Crianças indígenas Yanomami em tratamento no hospital infantil Santo Antônio, em Boa Vista - RR_Foto MICHAEL DANTAS  AFP.jpeg
CRIME

A fome mata onde o crime prevalece

Indígenas padecem e morrem por falta de comida e água na Amazônia, um dos biomas mais ricos em biodiversidade do planeta. O que parece contrassenso é, na verdade, resultado do avanço de organizações criminosas e da falta de políticas públicas para esses povos.

Eduardo Laviano

03/02/2023

Homens, mulheres e crianças esquálidos, com ossos marcados nas costelas e olhares de desamparo, em busca de ajuda. Todos brasileiros da etnia indígena Yanomami, moradores do estado de Roraima, norte do Brasil. As imagens rodaram o mundo e são o retrato da falta de políticas públicas e omissões; e do descaso com os povos originários da Amazônia. Uma situação agravada nos últimos anos e que resultou em uma crise humanitária que matou 570 crianças yanomami, de 2019 a 2022, 29% a mais que nos quatro anos anteriores, segundo dados do Ministério da Saúde.

Veja o vídeo:

A conexão entre fome e garimpo ilegal pode não ser tão clara para muitos, mas é real e tem ligação direta com as imagens que tanto chocaram o Brasil e o mundo. Almires Machado, primeiro professor indígena da Universidade Federal do Pará (UFPA), lembra que a existência dos indígenas é indissociável da capacidade deles de comer o que conseguem caçar e pescar. Os elementos utilizados na mineração ilegal, que vão desde mercúrio até soda cáustica, contaminam rios, peixes, a vegetação e as frutas. O problema se agrava com a escalada de conflitos violentos com garimpeiros e grileiros, que gera medo nos indígenas de que, durante a busca por alimentos, um deles se depare com um criminoso armado. Isso impede que os indígenas explorem a mata para muito além do raio onde vivem, mesmo que o entorno esteja contaminado. "Esse foi o tratamento que recebemos desde que o primeiro europeu pisou no então chamado Novo Mundo", diz o professor, filho de mãe da etnia Guarani e de pai da etnia Terena.

Os parentes Yanomami usam arco e flecha. Os garimpeiros usam armas automáticas, de alto poder destrutivo e cada vez mais acessíveis. Quando há um confronto, quase sempre o parente yanomami fica em desvantagem" - Professor Almires Machado

Almires Machado também pontua que a rede de apoio ao bem-estar dos povos indígenas foi desmontada nos últimos quatro anos. Isso inclui tanto os órgãos responsáveis pelo combate aos crimes ambientais, como o Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Renováveis (Ibama) e o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), como a assistência médica e alimentar dirigida aos indígenas, por meio da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai). Este último, fundamental no combate à malária, doença parasitária que também se alastrou entre os indígenas brasileiros: entre 2014 e 2020, o número de casos cresceu 12 vezes, segundo o Sistema de Informação de Vigilância Epidemiológica. Dentre as ações para mudar esse quadro, o Ministério da Justiça e Segurança Pública publicou no Diário Oficial da União da última segunda-feira (30) a criação de um grupo de trabalho para elaborar, em 60 dias, medidas de combate ao garimpo ilegal em terras indígenas.

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Professor Almires Machado - Foto: Ascom UFPA

Outro fator também entra na equação: são muitos os relatos de garimpeiros que cooptam indígenas para o trabalho ilegal e fomentam rivalidades dentro de aldeias, inclusive entregando armas para os indígenas recrutados que decidem trabalhar no garimpo, por falta de opção. Além disso, o professor lembra que há também diversos relatos de exploração sexual de crianças e adolescentes indígenas.

"Os parentes Yanomami usam arco e flecha. Os garimpeiros usam armas automáticas, de alto poder destrutivo e cada vez mais acessíveis. Quando há um confronto, quase sempre o parente yanomami fica em desvantagem. A saudação já é na base da bala. O que fazem é esconder as crianças, o futuro das aldeias, a prioridade", explica Machado. Para ele, o momento é da classe política reagir com firmeza, construindo uma maior representação política, algo que começa a ser alterado com a presença de indígenas à frente de órgãos já existentes, como Sesai e Funai (Fundação Nacional dos Povos Indígenas), e também com a criação do inédito Ministério dos Povos Indígenas. “O novo governo já demonstrou pelo menos humanidade, preocupação. Então, é um bom começo. Vejo a opinião pública chocada e também mobilizada. Sei que a maioria dos brasileiros é favor da vida dos indígenas. Creio que essa pressão vai fazer com que muitos políticos tomem outras decisões e não queiram passar ainda mais vergonha internacional", destaca.

Redes criminosas cada vez maiores e diversificadas

Os assassinatos do indigenista Bruno Pereira e do jornalista britânico Dom Phillips, em junho de 2022, explicitaram a força do crime organizado que gira em torno da floresta amazônica e a maneira como ele interfere nas relações sociais na região, especialmente entre os povos tradicionais. O professor Aiala Colares Couto é pós-doutor em geografia e pesquisador sobre crime e violência na Amazônia. Ele esteve em Roraima no ano de 2022, onde observou o que classifica de dependência do estado, incluindo a capital Boa Vista, em relação ao garimpo e às atividades derivadas dele. Nos últimos dois anos, o governo do estado de Roraima sancionou ao menos duas leis pró-garimpo, posteriormente declaradas como inconstitucionais pelo Supremo Tribunal Federal: uma que autorizava atividade garimpeira com uso de mercúrio e outra que proibia a destruição do maquinário apreendido em operações ambientais no estado.

