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MARAJÓ

Professor usa a pedagogia do campo para ensinar matemática

Docente leciona para jovens e adultos que concluem o Ensino Médio

Mariluz Coelho / Especial para O Liberal

04/04/2024

No meio do caminho da plantação de abacaxi tem uma sala de aula do ensino fundamental e da educação de jovens e adultos (EJA). Para ministrar as aulas, o professor de matemática Nic Júnior troca a formalidade do método tradicional pela pedagogia do campo. No lugar da lousa e do giz, são utilizadas a lavoura de abacaxi, a fábrica de farinha, a pesca e outras atividades que garantem o sustento das comunidades da zona rural do Arquipélago do Marajó. O Liberal Amazon acompanhou uma aula do professor Nic Júnior para entender melhor o método ensinado, a partir da vida e do trabalho na comunidade ancestral quilombola Boa Vista, no município de Salvaterra. 

Na plantação de 60 mil pés de abacaxi, uma das principais atividades agrícolas da comunidade, o professor usa parte do livro didático, substituído por lições na prática, incluindo o cotidiano da comunidade. Ao ensinar as operações matemáticas ele usa o abacaxi como elemento visual para somar, multiplicar, diminuir e dividir. “Quando a gente faz a pergunta quanto é 3 multiplicado por 10, o aluno demora para responder. Mas, quando eu pergunto se o abacaxi custa R$ 3 e eu quero comprar 10, a resposta vem rápida”, explica Nic Júnior.  

A iniciativa é da Coordenadoria de Educação do Campo, das Aguas e das Florestas - CECAF/SEDUC na Escola Estadual Admar de Vasconcelos. O professor substitui imagens do livro didático por elementos encontrados na rotina da vida no quilombo. Os livros didáticos são confeccionados nos grandes centros do País, como São Paulo. “Muitos que produzem esses livros não conhecem a realidade marajoara. Hoje estamos dando aula na roça de abacaxi. Dificilmente eu encontro o abacaxi dentro do livro. E aí a gente sempre troca os exemplos que o livro dá. Quando mostra o hipopótamo, a girafa, animais fora da realidade do nosso território, nós substituímos pela capivara, pela mucura ou pelo búfalo, que são animais presentes na vida dos alunos. Com a simples troca das figuras do livro, nós já temos um resultado melhor no aprendizado”, conta Nic Júnior. 

O professor fez outra demonstração para a reportagem conferir. Ele perguntou quanto é 50 dividido por 5. Os alunos responderam 10. Mas a resposta do cálculo demorou a sair. O professor fez a pergunta de forma diferente, utilizando a produção de farinha. Perguntou, se tiver 100 litros de farinha e for distribuir para dez pessoas que produziram a farinha quanto dá para cada um? A resposta foi imediata. Dez litros para cada uma das dez pessoas que participaram da fabricação da farinha.   

O professor diz que a matemática ainda é vista como um bicho de sete cabeças. “Mas para esse aluno que tem muita dificuldade em assimilar as quatro operações matemáticas, quando eu falo da farinha, do beiju, por exemplo, temos um resultado melhor”. Com a linguagem simples, o professor aguça o raciocínio através do cognitivo de cada aluno. “Todo mundo aqui já trabalhou ou teve contato com o forno de farinha e com a roça de abacaxi. As lições são ensinadas a partir da vida em comunidade. É muito mais simples apreender”. A comunidade tem 170 famílias. Atualmente, 130 alunos, entre crianças, jovens e adultos, estão estudando no quilombo. O método de ensinar a partir da vivência dos estudantes está trazendo de volta os que já tinham abandonado a escola.

Lições são aplicadas na economia doméstica e na lavoura

Lariza Conceição do Nascimento, 35, estava 14 anos sem estudar. “Eu deixei de estudar para criar os meus filhos. Com as aulas aqui na plantação, a matemática ficou mais fácil para mim. Se tenho dez abacaxis para duas pessoas, já sei que vou dar cinco para cada uma”, afirma. Lariza diz que com as lições de matemática apreendeu a economizar em casa contando os alimentos necessários para a família e evitando o desperdício. Ela também usa os cálculos no trabalho de colheita da mandioca e na produção da farinha e tucupi. 

Sebastiana Silva Gonçalves, 32, também estava 14 anos fora da escola. “Esta é uma oportunidade de estudar aqui mesmo no campo, porque eu e meu esposo dependemos da plantação de abacaxi para viver.” Ela conta que sempre teve dificuldade com matemática, mas a partir dos exemplos que o professor dá na plantação de abacaxi fica mais fácil aprender. “O professor tem nos apoiado muito, porque às vezes dá vontade de desistir. Aqui no nosso lugar fica mais fácil aprender as lições, porque a gente lida com que a gente tem, com a nossa realidade aqui”, afirma a estudante. 

Jéssica Gonçalves, 14, assiste as aulas na plantação de abacaxi e sonha com a carreira de advogada. “Aqui a gente apreende mais porque falamos das nossas coisas do dia a dia da comunidade, também porque o professor conversa muito e explica bem, de forma fácil até a gente entender, enquanto a gente não entender, ele continua explicando”. Ela diz que é mais fácil assimilar as operações da matemática fazendo conta com os exemplos dos abacaxis.

