Um exercício militar realizado com 1.500 homens do Brasil e dos Estados Unidos na Amazônia, ao longo de novembro, expôs como a região segue cada vez mais crucial ao tabuleiro estratégico mundial. O Exercício CORE (Combined Operation and Rotation Exercise) é uma iniciativa bilateral realizada anualmente – iniciada em 2021, ela deve se estender até 2028 – que tem como meta ampliar experiências de tropas brasileiras e norte-americanas na maior floresta tropical do planeta, com trocas de conhecimentos sobre doutrinas, técnicas e táticas militares. Feita em território brasileiro, e este ano envolvendo os estados do Pará e Amapá, a mobilização é um dos maiores reflexos de uma longa história de tratados de cooperação militar envolvendo Brasil e EUA.
As incursões especiais de tropas norte-americanas na Amazônia vêm ocorrendo já há muitos anos. Ainda durante a Segunda Guerra Mundial, por exemplo, a capital do Pará, Belém, foi escolhida para abrigar algumas das bases aéreas instaladas no Brasil pelos EUA para dar suporte às ofensivas dos países aliados contra as nações que faziam parte do então chamado Eixo - grupo que reuniu a Alemanha, a Itália e o Japão. Atualmente, essas parcerias militares seguem refletidas em novos acordos firmados entre os governos, como o Exercício CORE.
Estrangeiros na floresta
O Comando Militar do Norte (CMN) do Exército Brasileiro foi o responsável pela coordenação das atividades do CORE no Pará e Amapá em novembro. Ao todo, o exercício reuniu cerca de 1.200 militares brasileiros e 300 norte-americanos, envolvidos em vários dias de treinamento, entre 1° e 16 de novembro. Desses, um grupo composto por 60 estrangeiros aprendeu sobre sobrevivência e atuação na selva. As maneiras de se obter alimentos de origem vegetal e os modos de locomoção e patrulhamento na mata foram alguns dos focos da fase realizada em Belém, entre os dias 2 e 4, no chamado Estágio de Vida e Combate na Selva (EVCS). O módulo foi ministrado pelo 2º Batalhão de Infantaria de Selva (2º BIS) do Exército.
A adaptação ao clima da Amazônia foi uma das grandes dificuldades sentidas pelos norte-americanos, avalia o sargento Justin Reed, militar lotado em Fort Campbell, instalação do Exército dos Estados Unidos localizada entre os estados do Kentucky e Tennessee. Ele relata que a experiência foi boa, mesmo com a falta de costume relacionada a sensação úmida e quente da região. Ele integrou o grupo de soldados que seguiu para a segunda fase do treinamento, no Amapá, onde as operações foram voltadas para táticas e de salto aéreo. “Mas, além disso [do calor], foi ótimo. Foi divertido. Você sempre quer ficar 1% melhor todos os dias, é o que dizemos em Fort Campbell. Então, acho que nós, definitivamente, fizemos isso vindo aqui”, disse o militar.
O resultado do treinamento e tudo que foi aprendido ao longo dos dias, segundo o sargento Reed, será repassado aos demais soldados que não estiveram presentes no exercício. Para ele, é necessário que todos tenham a experiência e entendam as dificuldades encontradas em outras regiões do mundo, para que possam, com isso, aperfeiçoar técnicas e táticas - justamente os objetivos da CORE. “Da próxima vez que formos para o campo, nós vamos, com certeza, levar algumas coisas daqui [da Amazônia]. É difícil, aqui é muito difícil. Em Fort Campbell é muito fácil, então, temos que encontrar uma maneira de fazer difícil também”, resume.
Militares do Brasil e EUA exercitam operações conjuntas na região
Sobre a primeira fase do exercício militar, focada em ensinar aos militares técnicas de combate e sobrevivência na selva, o general de brigada André Laranja Sá Corrêa, chefe do Centro de Coordenação de Operações do Comando Militar do Norte, avalia que os resultados obtidos com o treinamento foram bons, mesmo com os problemas com o clima enfrentados pelos norte-americanos.
