Apesar de ser originário da Amazônia, por muitas décadas o cacau foi sinônimo de Bahia, Estado do nordeste brasileiro que liderou sem competição a produção do fruto.
Nos últimos anos, porém, o Pará tem se consolidado como principal produtor do país, não só pela quantidade, que, em 2022, chegou a 50,68% de toda a produção do Brasil, mas também por ser o maior banco de material genético de cacau do mundo, com mais de dois mil genótipos diferentes.
Enquanto em todo o Brasil o rendimento médio de cacau por hectare é de 469 quilos, no Pará o número chega a 948 quilos, graças a um misto de condições ideais para produção no estado.
Hélia Moura viu de perto cada passo do crescimento do cacau da Amazônia. Em 1996, ela casou com um agricultor que já trabalhava com a produção do fruto.
Saiu de Manaus, Amazonas, onde morava, e partiu para Medicilândia, no sudoeste do Pará.
Ela se sentia bastante inspirada pelo marido, um homem que ela descreve como muito curioso e ávido por conhecimento, apesar de analfabeto.
O envolvimento com a plantação de cacau foi crescendo e, em 2006, ela decidiu cursar agronomia na Universidade Federal do Pará.
Hoje, ela é responsável pelo comando da Cooperativa Agroindustrial da Transamazônica, que, em 2014, lançou a marca Cacauway, que produz chocolate com matéria-prima extraída de municípios ao longo da rodovia BR-230.
Somente Medicilândia é responsável por 30% da produção do Pará, com cerca de 70 mil toneladas anuais de amêndoa de cacau. Os 40 cooperados possuem capacidade de produzir 600 mil toneladas por ano.
"Antes, achavam que o cacau paraense não era de boa qualidade. Isso caiu por terra. Hoje, é sinônimo de excelência e os concursos de chocolate estão sendo dominados pelo Pará. É reflexo de muito trabalho, pois estamos dando um olhar cada vez mais apurado para a qualidade do produto, aplicando processos, testando coisas novas. Temos uma gama de variedades que trazem um terruá maravilhoso e que só existe aqui", afirma a produtora.
Robson Brogni também é produtor em Medicilândia e gere, ao lado da esposa Sarah, o sítio Ascurra.
Em 1985, o pai de Sarah, Belmiro, já tinha mais de 9.500 pés de cacau plantados na propriedade que ele comprou com muito suor, após anos juntando dinheiro como fretador de bananas para Belém.
Com o apoio da esposa dele, Denilze, os negócios foram crescendo e, em 2023, todas as propriedades da família somam mais de 280 mil pés de cacau.
Hoje, eles possuem uma marca própria de chocolates e se especializaram em amêndoas finas premiadas Brasil afora.
"Tecnicamente falando, já foi comprovado que o grande diferencial do cacau paraense é a alta concentração de manteiga, com percentuais acima dos 50%. Na região da Transamazônica, esse percentual se aproxima dos 60%. Isso valoriza muito nosso cacau na questão da qualidade", aponta Robson.
Método de produção faz o diferencial no Pará
Segundo o produtor Robson Brogni, o cacau fino requer um protocolo especial de manejo desde a colheita até o armazenamento.
A contrapartida é a concepção de um produto de alto valor agregado na comparação com o cacau convencional, o que gera um diferencial financeiro que pode chegar até 100% a mais no preço final.
Até hoje, a Comissão Executiva do Plano da Lavoura Cacaueira, ligada ao Ministério da Agricultura e Pecuária, disponibiliza sementes aos agricultores para a produção de viveiros.
É uma prática que contou com forte incentivo nos últimos 50 anos e que deu início ao cordão de plantação de cacau na região da rodovia Transamazônica.
Após seis meses, elas podem ser levadas a campo para o plantio comercial, com um espaçamento de três metros por três metros.
Assim, cada hectare comporta mil plantas, considerando espaços para ramais, onde os produtores e máquinas passam.
Com quatro anos, os cacaueiros começam a dar frutos, mas eles só se tornam economicamente viáveis aos sete anos.
Além disso, é necessário um sombreamento provisório feito a partir de bananeiras, o que acaba gerando uma renda extra para os agricultores, já que os cachos de banana começam a aparecer com um ano de plantio.
Outro sistema, o seminal, já completou 10 anos na região. Nele, as mudas são enxertadas, ou seja, geneticamente modificadas com tecidos diferentes, criando novas plantas e aumentando o rendimento de acordo com a variedade da espécie que o produtor preferir.
"São processos similares, mas com o DNA modificado. O agricultor quer uma variedade mais rentável, com mais volume. Mas, como indústria, queremos uma variação mais adocicada e menos ácida. Tudo isso é calculado. Muita gente insiste em plantar cacau em pleno sol, mas o cacaueiro amazônico vive debaixo da floresta. O cacaueiro a pleno sol é mais produtivo, porém gera mais gastos do ponto de vista do controle sanitário do que um plantado em sistema agroflorestal. Além das bananeiras, há muitas experiências de cultivos associados, inclusive de cacau com açaí", diz a produtora Hélia Moura.
Sustentabilidade é aliada dos produtores na região
Hoje em dia, Hélia vê como positivo o fato de existirem alternativas ao sistema conhecido como “cabruca”, que não era itinerante e que consistia na derrubada de floresta para que o cacau fosse plantado.
"Agora o cacau não tem mais nada a ver com desmatamento. Isso foi há 50 anos. Hoje, o cacau funciona como reposição de floresta. Os agricultores transformam até pastos em áreas de cultivo de cacau. O cenário mudou", diz ela, que está animada, como as vendas da Páscoa, que chegam a triplicar o faturamento da cooperativa e garantem reserva de recursos para os meses de menor procura.
