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ARQUEOLOGIA

Cidades perdidas da Amazônia revelam urbanização pré-colonial

Recentes descobertas rebatem crença de que a chegada dos europeus trouxe a civilização para a região e mostram que a presença amazônida na área data de milênios

Camila Azevedo

09/02/2024

Pensar que a Amazônia só passou a ter urbanização depois da invasão dos europeus na região, no século XV, é parte de um imaginário cada vez mais ultrapassado. Recentes descobertas no Equador, país sul-americano que divide parte do território amazônico com outras sete nações, apontam que a floresta, na verdade, possui histórico de organizações e desenvolvimento urbano datados de mais de 2,5 mil anos. E esse não é o registro mais antigo. 

Pesquisas arqueológicas do Museu Paraense Emílio Goeldi indicam que a presença de civilizações tradicionais do Pará, como a Tapajós, pode ter ocorrido há mais de 11 mil anos e acumulam uma série de achados importantes para a preservação da memória da população.

Até duas décadas atrás, estudiosos sobre o tema acreditavam que a Amazônia era apenas habitada por caçadores, sem contar com organização social bem estruturada antes da colonização europeia. Sítios arqueológicos descobertos no Vale Upano, no Equador, porém, apresentam um conjunto urbano composto por cinco grandes povoados e dez menores. As análises, realizadas por meio de um mapeamento a laser chamado Light Detection and Ranging (Lidar), mostram que os habitantes plantavam milho, mandioca, batata-doce e outros alimentos. Os pesquisadores estimam, ainda, que uma das maiores comunidades, Kilamope, ocupou uma área próxima ao tamanho do Planalto de Gizé, no Egito. O modo de vida dessas civilizações ainda está começando a ser entendido.

Cidades

Edithe Pereira, doutora em arqueologia e pré-história e pesquisadora do Goeldi, explica que essas sociedades eram numerosas e habitavam casas construídas em cima de pequenos montes de terra, além de haver uma praça central e as estradas, que conectavam cada uma das cidades. O modo de vida era baseado em suprir as necessidades dos povos, segundo Edithe, sem excedentes ou lucros. “Para manter uma população tão grande, havia extensas áreas agrícolas com drenagens fluviais, com vistas a suprir os alimentos da população. Trata-se, certamente, de uma sociedade hierárquica, onde um ou vários chefes organizavam as atividades da população. Para saber mais sobre estes povos, é preciso dar continuidade às pesquisas na região”, afirma.

Floresta preserva ao menos 11 mil anos de história

Em maio de 2022, uma equipe de pesquisa internacional descobriu uma série de assentamentos urbanos construídos pelas comunidades Casarabe em Llanos de Mojos, região da Amazônia boliviana. Eles viveram no local entre 500 e 1.400 d.C. De acordo com Edithe Pereira, a catalogação desses povos, junto aos recém-descobertos no Equador, ajuda a desmistificar a ideia de que a floresta amazônica era pouco habitada. “A presença indígena na Amazônia remonta há pelo menos 12 mil anos. A Amazônia é uma enorme região com muitas áreas ainda totalmente desconhecidas do ponto de vista arqueológico. Ainda há muito a descobrir, mas para isto, é preciso um forte investimento em recursos para pesquisa acadêmica e formação de novos pesquisadores no Norte do país”, acrescenta.

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Na cidade de Monte Alegre. “Para manter uma população tão grande, havia extensas áreas agrícolas com drenagens fluviais, com vistas a suprir os alimentos da população”, explica Edithe Pereira, doutora em arqueologia e pré-história e pesquisadora do Goeldi. (Foto: Ândria Almeida / Especial para O Liberal)

“Para além das cidades amazônicas divulgadas recentemente, a região apresenta centenas de sítios arqueológicos que comprovam a densidade populacional antes da invasão europeia e a antiguidade da presença humana na Amazônia. Em Monte Alegre, no oeste do Pará, escavações realizadas em uma caverna demonstraram que há pelo menos 12 mil anos povos indígenas viveram nesta região e tinha o domínio técnico para a confecção de artefatos em pedra e a confecção de pigmentos utilizados para pintar nas rochas e, provavelmente, em outros suportes perecíveis, como a madeira e até o próprio corpo. As cavernas das serras de Carajás também foram ocupadas há pelo menos 11 mil anos por povos que dominavam a técnica de lascamento em quartzo para confecção de instrumentos”, completa Edithe.

