Conhecido internacionalmente, o açaí é um fruto com ricos valores nutricionais, como vitaminas, antioxidantes, gorduras e proteínas. Consumido como alimento tanto fora quanto dentro do Brasil, a extração vegetal no país se concentra totalmente nas plantações de açaízeiros da Amazônia Legal, que somaram mais de 220 mil toneladas, em 2020, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
Além de fazer parte da cultura alimentar, o açaí na região serve de fonte de renda para muitas famílias, desde o extrativismo até os pontos de venda da polpa nas cidades. Diante da sua importância para a região, cientistas têm descoberto outras possibilidades de fazer o fruto ser ainda melhor aproveitado. Na Universidade Federal Rural da Amazônia (UFRA), localizada no Pará, estado líder na extração do açaí, estuda-se o uso do caroço para substituir a madeira na geração de energia limpa e bioprodutos.
A pesquisa foi coordenada pela professora Lina Bufalino, que é paulista e tem experiências anteriores com a criação de bioprodutos a partir de fibras de bagaço de cana de açúcar e de milho, dentre outros. “A fibra é uma célula que a gente tem na planta que é muito resistente, não degrada fácil, tem longa duração. E a gente reparou que tudo que era fibroso poderia ter usos que substituíssem a madeira. Se a gente faz MDF com a fibra de madeira, por que não fazer com a fibra de outros materiais?”, contextualiza.
Na região Norte, a professora observou o consumo do fruto na Amazônia brasileira, que se dá principalmente pela produção artesanal da polpa líquida, disponível em diversos pontos de venda pelas cidades. Após a retirada do líquido, o que resta é o resíduo, o caroço, que muitas vezes é descartado em sacas, em grandes quantidades, e levado a lixões.
“Quando eu notei esse resíduo, a primeira coisa que reparei foi a quantidade de fibras, aqueles ‘cabelinhos’ em volta do caroço de açaí”, recorda Lina. O aspecto chamou atenção porque toda fibra tem grande potencial para gerar bioprodutos. “Tem potencial de fazer, a partir dessa fibra, carvão, MDF, papel e outros bioprodutos”, complementa.
Mas, além disso, o caroço tinha potencial para bioenergia, que é a energia obtida a partir da biomassa, que é a matéria orgânica de origem vegetal ou animal. No projeto, a biomassa seria o caroço do açaí, que, ao ser submetido à combustão, tem as ligações químicas quebradas e pode gerar energia térmica ou elétrica. O primeiro passo foi avaliar o potencial bioenergético do caroço em si. “Avaliamos que em uma só unidade do resíduo se tem alta densidade de energia estocada. E o caroço tem um formato interessante para esse uso, por ser pequeno e fácil de transportar”, informa.
De acordo com ela, as características do caroço de açaí são muito parecidas com as do eucalipto, principal matéria-prima usada hoje para fabricação de carvão vegetal na região. Desse modo, o resíduo deixaria de ser um simples lixo para ser usado em fornos, como em pizzarias, em substituição à lenha e ao carvão. “Uma pequena desvantagem que observamos, em comparação ao carvão vegetal do eucalipto, é o teor de cinzas que é maior, mas já estamos trabalhando para ver como contornar isso”, pondera.
Segundo a professora, atualmente algumas olarias já utilizam o caroço de açaí como fonte de energia, de forma amadora. Mas o objetivo agora é avançar nas pesquisas para que se possa levar a inovação a uma escala industrial. Para isso, é preciso que se faça mais testes para compreender a fundo os limites e melhores condições de uso do recurso. Por isso, uma das especificidades que o grupo de pesquisa analisa, no momento, é se o armazenamento inadequado do caroço do açaí (ensacados em locais expostos pegando sol e chuva) afeta as propriedades do resíduo.