Método estimula a volta aos estudos

Diretora da Escola Municipal Quilombola Boa Vista, Lindiara Souza dos Prazeres diz que as aulas na plantação diminuíram a evasão escolar e têm resultado em melhoria no aprendizado, principalmente entre estudantes adultos, que abandonaram a escola e voltaram a estudar, depois de muitos anos. Ela explica que nas aulas ministradas no quilombo os alunos se sentem acolhidos em seu local de vivência. “Muitos têm famílias e não tem com quem deixar os filhos, além de não terem transporte para chegar até a escola na cidade”, conta.

A diretora afirma ainda que o método de ensino e aprendizagem desenvolvido pelo professor estimula muito a volta dos alunos aos estudos. “Trabalhar os métodos através do cotidiano faz com que o aluno consiga absorver os conteúdos de forma que facilita o entendimento. Muitos alunos da Educação de Adultos estavam bastante tempo sem estudar e muitos do fundamental dos anos finais sentem dificuldades em aprender a disciplina, e através do método que o professor utiliza desperta o interesse do aluno em estar em sala, por isso que houve uma redução muito grande de evasão e a conclusão (dos estudos) de muitos que estavam parados”, analisa a professora.

Professores nativos estão na linha de frente

A complexidade do território marajoara é um complicador e ao mesmo tempo um facilitador no processo educacional de crianças jovens e adultos. O Marajó é a maior ilha fluviomarítima do mundo. Com cerca de 50 mil km², assemelha-se em tamanho à Suíça, que tem quase a mesma extensão. Um lugar cheio de adjetivos e de uma riqueza turística única, porém com dificuldade de acesso aos serviços públicos. Por isso, os professores nascidos e criados na ilha comandam a educação no campo. 

Na ilha, a natureza ainda dita as regras. O cheiro de mar, a vegetação que se alterna entre campos marajoaras alagados no inverno e a densidade verde da floresta amazônica. Por outro lado, a ilha tem um dos menores índices de desenvolvimento humano (IDH) do Brasil, segundo o Atlas do Desenvolvimento Humano (com base nos Censos do IBGE dos anos de 1991, 2000 e 2010). Mas ao mesmo tempo que faltam os serviços básicos de saúde, saneamento e educação, salta aos olhos o modo de vida do povo do Marajó. O jeito de viver na ilha impressiona. O Marajó tem biodiversidade única e diversidade cultural.

Por conta de riqueza da sociobiodiversidade, os educadores marajoaras, a exemplo do professor Nic Júnior, estão na linha de frente dentro das comunidades, pois têm uma relação direta com a natureza e com os valores culturais do Marajó. “Quem cuida da educação da ilha são esses professores nessas escolas do campo”, afirma o professor da Universidade Federal do Pará (UFPA) Salomão Hage, que é doutor em educação pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e coordena o Grupo de Estudo e Pesquisa em Educação do Campo na Amazônia (Geperuaz).

O professor entende que com essas iniciativas os sujeitos do Marajó estão ocupando seus espaços. “Tem que falar da pobreza, mas tem que falar da riqueza da biodiversidade e da sociobiodiversidade, dos saberes”. “Temos que acabar com a ideia de ‘comunidade de difícil acesso’ quando se fala dos povos do campo, das águas e das florestas na Amazônia. Se tem problema de acessibilidade é porque o poder público não investe”, analisa Salomão Hage.

De 2000 a 2022 foram fechadas no Pará 6.987 escolas rurais

O professor Salomão Hage afirma que os professores convivem com as adversidades do ensino no campo pela precarização das escolas, onde faltam professores, merenda escolar e muitas acabam fechando. De acordo com o relatório do Fórum Paraense de Educação no Campo, que luta para garantir o direito dos povos que estão no campo, nas águas e na floresta à educação pública, gratuita, diferenciada e ofertada presencialmente em seus territórios, 6.987 escolas rurais foram fechadas no Pará entre os anos de 2000 a 2022. O município de Afuá, no Marajó, aparece no relatório com maior número de baixas, 119 escolas do campo fechadas em 2021 e 2022. 

“A educação no campo, com exemplos de professores que atuam diretamente nas comunidades, mesmo com precariedade das escolas, representa possibilidades que esses povos têm de existir e de reexistir nos espaços”, diz Salomão Hage.

Segundo ele, muitos dos professores são temporários e dependem das forças políticas locais. “O povo do campo não é coitadinho. Os territórios do campo, das águas e da floresta são riscos em biodiversidade, são diversos. O Marajó é um exemplo. Não é só o bio, é também o sócio. Isso é uma riqueza”, afirma. 

O professor lembra que os povos são ricos de bio e sociobiodiversidade e têm uma cultura ancestral. “Eles têm um conhecimento e um saber que não é científico. Mas um saber que tem legitimidade para a convivência deles nesses espaços. Eles protegem esses territórios. Onde eles estão se tem áreas protegidas e territórios protegidos. É só por isso que a gente ainda tem a Amazônia”, finaliza.