Civilizações marajoaras tinham organização urbana

O Pará tem 2.508 sítios arqueológicos registrados no Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). Um desses foi descoberto em outubro de 2023 por moradores de Vila das Pedras e Laranjal, comunidades localizadas no município de Anajás, no Arquipélago do Marajó. Os achados, artefatos de cerâmica indígena, que ficaram expostos na região devido à seca, e elevações antropogênicas - chamadas de tesos -, indicam que os antigos habitantes do local faziam construções que demandavam engenharia, conhecimentos da terra, do ambiente e do regime das águas. A vistoria do material foi feita pelo Goeldi e também aponta a formação de sistemas regionais de assentamento, com organização social e urbana para o desenvolvimento das atividades do dia a dia.

A ação foi conjunta com o Iphan. Helena Lima, arqueóloga e pesquisadora do Museu, destaca que essas civilizações marajoaras, assim como as do Equador, eram interligadas e desenvolviam um sistema de trocas que avançava pelos rios e igarapés da região. Ainda conforme os estudos, a sociedade era sofisticada e fazia uso do meio ambiente de tal forma que foi possível gerar a biodiversidade vista na Amazônia. “A gente vê sociedades que incrementaram a biodiversidade. Isso fala de um povo. Ao olhar um mapa do Marajó e perceber as conexões entre esses diferentes sítios arqueológicos e os tesos, nós percebemos uma grande região urbana. O Marajó sempre se destacou no que diz respeito ao entendimento desses povos antigos, antes da invasão europeia”.

CERAMICA - Um sítio arqueológico identificado até agora como um cemitério indígena acaba de ser descoberto no município de Anajás ANAJÁS - FT - DIVULGAÇÃO (1).jpg
Achados em Anajás, no Marajó, indicam que os antigos habitantes do local faziam construções que demandavam engenharia, conhecimentos da terra, do ambiente e do regime das águas. (Foto: Divulgação)

Conhecimento

“Eles [os achados no Marajó] se configuram como elevações não naturais, elevações antropogênicas, ou seja, elevações que foram feitas pelos próprios moradores. Regionalmente são conhecidos como tesos. Os tesos marajoara foram construções que demandam uma engenharia, um conhecimento da terra, do ambiente, do regime das águas e isso tudo a gente consegue observar nesses sítios arqueológicos recentemente cadastrados. Então, estamos falando de muitas comunidades ou até cidades, podemos falar assim, conectadas regionalmente. De um lado do rio, do outro lado do rio, para dentro dos igarapés. São sistemas com muitos assentamentos conectados entre si. Isso mostra uma sociedade organizada, onde encontros, trocas estavam acontecendo”, adiciona Helena.

Mudanças climáticas dificultam preservação

A região do Marajó vem sendo pesquisada há décadas. As descobertas ajudam os pesquisadores a contar as histórias locais, que datam de mais de 3 mil anos. Entre os achados, Helena Lima conta que muitas urnas funerárias foram identificadas. Entretanto, as mudanças climáticas estão se tornando um empecilho para a preservação do sítio arqueológico de Anajás e dos artefatos encontrados. “Essas urnas funerárias estão sob risco, na medida que estão bem na curva de um rio, próximo até da sede da cidade e as embarcações passando. A própria erosão do regime fluvial está expondo essas urnas funerárias, sendo objetos que imaginamos serem funerários, o respeito e o cuidado devem ser ainda maiores com esses itens ancestrais da região de Anajás”, explica a arqueóloga.

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Helena Lima, arqueóloga e pesquisadora do Museu, destaca que essas civilizações marajoaras, assim como as do Equador, eram interligadas e desenvolviam um sistema de trocas que avançava pelos rios e igarapés da região. (Foto: Igor Mota / O Liberal)

Os desafios encontrados vão além. Helena relata que o desenvolvimento de pesquisas na região conta com uma série de dificuldades, envolvendo alto volumes de recursos financeiros. “A comunidade salientou um desejo de que as peças ficassem em Anajás e que lá se criasse um espaço de preservação, um espaço de exposição, um museu, uma casa de cultura. E eu vejo nesse desejo da população uma grande oportunidade de trabalhar junto com as comunidades para construir um espaço de cultura e de memória para a população de Anajás. Nossa intenção é construir junto com os moradores e não como a própria história carregou ao longo do tempo, de retirar ou de espoliar, retirar esses conhecimentos. Ao contrário, nós queremos construir in loco, junto com as comunidades”, afirma.