“Eles fizeram um treinamento básico, com exercícios nos nossos rios, exercícios de adaptação ao combate na selva, com patrulhas no ambiente operacional, exercícios de orientação, diurna e noturna, obtenção de alimentos, como realizar caça, pesca, como fazer abrigos na selva”, lista o general.
O general Sá Corrêa, porém, resume uma das maiores metas da integração entre as tropas, que é o grande impulso para a realização do CORE. “O objetivo é a interoperabilidade. É como operar nossas tropas em conjunto”, detalha.
Sobrevivência
O CORE foi composto por treinamentos que ajudaram a soldado Miranda Casey, também de Fort Campbell, a desenvolver melhores percepções de sobrevivência. Miranda diz que a questão do clima foi, de fato, um desafio, mas ressalta passaria pelo exercício novamente, se tivesse a oportunidade. “Minha experiência aqui foi, realmente, incomum, porque de onde nós viemos, em Fort Campbell, não é tão quente, úmido e brilhante como é aqui. Mas foi muito bom”.
Para Miranda, o módulo de sobrevivência à base de alimentos de origem vegetal na selva foi um dos mais proveitosos. “Não foi muito difícil para mim entender diferentes tipos de frutas e de onde elas vêm, porque algumas das mesmas frutas daqui foram para a América. Para algumas eu só pensava: ‘oh, isso é diferente’. Foi bem diferente, mas foi bem legal experimentar”, conta soldado. “O treinamento de água foi uma experiência muito impactante para mim. Então, acredito que se pudéssemos fazer mais treinamento assim na América, isso realmente ajudaria as pessoas a sobreviver a tipos de problemas com água e coisas assim”.
Acordos internacionais devem observar soberania, aponta especialista
Mesmo com os benefícios que os acordos internacionais, sejam militares, sejam comerciais, possibilitam para a região amazônica, é preciso que o Brasil esteja atento para a necessidade de se preservar o território e garantir a soberania local, pondera o doutor em relações internacionais Mário Tito Almeida. “Sabemos que os EUA têm grande interesse na Amazônia, por alguns fatores. Primeiro, por toda a biodiversidade da região, minerais estratégicos, como o nióbio, e o interesse nas fontes de água potável. Causa certo impacto fazer exercícios militares na região, com essas condições. Toda cooperação militar é bem-vinda, desde que não venha com prejuízos sobre a nossa região”, frisa.
“As relações entre países obedecem a diretrizes externas. Eles traçam relações uns com os outros a depender dos interesses locais. A política externa de um país não necessariamente é igual em todos os governos, porque cada governo é eleito por um grupo de interesses. Então, se um determinado presidente é eleito com um interesse ‘x’, ele vai agir assim. Quando o governo muda, esse grupo muda o modo de agir também”, ressalta o estudioso. “Historicamente falando, o Brasil sempre esteve na zona de influência dos EUA, independente do governo, porque está incluso dentro do território da América, num interesse geopolítico. O Brasil pratica uma política chamada de pragmatismo responsável, ou seja, vai se relacionar com todos, a depender do interesse”.
Limites
A entrada dos militares norte-americanos no Brasil, incluindo os equipamentos usados para o exercício, precisou de aval da Presidência da República. Mário Tito ressalta: esse tipo de cooperação sempre existiu e, apesar do interesse aparente dos EUA, acredita ele, a CORE é uma continuidade das relações entre os dois países.
“O governo não está permitindo tudo. Mas a sociedade civil precisa ficar atenta. Uma presença na Amazônia, do ponto de vista militar, pode ensejar interesses que ultrapassam apenas a cooperação. Deve-se ter cuidado com a violação da soberania”, pondera.
