Quando se fala em meio ambiente, os temas mais frequentes são o combate ao desmatamento e a restauração de florestas. Mas existe um lado que, nem sempre, é abordado, e que, este ano, na edição da Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (COP 27), esteve muito presente: a agricultura. Essa foi a primeira edição que contou com um pavilhão oficial de comida e agricultura da ONU no evento, em especial, em torno do conceito de agricultura regenerativa, que defende o modo de produzir ao mesmo tempo em que se recupera a terra e o meio ambiente. O formato é tido como uma saída para continuar preservando o meio ambiente enquanto se coloca comida na mesa da população e a boa notícia é que já vem sendo aplicado na Amazônia brasileira, embora precise ser expandido.
Na agricultura regenerativa, há um cuidado com a saúde do solo, a promoção da biodiversidade e a qualidade dos alimentos gerados. “Embora seja um termo novo, é uma prática que já vem sendo feita há muito tempo no Brasil, e mostra que é possível produzir e recuperar o solo, conservar as espécies polinizadoras, e também aumentar o sequestro de carbono e retenção de água”, aponta Celso Manzatto, pesquisador da unidade de pesquisa do Meio Ambiente da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa). Por ser um conceito amplo, existem várias linhas de frente que podem ser consideradas parte da agricultura regenerativa. “A roupagem é nova, mas já fazemos esse tipo de agricultura desde 1960. Claro que conforme o tempo passa, vamos aprimorando e ampliando esse modelo”, explica Manzatto.
“Temos várias tecnologias já sendo implementadas nesse sentido da agricultura regenerativa, como a recuperação de pastagens, uso de biológicos (em substituição a produtos químicos), matéria orgânica, tratamento de dejetos de animais e irrigação sustentável. Todas essas medidas são uma forma de resiliência frente às mudanças climáticas”, complementa. O pesquisador da Embrapa ressalta que o acesso a essas tecnologias, no entanto, ainda não chegou para todos. E, na Amazônia, por conta dos desafios de logística até chegar à região, o custo para modernizar costuma ser mais caro. “As tecnologias estão postas, agora precisamos ampliar a produção dessas ferramentas, em especial viabilizar o uso para pequenos e médios produtores da Amazônia, que têm menos acesso a informações e assistência técnica. Do ponto de vista financeiro, por exemplo, recuperar uma pastagem degradada ainda não é trivial”, enfatiza Manzatto. Mas o pesquisador se mantém otimista: “Em um futuro breve, vamos melhorar muito, desenvolver novos insumos biológicos, todo um esforço para produzir bioinsumos, como biofertilizantes. Estamos em um momento de transição”.
Renda de produtores de café aumentou em 300% no Amazonas
Algumas iniciativas vêm estimulando o formato de agricultura regenerativa com produtores rurais e comunidades tradicionais. A organização não-governamental ambiental Idesam trabalha, atualmente, com um grupo de agricultores locais de Apuí, um dos municípios mais desmatados do estado do Amazonas, para mudar a realidade local. Ali, o café era cultivado tradicionalmente em monoculturas, o que resultou em uma produção decrescente e com baixo valor agregado. Como saída, os produtores investiram na pecuária, o que levou a um aumento na degradação do solo e piorou a situação de desmatamento local. Agora, com apoio do Idesam, em parceria com outras instituições brasileiras e estrangeiras, essas famílias receberam treinamento e subsídios para plantar o café junto a outras espécies nativas, como o ipê, andiroba e jatobá.
Esse é um tipo de agricultura regenerativa, mais especificamente Agrofloresta Regenerativa, que teve como resultado maior produtividade, pois as diferentes árvores fornecem, entre si, um maior sombreamento, regulação da temperatura e da umidade - ou seja, a biodiversidade deixa todas mais fortes. Atualmente, o projeto atende 57 famílias e já plantou 92 hectares de sistemas agroflorestais voltados para a produção de café. Em 2023, espera-se aumentar para 162 hectares plantados e cerca de 80 famílias beneficiadas. Hoje, a produção de café chega a representar um aumento de 300% na renda anual dos agricultores atendidos pelo projeto.