Fibras do fruto podem virar embalagens sustentáveis
Ao estudar os potenciais de uso das fibras (os “cabelinhos”) do açaí, o grupo de pesquisa ainda criou o nanopapel, um tipo de plástico filme, por meio do isolamento da celulose, um dos componentes dessa matéria-prima. Segundo a professora, esse filme pode ser aplicado em embalagens sustentáveis, e até em embalagens “inteligentes”, que podem mudar de cor se a comida apodrecer. “Tudo isso tem muito potencial, já criamos o protótipo, agora estamos estudando para avançar. O que vamos fazer, agora, é tentar melhorar, em um processo mais intenso, misturar outros componentes para ver se mudam as características dessa fibra”, explica. A equipe do projeto envolve estudantes e professores parceiros da UFRA e da Universidade Federal de Lavras, em Minas Gerais, onde a equipe faz a utilização do equipamento de fazer nanofibras.
A professora destaca que aproveitar esses caroços de açaí que seriam descartados traz não apenas possibilidades de ter uma matéria-prima mais barata, mas benefícios ao meio ambiente. “Se esse descarte inapropriado parar nos rios, causa assoreamento. Se ele fica acumulando nos lixões ou nas ruas, fica degradando o meio ambiente ao emitir gás carbônico no ar. E ainda pode acumular animais peçonhentos”, descreve.
Pesquisadores buscam aproximação com startups
Após a fase inicial da pesquisa, que comprovou todos esses potenciais do caroço do açaí, o laboratório da equipe no momento passa por uma expansão, para que possa se tornar um centro de referência e possa atuar junto ao mercado. “As startups, por exemplo, estão se atentando para esse potencial do açaí, para transformarem o que pesquisamos em uma realidade comercial”, aponta a professora.
No momento, inclusive, ela está articulando parceria com uma empresa para gerar uma placa de cimento reforçada com fibra do açaí. “Mais uma vez, o açaí substituiria a madeira e essa placa pode ser usada para fazer piso e forro de teto. O composto tem muita vantagem em uma região quente como a nossa, porque é muito mais resistente ao cupim e à umidade”, discorre. Atualmente, o grupo está na fase de aperfeiçoamento do processo para poder atender às normas de comercialização.
“Meu principal foco agora é fazer papel e nanopapel. Já concluímos algumas pesquisas e os resultados são promissores. Fazendo parceria com uma empresa de cosméticos, um sabonete feito de insumo amazônico poderia já vir embalado em um papel feito de açaí”, exemplifica. “Com tudo isso, podemos substituir o que vem de petróleo, tanto a energia quanto o plástico, para fontes sustentáveis, o que seria muito mais ecologicamente correto”, prospecta.
As novas utilidades também podem gerar renda para a comunidade, desde a coleta dos caroços do açaí nos pontos de venda até a separação da fibra do caroço, além de empregos diretos e indiretos gerados pela indústria.
Caroço do açaí transformado em ração para animais
No Sul do Amazonas, estado com a segunda maior extração de açaí do Brasil, foi testado o uso do caroço do açaí para alimentar porcos. Divulgada em 2020, a pesquisa contou com uma equipe multidisciplinar do Instituto Federal do Amazonas (IFAM) e da Universidade Federal do Amazonas (UFAM), das áreas de medicina veterinária, agronomia, zootecnia e técnico em agropecuária.
O projeto foi coordenado pelo médico veterinário Idalécio Pacífico e realizado no município de Lábrea, no Amazonas. “É uma região que produz açaí e que, ao mesmo tempo, tem uma carência muito grande de alimentação animal, porque os insumos vêm de outros estados e chegam com alto custo, especialmente no período chuvoso. Os agricultores familiares, sem conseguirem comprar esses alimentos, especialmente o milho e a soja, já davam de vez em quando o caroço do açaí puro com um pouco de sal para os porcos”, situa o veterinário.
Desse modo, os pesquisadores decidiram testar rações com diferentes níveis de inclusão do caroço de açaí em suas composições. Depois do período de tratamento, avaliaram que não havia diferenças significativas em comparação aos suínos que se alimentaram com ração tradicional.
Após comprovar o potencial do caroço de açaí para compor rações alternativas para suínos, o projeto foi finalizado. Mas, segundo Idalécio Pacífico, tem potencial para ser continuado, investigando se há fatores que podem colaborar negativamente na absorção de vitaminas e minerais dos suínos e testando a alimentação em outros animais, como aves.