Belém foi cidade estratégica para os EUA na Segunda Guerra Mundial
As relações envolvendo o Brasil e os EUA já colocaram a Amazônia, e mais especificamente Belém, no centro de relevantes movimentações militares durante a Segunda Guerra Mundial. A capital paraense foi uma das cidades escolhidas pelos norte-americanos para abrigar bases militares aeroviárias. Isso porque, dada a tecnologia existente na época, os Estados Unidos precisavam de apoio aos aviões em territórios que facilitassem a chegada até a linha de combate.
O historiador Diego Maia explica que, para chegar a esse ponto, acordos comerciais envolvendo as duas nações precisaram ser firmados, rompendo laços anteriores com a Alemanha. “O Brasil vivia um cenário de ditadura personalista [na era Getúlio Vargas], que tinha facetas próximas ao fascismo. Naquele momento, havia uma possibilidade muito maior de nos aliarmos aos países do Eixo [como a Alemanha]”, ressalta o pesquisador.
O Brasil e a guerra
Entretanto, uma série de eventos facilitaram o início da influência norte-americana na América Latina. Entre eles está o fato de o Japão (outro país do Eixo) ter bloqueado aos EUA o fornecimento de látex - matéria prima importante para diversos produtos-, além do ataque japonês à base naval norte-americana de Pearl Harbor, em 7 de dezembro de 1941, no Havaí. “Isso marca a entrada dos EUA na guerra. O látex era muito importante para a indústria bélica. Nesse momento, começou a se intensificar o imperialismo americano, porque precisavam tentar resolver o problema do látex e o maior fornecedor era o Brasil, a Amazônia”, ressalta Diego.
“Os EUA voltam as suas atenções para Belém, que era portal de entrada da Amazônia. O então presidente Getúlio Vargas foi muito pressionado pelos norte-americanos a se posicionar na guerra, e havia um plano de invasão caso ele negasse. Getúlio soube negociar. Disse que precisava de investimentos e, nesse sentido, em 1942, começa a chamada ‘política da boa vizinhança’. A partir daquele momento, o Brasil entrava na guerra ao lado dos EUA, embargando comercialmente a Alemanha e se tornando o fornecedor de látex e de outros produtos”, detalha o historiador. “O Pará recebe mais investimentos para extrair látex e começa a atração de pessoas para esse trabalho, num esforço de guerra. A campanha convocava mão de obra, ou para a Amazônia, ou para o front de batalha. E muitos do nordeste começaram a vir, e foram chamados de soldados da borracha”.
Militares na Amazônia
O látex colhido era encaminhado para o porto de Belém. Esse segundo momento foi fundamental para o desenvolvimento da Amazônia. “Belém foi pensada para ser um entreposto de aviões. Uma base aérea precisava ser construída aqui. Naquela época, a cidade só tinha bases para aviões hidroviários, e os militares norte-americanos vieram para cá desenvolver isso. A primeira foi uma base muito ligada aos bairros do Jurunas, Condor e Guamá. E a maior foi construída onde é hoje Val-de-Cans. A região de Catalina, um pedaço do Bengui… tudo era espaço reservado para essa base aérea”, acrescenta Diego.
Além da influência econômica que a presença estadunidense teve na capital do Pará, diversos outros setores foram impactados. “Por trás de tudo isso, tem as relações sociais que passam a ser estabelecidas em Belém. A cidade recebeu muitos militares norte-americanos, e isso vai mexer um pouco com o comportamento e economia locais”, reitera o historiador, lembrando que até um cassino foi instalado no chamado Grande Hotel, uma imponente e luxuosa construção que, antes de ser demolida, ficava onde se situa hoje outro edifício de hotelaria, próximo à Praça da República, na avenida Presidente Vargas.
“Tudo isso gerou também uma certa inflação para alguns produtos que circulavam em Belém. Havia o interesse em vender por valores mais altos aos norte-americanos que circulavam pela capital. E isso afetou as pessoas mais pobres da cidade. São relações que vão pairar sobre nosso contexto econômico e estrutural”, avalia o estudioso.