de produtos, justamente pela dificuldade que se tem de retirar a película que cobre a amêndoa do cupuaçu. "Mas queremos ampliar essa produção usando as amêndoas de cupuaçu, vendendo elas em natura, inclusive. Essa manteiga está muito no auge. É cicatrizante, protetor solar natural, boa pro cabelo, são diversas vantagens", complementa.
A Coopatrans tem 40 sócios atualmente, sendo 37 agricultores e três pessoas da área administrativa. Suas vendas são feitas pela internet, lojas físicas e revendedoras e já chegam, além do Pará, no Maranhão, Goiás, Rio Grande do Sul e São Paulo.
Projeto aposta no potencial industrial do cupuaçu
Pensando no potencial ainda pouco explorado dos produtos da floresta, um grupo de produtores e pesquisadores criou o Instituto Amazônia 4.0. Desde 2017, o projeto vem sendo liderado pelo climatologista Carlos Nobre e pretende instalar os primeiros protótipos de fábricas-laboratórios para a Amazônia para atuar no beneficiamento de castanha-do-Pará, cupuaçu e cacau.
Um dos membros do grupo é o próprio Cesar De Mendes, que foi convidado por sua expertise em cacau. A ideia é promover condições para que a Amazônia deixe de ser apenas uma fonte de matéria-prima desses frutos para também ser o local de industrialização e beneficiamento, aumentando, assim, o valor agregado dos produtos gerados na região, trazendo mais renda e qualidade de vida às comunidades que vivem da biodiversidade amazônica.
A meta inicial era montar Laboratórios Criativos da Amazônia (LCAs) desde o ano passado, mas, até o momento, nenhum foi inaugurado por dificuldades logísticas que o Instituto encontrou no meio do caminho, como a contratação de fornecedores para produção de material didático.
Os laboratórios são móveis e projetados em um tipo de estrutura arquitetônica normalmente em formato de cúpula ou abóbada, conhecido como domos geodésicos, alimentados por energia solar fotovoltaica, e com conectividade, para circularem pelas diversas comunidades da Amazônia.
A construção da primeira estrutura, porém, já foi iniciada e a expectativa, agora, é de, até o final de janeiro de 2023, se instalar o primeiro LCA, que terá como foco o cacau e o cupuaçu, no estado do Pará. De início, a estrutura transitará pelas comunidades para sua capacitação, por dois meses em cada local, a iniciar pela Reserva Extrativista Tapajós-Arapiuns, em Santarém, sudoeste paraense.
Os LCAs almejam estimular o desenvolvimento da capacidade empreendedora centrada em produtos não madeireiros da biodiversidade amazônica. Além da instalação das fábricas, o Amazônia 4.0 deve levar capacitação profissional às comunidades, para que elas possam se apropriar dos mecanismos e serem os próprios produtores industriais da região.