Robson Brogni concorda que o cacau desempenha um papel importante na preservação da floresta.
Ele lembra que trata-se de uma cultura que não deixa o solo exposto e que ajuda na captura de gás carbônico.
"E grande parte da mão de obra vem da agricultura familiar que é uma forma de trabalho diretamente ligada à sustentabilidade. As principais empresas compradoras de cacau estão olhando muito a questão da sustentabilidade nas fazendas produtoras", diz.
Ele lembra, porém, que as flutuações no preço do cacau são um desafio.
"A amêndoa de cacau, como todas as commodities, depende de fatores locais e mundiais para chegar em um preço, estabelecidos pela flutuação diária do dólar e a bolsa de valores de Nova York. Trocando em miúdos, o produtor do cacau não manda no preço de venda do produto, mesmo com os insumos e mão de obra aumentando de preço com muita frequência nos últimos tempos", avalia.
Brasil começa a atender demanda mundial crescente
O Brasil não é autossuficiente na produção de cacau, o que cria a necessidade de importação do insumo para atender a demanda nacional.
Sendo assim, a bolsa de valores de Nova York serve para estipular os preços e pareá-los com o mercado internacional.
No final de 2022, as cotações do cacau tiveram alta, com os contratos de vencimento em março de 2023 subindo 3,04%, a US$ 2.606 por tonelada da amêndoa.
São demonstrativos da alta demanda pelo produto e que, segundo o economista Caio Santos, foi motivada pela falta do insumo em 2022.
Foi um déficit de 230 mil toneladas no mundo, ou seja, a humanidade está produzindo bem menos cacau do que consome.
Santos aponta alguns fatores: os maiores responsáveis pela produção são países africanos que tiveram problemas de produtividade, relacionados ao menor uso de fertilizantes, que subiram de preço.
Gana, o segundo maior produtor do mundo, vive uma crise econômica sem precedentes. Além disso, o mundo passa por um processo de recuperação da demanda.
"Daqui a 10 anos a gente espera que a demanda continue subindo, pois cresce de acordo com o crescimento demográfico. Tem muito lugar no mundo sem chocolate ainda e conforme a urbanização avança, a demanda tende a aumentar. E desde 2020, tivemos a pandemia, a guerra na Ucrânia e a China parada muito tempo por conta do covid-19. Tudo isso traz um viés bastante altista para o preço do cacau", afirma ele, que é consultor de gerenciamento de riscos relacionados a cacau de uma empresa de serviços financeiros.
Segundo Caio, estes fatores podem abrir portas para o cacau da Amazônia.
O Brasil é o oitavo maior produtor de cacau do mundo.
Já Costa do Marfim produz dez vezes mais que todo o território brasileiro. O Brasil, porém, é visto como uma fronteira de expansão da produção de cacau, que pode ser feita em condições muito melhores do que em países africanos, responsáveis por 70% da produção mundial.
Isso é porque a Amazônia possui condições ideias para a produção. Além disso, as condições de produção na África são muito precárias, com relatos de trabalho infantil e desmatamento ilegal.
"O mundo quer reduzir essa dependência africana, pois as empresas são pressionadas a lutar contra isso. No Brasil, por ser muito mais estruturado que os países da África, se entende que a produção consegue crescer de forma mais sustentável, melhor controle de desmatamento, trato adequado na terra, e maior controle de questões sociais por meio da legislação e da fiscalização. Há um interesse internacional muito grande e que só deve crescer", diz.
Cacau amazônico alcança voos internacionais
Quando idealizou o festival Chocolat em 2009, na Bahia, Marco Lessa estava sentindo que o potencial do cacau brasileiro merecia mais destaque e prestígio.
Na época, a Bahia era o principal produtor de cacau no Brasil e enfrentava uma crise grande em função da vassoura-de-bruxa, uma praga que devastou boa parte da área plantada no estado e derrubou a produção de 400 mil para 90 mil toneladas anuais.
"Nosso objetivo era criar uma plataforma para que todos conhecessem o cacau, estimular a verticalização da produção e agregação de valor, fomentando turismo também em torno da produção, apresentando o cacau como um valor cultural da nossa identidade", ele conta.
De lá para cá, o festival cresceu e foi ganhando cada vez mais interesse internacional.
Em 2013, o festival começou o desembarque no Pará e em 2022 já estava realizando uma edição em Altamira.
Uma edição internacional, com o objetivo de apresentar o cacau brasileiro para a Europa, foi realizada em Portugal.
Desde o início do festival, mais de 300 marcas de chocolate já surgiram no Brasil. E o interesse pelas amêndoas da Amazônia só cresce, de acordo com Lessa.
"A Amazônia tem um apelo mercadológico muito forte, mas não basta apenas colocar a palavra Amazônia na embalagem. O cacau contribui para manter a floresta em pé e temos a produção feita por povos originários e ribeirinhos. É um viés social que o mundo precisa conhecer, compreender e valorizar. Temos características únicas no cacau de várzea da Transamazônica, com um sabor muito próprio. As características do bioma imprimem ao cacau da Amazônia um sabor único. O cacau é domesticado há 5 mil anos e produzido como cultura agrícola há 300 anos, mas em apenas uma década, com apoio das universidades, governos, imprensa, promovemos uma transformação na produção e industrialização do cacau na região. Os números dobraram no Pará, com mais de 50 marcas de chocolates produzidas", destaca.
Para Hélia Moura, ver tudo o que o cacau da Amazônia se tornou nos últimos anos é motivo de orgulho.
"O cacau representa vida. É sustento das famílias, que se sentem motivadas a permanecerem no campo, se comportando como verdadeiros guardiões da floresta. E o cacau tem nos levado a horizontes que nunca imaginamos chegar. E estamos apenas começando".