“A ideia que se tinha era que a hanseníase fazia ‘cair os pedaços’, que não podia passar perto porque podia se contaminar”, lembra o professor Geraldo Cascaes, 79 anos, que foi diagnosticado com a doença em 1954. A fala de Geraldo mostra bem os estigmas que se perpetuavam sobre a hanseníase, em especial na Amazônia, onde, historicamente, registra-se a maioria dos casos do Brasil. Hoje, está cientificamente comprovado que a transmissão se dá após contato contínuo com a bactéria Mycobacterium leprae - um bacilo que afeta principalmente os nervos periféricos, olhos e pele - e não a partir de um simples contato esporádico com alguém que seja diagnosticado com a doença.
Atualmente, a hanseníase é considerada uma doença rara no Brasil, ou seja: afeta até 65 pessoas em cada 100 mil indivíduos. A doença é classificada pela área de saúde como de uma raridade ainda maior, pois tem origem infecciosa e não genética, enquadrando-se dentre os 20% dos casos de doenças raras, que podem ser de origem infecciosa, autoimune, inflamatória, dentre outras. Ainda assim, a Amazônia segue sendo a região onde a maior parte dos casos é registrada: em 2021, os casos na região representaram 41% da soma do país, segundo dados do Ministério da Saúde.
Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), em 2020, dos 19.195 casos registrados na região das Américas, 93,6% (17.979 casos) foram no Brasil. O país ocupa também o segundo lugar entre os países com maior número de casos no mundo, atrás apenas da Índia (dados da OMS). De maneira geral, O professor Moisés Silva,da Universidade Federal do Pará (UFPA), explica que muitas pessoas com hanseníase não chegam a entrar para as estatísticas e não estão em tratamento. Um dos motivos que levam a isso é a falta de informações da população, em geral, sobre a doença, além da baixa cobertura da atenção básica e a falta de profissionais com a expertise para o diagnóstico.
Atualmente, o diagnóstico é feito, na maioria dos casos, por meio da avaliação clínica, com exame físico e teste de sensibilidade (térmico, doloroso e tátil). Quando essa análise não for o suficiente, é preconizada pelo Ministério da Saúde a realização de outros sete exames, incluindo alguns exames laboratoriais específicos, como o de Baciloscopia direta para bacilos álcool-ácido resistentes (BAAR), que analisa amostras da pele para verificar se há a presença da bactéria.
O professor Moisés Silva pontua que “ampliar o uso de testes complementares seria um bom caminho para detectar a infecção nos estágios iniciais, antes dos sintomas mais evidentes se manifestarem. Por exemplo, o sequenciamento genético das bactérias, como é feito com o vírus da Covid-19, que nos informa qual a variante do vírus infectou cada pessoa. As ferramentas moleculares podem nos auxiliar a entender a dinâmica de transmissão da hanseníase no Brasil e no mundo, assim como saber quem está infectado com uma bactéria resistente à medicação, mas, infelizmente, esse teste ainda não é amplamente disponível”, explica o professor.
Sintomas - Entre os sintomas mais comuns da hanseníase, estão manchas (brancas, avermelhadas, acastanhadas ou amarronzadas), sensação de formigamento em mãos e pés, diminuição ou ausência da sensibilidade e/ou da força muscular na face, mãos ou pés. Como pontuado pelo professor Moisés Silva, ver o avanço no diagnóstico e tratamento da doença é também o maior sonho de Geraldo Cascaes, cujo depoimento abriu esta reportagem: “Eu tenho muita esperança na Ciência e que um dia a hanseníase vai ser tratada muito melhor do que está sendo agora. E que realmente a cura seja mais ágil a tal ponto de que a doença não deixe sequelas nos pacientes. Que o paciente não enfrente as situações difíceis que nós enfrentamos. Esse é o meu sonho”, declara.
Prevenção - O Ministério da Saúde recomenda também a vacina BCG para quem tem contato com pacientes de hanseníase, que não foram vacinados ou que receberam apenas 1 dose da vacina BCG na infância. É uma imunização que faz parte do calendário de rotina do Brasil para crianças menores de 5 anos de idade, com o foco na proteção contra a tuberculose – outra doença contagiosa, provocada pela bactéria Mycobacterium tuberculosis. Apesar de não ser o mesmo bacilo que causa a hanseníase, é do mesmo gênero, o que justifica a orientação.
Passado envolve discriminação e segregação social
A história da hanseníase tem marcas profundas de segregação social. Por muito tempo, havia a crença de que quem fosse diagnosticado com a doença precisava ser isolado completamente do restante da sociedade. Até 1976, os pacientes diagnosticados com a doença, em todo o Brasil, eram obrigados a viver em "colônias", separados até mesmo de suas famílias. Eram chamados de "leprosos", uma denominação atualmente considerada pejorativa, que quem teve hanseníase precisou carregar pelo restante da vida, mesmo depois de curado.
Foi o que houve com Geraldo Cascaes. Aos 10 anos, foi internado compulsoriamente no antigo Hospital Colônia de Marituba, no município de Marituba, no Pará, onde ficou isolado da família. Por décadas, os pacientes foram obrigados a conviver apenas entre si, formando uma espécie de cidade independente, com sua própria prefeitura, escola, posto de saúde, e, em alguns casos, até mesmo moeda diferenciada. Na ex-colônia, até as casas eram padronizadas, em acomodações entregues pelo Governo Federal para abrigar as famílias.
