Quanto mais os estudos sobre a Amazônia se aprofundam, mais os cientistas e pesquisadores descobrem características endêmicas responsáveis pela manutenção do bioma.
A Floresta Estadual (Flota) do Paru, na divisa entre os estados do Pará e do Amapá, é um bom exemplo de como a região amazônica é um lugar singular.
Ouça o podcast em inglês:
Foi lá que o Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon) descobriu, em setembro de 2022, a árvore mais alta da região: um angelim-vermelho de aproximadamente 400 anos, 9,9 metros de circunferência e 88,5 metros de altura.
É o equivalente a um prédio de 30 andares. Bem maior do que alguns monumentos que muitos sonham em ter uma foto ao lado, como o Cristo Redentor (38 metros) e a Torre de Pisa (57 metros).
Este angelim-vermelho seria, por si só, uma descoberta notável.
"Mas o que descobrimos lá foi um santuário de árvores gigantes, até com mais de 70 metros, quando o comum é que elas tenham 25, 30", conta Jakeline Pereira, engenheira florestal que faz parte do conselho gestor da Floresta Estadual, que tem 36 mil quilômetros quadrados.
Jakeline Pereira é pesquisadora do Imazon e trabalha na região há 15 anos, onde realizou levantamentos socioeconômicos e catalogou aspectos físicos, como o relevo e a hidrografia.
Ela descreve o local como uma floresta muito densa e fechada, com árvores altas e folhas muito grandes, cercadas por rios bastante encachoeirados e com corredeiras, o que impede a passagem de lanchas em determinados pontos.
"Tem algumas áreas altas e com paredões de pedra enormes. E há também áreas com montanhas, sem contar a parte que chamamos de cerrado amazônico. É lindo", relata.
Levantamentos do Sistema de Alerta de Desmatamento (SAD) do Imazon, que monitora a região via satélite, mostram que a floresta já perdeu 46,5 quilômetros quadrados de cobertura vegetal desde 2008.
Já os dados do Projeto de Monitoramento do Desmatamento na Amazônia Legal por Satélite, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), indicam um número maior: 74 quilômetros quadrados.
As informações não surpreendem Jakeline Pereira. Segundo a pesquisadora, a região sul da unidade de conservação tem sido foco do desmatamento.
"Em 2022 o desmatamento estourou. O governo ainda não fez ações, não foi lá na área retirar as pessoas da área, nem foi autuar. E não são populações tradicionais que estão lá. São pessoas do sul e sudeste do Brasil que chegaram ao município de Prainha para colocar gado, plantar milho. Viram uma oportunidade e começaram a fazer Cadastro Ambiental Rural em uma unidade de conservação, o que é ilegal. O perigo é que é justamente lá que vimos as novas áreas de castanhas e já tem até posseiro cobrando pedágio. O garimpo também está avançando, abre clareiras e gera risco por conta do mercúrio. Já chegamos a mapear duas mil pessoas trabalhando com garimpo", alerta a pesquisadora.
O Cadastro Ambiental Rural (CAR) é um dispositivo que delimita as áreas de imóveis rurais e é autodeclaratório. Após campanhas e pressão de ativistas ambientais, a Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Sustentabilidade (Semas) cancelou 456 cadastros em dezembro de 2022. A reportagem entrou em contato com o órgão, mas não obteve resposta.
Produção sustentável
Desde 2006, a Floresta Estadual do Paru é uma unidade de conservação designada ao uso sustentável dos recursos naturais, com 425 mil hectares destinados ao manejo florestal realizado via concessão, destinados para extrativistas que possuem autorização para explorar produtos como castanha, copaíba, andiroba e camu-camu.
De acordo com Jakeline Pereira, a produção sustentável é fundamental para a manutenção da floresta.
Ela lembra, inclusive, que cada vez mais áreas de castanhais têm sido descobertas por agricultores que desbravam a mata, o que é importante para a geração de emprego e renda na região.
