Quando se fala de Inteligência Artificial (IA), geralmente o que vem à cabeça das pessoas é o ChatGPT ou ferramentas que manipulam imagens. Mas o uso da IA vai muito além e pode auxiliar na automatização da realização de tarefas, análise de grandes volumes de dados, recomendações para tomada de decisões, entre outras funções, que podem facilitar, agilizar e reduzir custos para a obtenção de resultados.
Por isso, instituições governamentais e não governamentais de estados amazônicos, como o Pará e o Amazonas, investem no uso da tecnologia, trazendo inovação que pode contribuir para o desenvolvimento sustentável da região. Os estados não apenas buscam formação que habilite profissionais a lidarem com a IA e desenvolverem novas ferramentas, como também adotam plataformas que ajudam na realização de atividades como monitoramento do desmatamento e da biodiversidade.
Para a formação de nível superior, as Universidades Federais do Pará (UFPA) e do Amazonas (Ufam) largaram na frente, ao lançar os respectivos bacharelados em Inteligência Artificial. Ambas já ofertam os cursos em 2026 e esperam grande procura.
ACELERAR
Gilmar Pereira, reitor da UFPA, explica que a criação do novo bacharelado é motivada pela questão da soberania e das corridas tecnológicas atuais em torno do tema. “Brasil e Amazônia não podem ficar para trás. Hoje, há um entendimento geral que a IA vai ter um impacto significativo em todas as frentes de atuação do ser humano. É de suma importância para o desenvolvimento da região”, diz o reitor.
Eduardo Nakamura, diretor do Instituto de Computação da Ufam, afirma que o novo curso atende a uma demanda da sociedade. “Com o avanço acelerado das ferramentas de Inteligência Artificial se inserindo no nosso dia a dia, a gente precisa ter uma educação específica em dois sentidos. Um é aprender a usar essas ferramentas. Mas o nosso enfoque, com o bacharelado, não é esse. É formar pessoas com a capacidade técnica para pensar por onde a gente quer que a IA caminhe e o posicionamento do Brasil na área. Queremos que os egressos sejam capazes de expandir o ‘estado da arte’, a fronteira do conhecimento em IA, que eles pensem qual será o próximo ChatGPT, o próximo Gemini, a próxima ferramenta importante para trazer avanços e benefícios para a sociedade. Isso é estratégico para nosso País”, afirma.

MERCADO
Gilmar Pereira aponta que os formandos do curso vão poder atuar nos mais diferentes setores. “O novo curso pretende capacitar os alunos para a modelagem e a implementação de métodos de IA na solução de problemas, tanto na parte de desenvolvimento de software, quanto nas aplicações de métodos de IA em áreas específicas, como na indústria, agricultura, pecuária, bioeconomia, medicina. Com isso, um hospital que tenha alguém capacitado em IA para implementar técnicas e modelos para diagnósticos terá um diferencial, por exemplo”, destaca.
O reitor da UFPA lembra que a temática da IA já está presente na universidade em diferentes cursos e programas de pós-graduação. “Todos os cursos de computação têm alguma disciplina de Inteligência Artificial. Programas de pós-graduação têm linhas de pesquisa específicas sobre IA, com desenvolvimento de métodos de classificação inteligentes, modelagem de problemas matemáticos, processamento de linguagem natural, aplicação de inteligência artificial à agricultura de precisão. O que o curso de bacharelado em IA vai fazer agora é consolidar o tema dentro da universidade”, afirma.

PCT Guamá oferece Letramento em IA
No Pará, o Parque de Ciência e Tecnologia do Guamá (PCT Guamá), vinculado ao governo estadual, já oferece o curso de Letramento Digital em Inteligência Artificial. De acordo com Renato Francês, diretor técnico da Fundação Guamá, que gerencia o PCT, o curso foi proposto a partir de um levantamento de demanda de mercado para formação.
“A gente entende que o letramento digital em IA hoje é uma ferramenta quase que obrigatória, como foi, há um tempo atrás, o conhecimento do Pacote Office. Nossa proposição é atualizar a necessidade básica de pessoas para o mercado de trabalho, com conhecimento mínimo de ferramentas de IA, como interagir com elas para melhorar seu dia a dia profissional. A partir daí, já pensamos na evolução natural, que é ofertar IA para desenvolvedores, para que possam apresentar soluções de problemas do mundo real com IA”, adianta o diretor.
A pedagoga Nayara Câmara, de 23 anos, foi uma das participantes do curso de letramento: “Me interessei porque sei da importância de entender essa tecnologia que vem mudando o modo como vivemos e trabalhamos. Aprendi que interagir com a inteligência artificial vai além de fazer perguntas: é saber construir um diálogo eficiente. Compreendi a relevância de dominar a linguagem digital, organizar ideias e orientar a tecnologia para que ela produza resultados relevantes. Também percebi o quanto é necessário ter critérios e equilíbrio no uso dessas ferramentas, para que elas sirvam de apoio ao nosso desenvolvimento e não o contrário. É um curso fundamental para quem atua em qualquer área, porque o mundo do trabalho está em constante transformação”.

PESQUISA
Renato Francês relata que o PCT tem realizado diversas ações envolvendo IA, não só em formação, mas também em pesquisa. O Parque abriga o Centro de Computação de Alto Desempenho e Inteligência Artificial (CCAD-IA), maior centro de pesquisas em IA da Amazônia.
“O CCAD-IA desenvolve aplicações com técnicas de Inteligência Artificial para resolver problemas de diversas áreas do conhecimento, como montagem de genomas, previsão meteorológica, modelagem de novos materiais, saúde pública, monitoramento genômico, cidades inteligentes e sustentáveis, cibersegurança, monitoramento ambiental e soluções inteligentes de conectividade”, detalha o diretor.