Prática na região tem raízes em conhecimentos ancestrais
A agrofloresta regenerativa é um tipo de sistema agroflorestal, uma vertente da agricultura regenerativa. O professor da Universidade Federal Rural da Amazônia (UFRA) Breno Rayol, doutor em Biodiversidade, explica que é quando árvores, arbustos e palmeiras com espécies agrícolas e/ou animais são produzidos em uma mesma área. “Não é uma prática nova. Os povos originários já utilizavam e traziam consigo os princípios de funcionamento dos ecossistemas naturais florestais, baseia-se no conhecimento de populações ancestrais e que, atualmente, são reconhecidos à luz da agroecologia”, esclarece.
Além de fazer bem ao meio ambiente, esses sistemas trazem melhorias socioambientais, soberania e segurança alimentar. “Na Amazônia, existem inúmeras experiências exitosas com esses sistemas e uma das mais conhecidas está em Tomé-Açu, no Pará”, acrescenta o professor. Ali, há uma grande comunidade de origem japonesa e, unindo a cultura asiática com as experiências de povos ribeirinhos da localidade, os agricultores familiares locais começaram a produzir em um mesmo espaço uma grande diversidade de espécies frutíferas associadas a espécies florestais de uso múltiplo. Novamente, com a biodiversidade, todas as espécies saíram ganhando.
“Não podemos esquecer também dos quintais agroflorestais, outro tipo de sistema agroflorestal muito comum na Amazônia, no Brasil e nos trópicos”, alerta ainda o professor. Basicamente, é quando os pequenos agricultores mantêm sua criação literalmente no quintal de sua casa, criando ali animais domésticos como galinhas e porcos em meio ao cultivo de variadas plantas. “Os quintais agroflorestais contribuem para a complementação importante de alimentos e de outros recursos para o consumo próprio da família”, aponta. Além de proporcionar uma alimentação diversificada, essa família ainda tem à disposição, durante todo o ano, plantas medicinais, ornamentais, dentre outros produtos.
Plano ABC rege diretrizes para todo o país
Na esfera federal, o “Plano Setorial de Mitigação e de Adaptação às Mudanças Climáticas para a Consolidação de uma Economia de Baixa Emissão de Carbono na Agricultura”, conhecido apenas como Plano ABC, tem o papel de difundir esse modelo de agricultura. Implementado pelo governo federal em 2010, e considerado à época uma metodologia inédita, nasceu com o intuito de dar diretrizes e apoio para que os produtores rurais de todo o país pudessem modernizar seu modelo de agricultura, pensando na sustentabilidade. Desse modo, o plano conta com o Programa ABC, linha de crédito para agricultura de baixa emissão de carbono no país, que oferece taxas de juro menores a produtores que tenham projetos de recuperação de pastagens e florestas ou que adotem tecnologias de produção que contribuam para a redução das emissões de gases de efeito estufa.
O Plano foi ganhando novas proporções no decorrer dos anos. Desde 2016, a Embrapa instituiu a Plataforma ABC, da qual Celso Manzatto é responsável técnico, que faz o monitoramento da redução das emissões do Plano ABC, acompanhando se os produtores rurais estão mesmo conseguindo fazer essa transição. Esse acompanhamento serve, então, para prestar contas à sociedade brasileira e verificar se o Brasil está cumprindo seus compromissos internacionais, como sua Contribuição Nacionalmente Determinada (NDC, na sigla em inglês), que são as metas que definiu no Acordo de Paris, de redução das emissões de gases de efeito estufa.
A primeira fase do plano encerrou em 2020. Nessa década, o Brasil conseguiu mitigar 170 milhões de toneladas de CO2 em uma área de 52 milhões de hectares, superando em 46,5% a meta estabelecida inicialmente. Em 2021, o Governo Federal lançou o chamado Plano ABC+, pensando, agora, em expandir as práticas do ABC para, pelo menos, outros 72,68 milhões de hectares e, desse modo, mitigar cerca de 1,1 bilhão de toneladas de carbono, até 2030. Novas atividades também foram incorporadas, como a adoção de bioinsumos e expansão de áreas irrigadas.