Geoprocessamento ajudou no mapeamento de sítios

A tecnologia usada em Anajás, pelo Goeldi, para o mapeamento das cidades perdidas na floresta foi o mesmo utilizado no Equador, o Lidar. Esse sistema de geoprocessamento é capaz de modelar a superfície do terreno de forma tridimensional e conta com o apoio de outras estruturas, como embarcações, para ser operado. O Goeldi usa drone. Nilson Borges, técnico que opera o equipamento nas visitas feitas pelo Museu, explica que o mapeamento realizado identifica os interesses topológicos de uma área e a possível existência dos sítios arqueológicos. 

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“O Lidar emite sinais, pulsos, e esses pulsos retornam para ele mesmo. Vai fazendo um (desenho) tridimensional do terreno”, explica o técnico Nilson Borges. (Foto: Igor Mota / O Liberal)

“O Lidar vai passando e vai formando uma câmera RGB comum e o próprio Lidar vai fazendo pontos, só que são milhões e milhões de pontos, então, as câmeras vão trabalhando juntas”, detalha.

Os arquivos coletados pela tecnologia passam por um processamento. Essa fase pode levar meses até ter, de fato, uma resposta que seja possível de identificar o objeto de interesse dos pesquisadores. No caso do material vistoriado em Anajás, os resultados ainda não estão prontos. “O Lidar emite sinais, realmente, pulsos, e esses pulsos retornam para ele mesmo. Então, ele vai fazendo um tridimensional do terreno, conforme programação de velocidade, altura… O objetivo da própria pesquisa. Ele [o equipamento] vai passando sobre o solo, o que tiver da vegetação, e vai emitindo um milhão de pulsos e, aí, a gente consegue trabalhar o que ele consegue captar, através de 3D, e, realmente, fazer os produtos de trabalho depois de um pós-processamento”, explica Nilson.

Sítios arqueológicos do Pará e a história das antigas civilizações

O estado possui mais de 2,5 mil sítios arqueológicos cadastrados no Iphan. Algumas regiões ganham destaque quanto à importância da história analisada, segundo arqueólogos do Museu Paraense Emílio Goeldi.

- Monte Alegre
Estudos realizados apontam que, há pelo menos 12 mil anos, povos indígenas viveram na região. Eles tinham o domínio técnico para a confecção de artefatos em pedra e a confecção de pigmentos utilizados para pinturas em rochas, provavelmente, em outros suportes perecíveis, como a madeira e até o próprio corpo.

- Ilha do Marajó
As recentes descobertas em Anajás apontam que os antigos habitantes possuíam conhecimento de engenharia para lidar com o meio ambiente e com o regime das águas da região. Eles podem ter vivido na região há cerca de 3 mil anos. Os primeiros achados foram cerâmicas e, após vistoria, tesos marajoaras - elevações antropogênicas - foram identificados.

- Santarém
A região de Santarém concentra sítios arqueológicos com importantes descobertas sobre o passado. Os Tapajós, por exemplo, estavam presentes no local há 1,3 mil anos, mas muitos outros habitantes mais antigos deixaram vestígios na cidade. Até o momento, um estudo do Goeldi, em parceria com a Universidade Federal do Oeste do Pará (Ufopa), aponta que a presença dos povos sambaquieiros data de 8 mil anos.

- Salgado Paraense
Em Bragança, pesquisadores identificaram um sítio arqueológico cerâmico na Reserva Extrativista Marinha Caeté-Taperuçu. Com os estudos sobre a área, apresentados pelo Goeldi e pela Universidade Federal do Pará (UFPA), foi identificada uma datação de ocupação de pelo menos 2,9 mil anos. As análises também apontam para duas hipóteses sobre o modo de vida da comunidade. A primeira diz respeito a trocas culturais e a segunda fala sobre mudanças econômicas em direção ao cultivo.

- Carajás
A região foi ocupada há pelo menos 11 mil anos por povos que dominavam a técnica de lascamento em quartzo para confecção de instrumentos. Ao longo dos rios amazônicos, o Goeldi afirma que é comum encontrar sítios com terra preta, onde abundam fragmentos de cerâmica. Esses lugares correspondem a antigas aldeias indígenas.