"Quando a gente fala de unidade de conservação, as pessoas pensam que é algo intocado, que impede o desenvolvimento. É uma visão ultrapassada. A Flota do Paru está sendo utilizada e gera renda de maneira legal e fiscalizada. Gera royalties por metro cúbico de madeira para cada município por onde ela passa e esperamos que um dia se torne um local de turismo de aventura, com as pessoas visitando as árvores e corredeiras. Além disso, a agricultura familiar já existia antes da criação da unidade e essas famílias foram mapeadas e continuam trabalhando até hoje", conta Jakeline Pereira.
"Apoiar nossa atividade é apoiar a floresta em pé"
Maria Jorge Tavares, de 68 anos, é uma extrativista. Ao lado dos filhos, dá continuidade a uma atividade que aprendeu com o pai e que foi passando de geração em geração: a colheita de castanhas.
A operação é complexa. A maioria dos castanheiros que trabalham às margens do Rio Paru, que dá nome à floresta estadual, vivem longe dos locais de coleta. Maria, por exemplo, mora em Laranjal do Jari, no sul do estado do Amapá. Ela e a família precisam de oito dias somente para chegar ao castanhal, onde acampam por volta de cinco meses, sempre entre fevereiro e agosto, período da safra na região.
O expediente costuma ir das oito da manhã às cinco da tarde. As castanhas são levadas em balsas para o distrito de Monte Dourado, no município de Almeirim, no Pará. Sessenta quilos de castanha-do-Pará bruta chegaram a custar R$ 1.000 no ápice da pandemia de covid-19. Agora, o preço está em torno de R$ 200.
Maria Jorge conta que a produção enfrenta diversos obstáculos, que passam desde a dificuldade de locomoção e falta de estradas na região até as poucas oportunidades de crédito, que, segundo ela, diminuíram nos últimos anos.
"Queria que o Governo Federal olhasse para nós. No governo anterior, foram quatro anos sem financiamento e apoio. Então, estamos com esperança agora que mudou. Foi muito dinheiro bloqueado, zero empréstimo para a agricultura familiar. Apoiar a nossa atividade é apoiar a floresta em pé. Nasci aqui e meus filhos também. Nós e a floresta somos um só. Quem melhor para cuidar da floresta do quem nasceu nela?", diz Maria, que começou a colher castanhas com 11 anos e afirma que não pretende parar tão cedo.
Gerente de operações sociais da Fundação Jari, entidade que presta assistência técnica aos trabalhadores da região, Jorge Rafael Almeida estima que mais de 600 famílias já foram impactadas pelo trabalho, mas destaca que os extrativistas precisam de mais apoio.
Segundo ele, o preço das castanhas flutua muito e o período de safra dura menos que a metade do ano.
"Nós trabalhamos também para quebrar a dependência dos extrativistas com os atravessadores. Os atravessadores financiam gasolina e transporte, mas, em compensação, definem o preço do produto. Vira um sistema de aviamento que predomina em boa parte da Amazônia. A maneira de quebrar isso é com crédito facilitado e temos diversos casos bem sucedidos de pessoas que passaram a bancar a própria operação com ajuda dos bancos. Incentivar a economia familiar é uma das chaves para preservar a Flota do Paru", argumenta Jorge Rafael, que também é membro do conselho gestor da Flota do Paru.
Poeira do Saara fertiliza a Amazônia
É natural pensar que a última vez que a América do Sul e a África estiveram conectadas foi há mais de 240 milhões de anos, quando toda a terra firme do planeta era um único continente que aos poucos foi se separando, chamado de Pangeia.
Mas não é bem assim: os dois continentes ainda estão intrinsecamente ligados, graças à poeira do deserto do Saara, que viaja por meio das chuvas até a Amazônia.