Agricultura regenerativa também passa por direitos humanos
A agricultura regenerativa também está de acordo com os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU, principalmente com o 2º, da Fome Zero e Agricultura Sustentável. Por isso, foi reconhecido o direito de, pela primeira vez, a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) ter seu espaço próprio na Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas, realizada de 6 a 18 de novembro, em Sharm El Sheikh, no Egito.
A mensagem central que o estande queria transmitir era sobre a importância de garantir alimento para todas as pessoas do planeta. “Cerca de 193 milhões de pessoas enfrentaram crises ou níveis piores de insegurança alimentar aguda, em 53 países ou territórios, em 2021, minando décadas de progresso”, informa o Relatório Global sobre Crises Alimentares da FAO de 2022.
Neste cenário, o Pavilhão Oficial de Alimentos e Agricultura colocou a transformação dos sistemas agroalimentares no centro da agenda da COP pela primeira vez como uma parte importante da solução da crise climática. Durante as duas semanas, líderes comunitários se encontraram com parceiros governamentais, filantrópicos, jovens e acadêmicos. O objetivo foi avançar um entendimento compartilhado das questões mais urgentes da alimentação e da agricultura que as pessoas e o planeta enfrentam e compartilhar conhecimentos e soluções inovadoras. O pavilhão tinha 250 m2 e contou com uma agenda de palestras abertas ao público, enquanto, em um escritório do estande, aconteciam reuniões bilaterais, focando em soluções inovadoras para ajudar os países a tomarem ações climáticas eficazes para proteger os sistemas agroalimentares. Os visitantes também puderam experimentar os benefícios da agricultura regenerativa em primeira mão, tomando chá e café orgânicos com baixo teor de carbono oferecidos gratuitamente.
Projeto foca na produção agrícola de baixo carbono
Durante a COP 27, foi lançado o Programa Rural Sustentável (PRS) para a Amazônia, no estande do Consórcio Amazônia Legal. O objetivo é estimular a produção agrícola de baixo carbono nos estados do Pará e Rondônia.
Com o PRS, um aporte de US$ 9,7 milhões (R$ 50 milhões) feito pelo governo do Reino Unido permitirá que produtores rurais de 44 municípios dos dois estados amazônicos recebam capacitação e assistência técnica para produzir de forma sustentável. Com o programa, os investimentos também têm como uma das metas a certificação de uma marca de produtos sustentáveis amazônicos e sua comercialização, a partir do fortalecimento de organizações socioprodutivas, nos próximos cinco anos.
Para o secretário de Inovação, Desenvolvimento Sustentável e Irrigação do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa), Cleber Soares, o projeto é a operacionalização do Plano ABC + no bioma amazônico. “O PRS-Amazônia é um projeto que visa levar o desenvolvimento rural sustentável para a região amazônica, promovendo cadeias produtivas cada vez mais mais sustentáveis e, consequentemente, descarbonizantes. E, de certa forma, também contribui para reduzirmos a pressão pelo desmatamento na região amazônica, esse bioma tão importante para todo o mundo, não só para o Brasil”, avaliou.
O secretário de Meio Ambiente e Sustentabilidade do Pará, Mauro O’de Almeida, informou ainda que o investimento vai fortalecer as ações já realizadas pelo Estado, por meio do Plano Estadual Amazônia Agora (PEAA), que estimula a agricultura de baixas emissões. “A gente tem várias Amazônias. No Pará mesmo, temos várias Amazônias e vários biomas amazônicos. Mas temos uma Amazônia especial, que é a Amazônia consolidada, que, num processo histórico de ocupação do Estado do Pará, veio se enraizando nessa área da agricultura, da pecuária, do manejo florestal etc. Em especial, o que a gente está vendo aqui, esta iniciativa que retorna do BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento), através do Ministério da Agricultura, essa agricultura de baixo carbono tem que ter sinergia com os projetos e os programas que já estão sendo executados no Estado”, declarou.