Mamirauá usa IA para monitorar biodiversidade
O uso de Inteligência Artificial já é uma realidade utilizada por organizações sociais que atuam pela preservação do meio ambiente e desenvolvimento regional. Uma delas é o Instituto Mamirauá, do Amazonas, que utiliza IA no monitoramento da biodiversidade.
Trata-se do projeto Providence, desenvolvido em parceria com a Universidade Politécnica da Catalunha, na Espanha, que permite o monitoramento automatizado do bioma. A primeira fase do projeto desenvolveu módulos de monitoramento, que são posicionados na floresta. Há duas versões: uma aérea e uma aquática, ambas compostas por uma câmera de alta resolução e um microfone embutido.
De acordo com Emiliano Ramalho, diretor técnico-científico do Instituto Mamirauá, os equipamentos têm inteligência artificial embarcada. “Os modelos treinados identificam espécies por imagem e por som e ficam analisando as informações em tempo real no próprio equipamento. Só então enviam as informações analisadas. Então, ao invés de ele ter que mandar um dado muito pesado, com todas as imagens e os sons brutos, ele faz a análise no próprio equipamento e envia remotamente”, explica.
Na segunda fase, o monitoramento com 20 módulos foi realizado na Reserva de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá, localizada no Amazonas, com registros transmitidos via satélite para a base de dados na sede do Instituto, em Tefé, no mesmo estado. O monitoramento acústico possibilitou o treinamento do algoritmo para identificar diferentes espécies de animais, revelando informações importantes, por exemplo, sobre o peixe-boi, ameaçado de extinção. Os dados demonstraram padrões de comunicação e habitats prioritários, o que pode auxiliar nas estratégias de conservação.

DESDE OS ANDES
Agora, o projeto está na terceira fase, chamada “Dos Andes ao mar”. “A ideia é escalonar o sistema para toda a Amazônia, desde as proximidades da Cordilheira dos Andes até a Foz do Rio Amazonas. Estamos com quase 70 pontos de monitoramento instalados, em 16 unidades de conservação ou áreas protegidas”, informa Ramalho. A meta é chegar a 100 módulos.
“Ter essa informação sendo gerada de forma automatizada sobre a biodiversidade na Amazônia é um marco extremamente importante, porque permite que a gente detecte mudanças rápidas que estão acontecendo dentro da floresta. Os monitoramentos por satélite, até então, mostravam apenas como está a floresta, mas não os animais dentro dela. E o Providence também ajuda a fazer a vigilância territorial, porque o mesmo conceito que a gente usa para identificar espécies, a gente pode usar para identificar atividades humanas, como motores de embarcação, aviões, motosserra, tiros”, ressalta o diretor.
IA no desenvolvimento regional sustentável
Renato Francês acredita que a Inteligência Artificial tem grande potencial de contribuir para o desenvolvimento sustentável da Amazônia. “Hoje, é quase impossível pensar em monitoramento ambiental de qualidade sem o uso de IA. A gente está falando de tudo o que é considerado riqueza natural da Amazônia, que pode ser monitorado com uma qualidade muito maior, seja para fiscalização, seja para induzir políticas públicas. Da mesma maneira, os povos tradicionais da Amazônia também podem se beneficiar do uso da IA, com aplicativos para maximizar ou melhorar a sua produção e a sua venda”, aponta.
Francês aborda também pesquisas realizadas pelo CCAD-IA no desenvolvimento de uma linha de apoio à tomada de decisão médica a partir de pré-diagnósticos dados pela IA. “Na Amazônia, onde temos grandes distâncias, a coleta de um exame às vezes precisa ser transportada para um grande centro. Suponhamos que seja um caso ruim, em que uma paciente esteja com indicadores de câncer do colo do útero. A IA entra na primeira etapa, que é a possibilidade de apresentar pré-diagnósticos para uma ação mais imediata. Obviamente, não vai substituir o médico, mas permite que se mande aquela informação para quem está distante estabelecer o diagnóstico e atuar de maneira proativa junto à paciente”, esclarece.
REGULAMENTAÇÃO
No Brasil, a regulamentação da Inteligência Artificial está sendo discutida na Câmara dos Deputados, após aprovação de um projeto de lei no Senado. No Pará, o governo estadual criou um grupo de trabalho para discutir os textos do Marco Legal da IA e a Estratégia Paraense de Inteligência Artificial (Epia). Renato Francês é um dos membros do grupo.
“A Epia sugere várias ações para que o Pará esteja na vanguarda da tecnologia e inovação, com uso ético e responsável da inteligência artificial. Ela detalha um conjunto de ações estruturantes, desde a implantação de um Centro de Supercomputação e a modernização da infraestrutura digital até programas de formação de talentos e o fomento a startups. É mais do que um plano técnico: é uma visão de futuro para o Pará e para a Amazônia”, afirma o diretor.
Já o Marco Legal pretende disciplinar o desenvolvimento e uso da inteligência artificial no âmbito da administração pública estadual direta e indireta. O texto aborda eixos como preservação e desenvolvimento amazônico e modernização do serviço público.
“A inteligência artificial constitui hoje uma realidade incontornável, que pode revolucionar nossa capacidade de preservar e desenvolver sustentavelmente a região amazônica, modernizar substancialmente o serviço público estadual e impulsionar de forma decisiva nossa economia regional”, diz Francês.
PARCERIA INSTITUCIONAL
A produção da Liberal Amazônia é uma das iniciativas do Acordo de Cooperação Técnica entre o Grupo Liberal e a Universidade Federal do Pará. Os artigos que envolvem pesquisas da UFPA são revisados por profissionais da academia. A tradução do conteúdo também é assegurada pelo acordo, por meio do projeto de pesquisa ET-Multi: Estudos da Tradução: multifaces e multissemiótica.