Quando não tratada, a doença pode causar deformidades e incapacidades físicas, muitas vezes irreversíveis. Quando Geraldo soube que tinha hanseníase, já havia perdido parte dos movimentos das mãos e dos pés. Mas as sequelas físicas, mesmo que permanentes, não doem tanto quanto os impactos emocionais que o diagnóstico trouxe. Com lágrimas nos olhos, recorda as duras vivências desse período, lembrando, inclusive, que era obrigatório que as crianças, filhos de pacientes, fossem separados desde o nascimento, para serem criados no Educandário Eunice Weaver. Ali, ficavam aos cuidados dos funcionários e das freiras e os pais só podiam visitar uma vez por mês. A filha e o filho de Geraldo já tinham 11 e 9 anos, respectivamente, quando retornaram ao convívio familiar.
Segregação no Pará só acabou após intervenção do papa
Edmilson Picanço, 50 anos, também foi um dos filhos separados dos pais na nascença e hoje é coordenador em Marituba do Movimento de Reintegração das Pessoas Atingidas pela Hanseníase (Morhan), uma organização sem fins lucrativos criada há 42 anos e que tem capilaridade nacional. “Costumo dizer que nossos pais sofreram cinco vezes: pela doença em si, pelas sequelas graves que ficaram, pela segregação da sociedade, por sofrer preconceito e por terem seus filhos separados. É muito sofrimento por uma doença só”, declara.
Apenas em 1976 foi estabelecida uma portaria nacional estabelecendo o fim da segregação. Em Marituba, no entanto, isso só foi realmente acontecer em 1986, após a visita do papa João Paulo II, que observou de perto a situação e interviu, pedindo ao Governo Federal para encerrar a prática no local, como conta Picanço.
Mesmo com a mudança da política pública, muitos pacientes, como Geraldo, decidiram ficar no local, pois já tinham firmado suas raízes na ex-colônia. “Minha família já estava toda aqui, meu trabalho era aqui, o que íamos fazer fora?”, reflete o professor.
Vaticano - Em janeiro deste ano, no Vaticano, o Papa Francisco também aproveitou a celebração do Dia Mundial de Luta contra a Hanseníase (30/1) para rezar e defender a integração social das pessoas que, ainda hoje, em todo o mundo, sofrem discriminação por terem a doença.
Especialistas estudam a atuação da bactéria
A bactéria causadora da hanseníase é transmitida por meio do convívio contínuo com pessoas doentes que ainda não tenham sido diagnosticadas ou, eventualmente, com animais doentes. Pesquisadores vêm descobrindo que animais com a doença podem ser outros transmissores, como tatus, esquilos e chimpanzés. “Ainda há muito a se descobrir. Quanto mais se testar, mais será possível entender a respeito. A bactéria está presente na natureza e os animais podem se contagiar sem qualquer contato humano”. “Isso não quer dizer, no entanto, que deva se eliminar esses animais. O correto é não entrar em contato com o animal silvestre, por mais que ele pareça estar saudável, não apenas por conta da hanseníase. Nós podemos transmitir doenças a eles e eles podem transmitir outras doenças para os seres humanos", orienta o professor Moisés Silva, que pesquisa o tema desde 2009.
Mesmo que seja improvável de ser erradicada, a hanseníase é uma doença curável e, para Moisés Silva, é necessário que o sistema público de saúde invista na formação de médicos especialistas. “Quando conseguimos realizar o diagnóstico precoce, evitamos que as incapacidades físicas se estabeleçam (sequelas permanentes), o que melhora muito a qualidade de vida das pessoas atingidas pela hanseníase", aponta.
Tratamento eficaz e cura em até doze meses
Atualmente, o Sistema Único de Saúde (SUS) disponibiliza o tratamento com associação de três medicamentos antimicrobianos - rifampicina, dapsona e clofazimina –, método chamado de Poliquimioterapia Única (PQT-U), que permite a cura em seis a doze meses.
Em Marituba, existe o centro de referência especializado na Hanseníase, a Unidade Regional Especializada (URE) Marcello Cândia, local especializado no atendimento e tratamento da hanseníase, que presta assistência ambulatorial aos infectados e oferece treinamento para os profissionais de saúde no controle da doença no estado.
Embora muito tenha se avançado no diagnóstico e tratamento da doença, para Picanço, uma dúvida persiste: “Por que ainda há discriminação? Hoje, essas pessoas que receberam diagnóstico de hanseníase fizeram o tratamento e há muito tempo não transmitem mais a doença, mesmo que tenham ficado com sequelas. Mesmo assim, tem quem discrimine, não queira pegar na mão, não queira ficar no mesmo ambiente”, indaga.
Por isso, para o coordenador do Morhan, permanecem dois focos principais de luta: um deles é que a população tenha acesso a informações qualificadas sobre hanseníase. “Isso se consegue através de políticas públicas, de educação permanente e da comunicação”, acrescenta.
O outro é buscar medidas de reparação a todos aqueles que foram atingidos pela antiga segregação social. Desde 2007, já é concedida uma pensão especial às pessoas atingidas pela hanseníase que foram submetidas a isolamento e internação compulsórios. Agora, resta indenizar os filhos que tiveram essa separação da família. Em alguns estados, já existem projetos de leis sancionados que preveem essa medida, mas ainda não há em nível federal.
DADOS/NÚMERO DE CASOS - HANSENÍASE NA AMAZÔNIA (2021)
- Mato Grosso - 2095
- Maranhão - 1824
- Pará - 1.608
- Tocantins - 751
- Rondônia - 318
- Amazonas - 286
- Acre - 127
- Roraima - 57
- Amapá - 31
Total da região - 7097
Fontes: Ministério da Saúde e Secretarias Estaduais de Saúde