"A Amazônia está integrada na atmosfera do planeta como um todo. Além dela exportar o vapor da água e aerossóis biogênicos, ela absorve gases de efeito estufa e também recebe nutrientes que vêm do deserto do Saara junto com a poeira e as emissões de queimadas, inclusive com esporos e sementes pequenas de espécies que abundam na África", diz Paulo Artaxo, físico e cientista do clima que é vice-presidente da Sociedade Brasileira para Progresso da Ciência.
O fenômeno incide principalmente no extremo norte da Amazônia, onde fica a Flota do Paru, mas é um evento que também já foi registrado em áreas urbanas e mais centralizadas, como Manaus, a capital do estado do Amazonas, local onde Paulo Artaxo e o grupo de pesquisadores que ele coordena encontrou os primeiros indícios de poeira do Saara na região, 25 anos atrás. Segundo Artaxo, o fenômeno é muito importante para a fertilização do bioma.
A Nasa, agência espacial dos Estados Unidos, publicou, em 2015, um estudo que atesta que o deserto envia, anualmente, 22 mil toneladas de fósforo para a Amazônia, nutriente encontrado em fertilizantes comerciais e essencial para o crescimento da floresta, com árvores fortes, altas e resistentes.
É quase a mesma quantidade que a floresta produz com a decomposição das árvores caídas. Segundo a agência, esta reposição de fósforo é importante, pois as fortes chuvas da região "lavam" os nutrientes do solo.
A poeira mais rica em fósforo vem da depressão de Bodélé, no Chade, que há mil anos foi um lago que secou.
Segundo a Nasa, todos os anos 690 mil caminhões de areia atravessam o Oceano Atlântico rumo às Américas do Sul e Central graças à dinâmica das chuvas. Cerca de 28 milhões de toneladas desse volume total caem na Bacia Amazônica.
"Mas não só poeira e fósforo, que é um fertilizante. Há diversos microrganismos, vírus, bactérias, fungos. Estamos quantificando o impacto disso na biodiversidade, medindo as composições elementares dos aerossóis que chegam na floresta", diz Artaxo.
As informações sobre as chuvas são preliminares: em média, caem 52 miligramas por metro quadrado (mg/m2) de ferro, 21 mg/m2 de magnésio e 0,97 mg/m2 de fósforo, compensando parcialmente o volume de nutrientes que o rio Amazonas transporta da floresta para o mar. O estudo é conduzido pela Universidade de São Paulo (USP) em colaboração com pesquisadores da China, Estados Unidos e Alemanha.
Solo da floresta abriga conexão entre árvores
Além de contar com a poeira de um deserto cinco mil quilômetros distante, a Amazônia também tem o apoio da rede micorriza para se manter robusta.
Trata-se de um aglomerado de fungos que interagem debaixo do solo e permitem a troca de nutrientes de uma planta a outra.
O sistema ganhou até um apelido carinhoso: wood wide web, em referência a world wide web, o nome original da internet, substituindo world (mundo) por wood (madeira).
Isso é porque a rede micorriza de fato manda mensagens de uma árvore para a outra, como se estivesse conectada via wi-fi, informando sobre ocorrências na região, clima, ventos, mortes de plantas no entorno e até ataques de pragas. Os fungos agem como defensores e liberam sinais químicos para alertar as espécies vizinhas.
Segundo a cientista e professora de ecologia florestal da Universidade da Colúmbia Britânica, Suzanne Simard, 90% das plantas possuem boas relações com os fungos, com um dependente do outro para viver. Em florestas mais densas, como a Amazônia, é possível observar uma fina teia no chão da floresta, denominada micélio vegetativo, e que contribui largamente para a sustentação e absorção de nutrientes.
As descobertas de Simard estão compiladas no livro "A árvore-mãe: em busca da sabedoria da floresta". "Não é exagero dizer que se trata de uma via super rápida para tráfego de dados, que coloca em contato uma grande população de indivíduos diversos e dispersos", disse ela em entrevista para à rede BBC.