Tecnologia desenvolvida na UFPA resulta em pó e azeite de açaí
Na Universidade Federal do Pará (UFPA), um grupo de pesquisa coordenado pelo engenheiro químico Raul Carvalho Júnior, desenvolveu a “tecnologia supercrítica” para extrair o pó e o óleo do açaí. O objetivo inicial era solucionar um problema comum de paraenses que viajam para fora do estado: obter açaí de qualidade em qualquer lugar, sem que o alimento precise ser congelado para transporte e comercialização, preservando as características do fruto tão importantes para o paladar paraense.
“A ideia era separar o pó e o óleo do açaí, fazendo com que os compostos bioativos do fruto, que são altamente oxidativos, não sofressem degradação com facilidade na presença da luz solar e em altas temperaturas. Obtendo o pó e o azeite separados, imaginamos que esses produtos pudessem ser comercializados separadamente. Depois que a pessoa comprasse e levasse para casa, ela poderia misturar os dois componentes junto com água, e assim, obter açaí em qualquer lugar”, relata.
Entretanto, os resultados da pesquisa superaram as expectativas do grupo, que percebeu diversas outras aplicações dos subprodutos. “O óleo do açaí é como um azeite vegetal, com mais propriedades funcionais, que pode ser consumido na nossa dieta diária, inibindo antioxidantes do corpo, proporcionando ômega 3, vitamina E, vitamina A. O pó do açaí também é riquíssimo em proteínas, minerais e composto bioativo antioxidante, como a antocianina, que podem ser usados na indústria de alimentos e de cosméticos, além da área medicinal. Mas essa área ainda requer alguns estudos”, detalha Raul.
Com as descobertas, Raul acredita poder ampliar o mercado paraense: “O açaí ainda é comercializado hoje de forma muito rudimentar, exploratória e extrativista, sem grandes benefícios para as comunidades ribeirinhas, que plantam, de fato. Isso acontece porque vendem o açaí simplesmente para tomar, a única qualificação é se ele é fino ou grosso, se está azedo ou não. Com essa tecnologia, o Pará teria a oportunidade de comercializar um novo produto beneficiado, podendo negociar direto com as indústrias, o que agrega valor a toda a cadeia de produção”, cogita o pesquisador.
Subprodutos mantém as principais propriedades do açaí
Além da obtenção de dois novos produtos para o mercado, um dos principais pontos positivos da pesquisa é o próprio processo de produção, pois, segundo o pesquisador, a tecnologia desenvolvida não oferece impactos negativos para o meio ambiente, por ser totalmente livre de substâncias tóxicas, com baixo custo operacional. “Trabalhamos com o chamado ‘ponto crítico’ da relação entre pressão e temperatura de uma substância. No caso, colocamos a polpa do açaí em uma coluna de aço e inserimos dióxido de carbono, o CO2, em estado ‘supercrítico’ - uma temperatura e pressão específicas. O CO2 tem a capacidade de penetrar na estrutura do açaí e extrair a gordura da polpa, resultando no óleo da fruta. Depois, o CO2 evapora e, como produtos finais, nós temos o pó e o azeite de açaí”, descreve.
Os subprodutos obtidos mantêm preservadas as principais propriedades do açaí. “O açaí continua o mesmo açaí, só que sem o azeite, sem a gordura vegetal. Por isso, nós chamamos o pó do açaí de ‘fatty free’. Fica um pozinho desengordurado, mantendo a proteína, a fibra, os minerais e a antocianina, que é a substância que dá a cor púrpura do açaí. Como os elementos foram separados, a gente acaba aumentando ainda mais a concentração dessas substâncias nos subprodutos”, comenta.
Agora, os pesquisadores se articulam para, por meio de uma startup no Parque de Ciência e Tecnologia (PCT) do Guamá, focar no potencial de fabricação dos produtos, que têm múltiplas aplicações na indústria.