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A fome e a doença dos Yanomami estão diretamente ligada ao avanço da mineração em suas terras - Foto:  Valentina Ricardo  Greenpeace

O professor explica que, com a economia e tantos empregos diretos e indiretos girando em torno da atividade, o garimpo tende a se expandir e invadir terras indígenas, especialmente as não demarcadas. Oficialmente, a construção civil responde por 64,6% e é o principal setor da economia de Roraima, segundo dados da Confederação Nacional da Indústria (CNI). Já a mineração, entre minerais metálicos e não metálicos, responde por 3,6%.

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Professor Aiala Colares Couto - Foto: Cristino Martins

"O contrabando de madeira e minérios, como ouro, cassiterita e manganês, a grilagem de terras para fins de especulação, o surgimento de milícias nas áreas de disputas de terras terras reivindicadas por indígenas e quilombolas são problemas estruturais na Amazônia. Os conflitos pelo uso dos territórios, com a negligência por parte do Estado em proteger e garantir os direitos dos indígenas, deu força para um projeto necropolítico que promove o genocídio e o ecocídio, ou seja, a morte de etnias e também da natureza”, explica o professor.

Aiala ressalta que os maiores desafios por parte do governo brasileiro, hoje, são garantir a autonomia dos territórios e enfrentar o crime organizado infiltrado na Amazônia e em terras indígenas. Ele explica que já há presença de facções internacionais e narcotraficantes de países que fazem fronteira com a Amazônia brasileira, além da chegada na região de ramos do Primeiro Comando da Capital (PCC) - considerada a maior organização criminosa do Brasil, originária do estado de São Paulo.

Povos também pedem socorro em outros estados

O professor Aiala Colares Couto alerta que, no sudoeste do Pará, as terras Munduruku também têm sido impactadas pela atividade de garimpeiros que abrem áreas de exploração em territórios indígenas, expulsando e afastando aldeias inteiras. "Isso é muito grave, pois há relatos de indígenas sobre ameaças às lideranças das aldeias e de até cooptação destes por garimpeiros. É preciso evitar que os indígenas dessa região passem pelos mesmos problemas que os Yanomami vêm passando em Roraima. Fortalecer os órgãos de proteção e combater o garimpo ilegal deve ser um compromisso do Estado com os povos indígenas", diz.

As terras indígenas Kayapó e Munduruku, no Pará; Yanomami, em Roraima e Amazonas; e Sawré Muybu, também no Pará, com presença de isolados, são as que possuem maior área invadida por garimpeiros. Os dados são do Instituto de Pesquisa Ambiental (Ipam) da Amazônia e da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab).

Em nota, a Secretaria de Comunicação do Governo de Roraima ressaltou que “a gestão dos povos indígenas é competência exclusiva do Governo Federal”, que é quem quem conduz as operações contra o garimpo ilegal, recebendo o apoio do Governo do Estado, quando solicitado, “uma vez que o acesso às áreas é restrito”. A nota diz ainda que, nos últimos quatro anos, o Governo de Roraima “realizou 27.650 atendimentos de saúde a indígenas nas cinco unidades hospitalares da Capital e o atendimento dentro da comunidade é competência da Secretaria Especial de Saúde Indígena”. O documento também informa que o executivo estadual “está aberto ao diálogo e à disposição do Governo Federal para atuação”. E que mais de 203 mil unidades de medicamentos foram repassadas para apoiar as ações de assistência em saúde desenvolvidas pelos profissionais no Hospital de Campanha do Governo Federal, montado junto à estrutura da Casa de Saúde Indígena.

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Hospital de Campanha foi montado junto à estrutura da Casa de Saúde Indígena, em Boa Vista, Roraima - Foto: Michael  Dantas/AFP

Fora da Amazônia - O professor Almires Machado, da UFPA, alerta que os Guarani-Kaiowá, no Mato Grosso do Sul, também passam por problemas similares desde o início dos anos 2000. Lá, porém, é o agronegócio que empurra indígenas para fora das aldeias. “Temos na figura do agronegócio metodologias semelhantes que buscam ganhar cada vez mais terra para produzir em larga escala, via desmatamento de áreas para pasto. Isso é um obstáculo para o bem estar dos povos indígenas em vários pontos do Brasil”, avalia.

A preocupação com os Guarani Kaiowá também foi colocada pela Ministra dos Povos Indígenas, Sônia Guajajara, em entrevista recente aos veículos da Empresa Brasil de Comunicação (EBC). “Temos recebido demanda dos Guarani Kaiowá. Eles vivem em áreas de retomadas (áreas ainda não demarcadas, disputadas por fazendeiros) e isso dificulta a produção de alimentos”, afirmou.

Maioria das áreas à espera de demarcação está na Amazônia

Um dos grandes problemas comuns às diferentes etnias é a falta de demarcação de terras. Não à toa, a ministra dos Povos Indígenas, Sônia Guajajara, foi empossada em janeiro tendo, ao fundo, gritos de “demarcação já”.

Segundo dados disponíveis no site da Funai, existem hoje, no Brasil, 237 áreas cujos processos de demarcação ainda encontram-se “sob análise” - a maioria, na Amazônia Legal. Em meio a essa realidade há, cada vez mais, cadastros ambientais rurais (CARs) sobrepostos a terras indígenas, ou seja, imóveis rurais que foram cadastrados em espaços ainda não demarcados como terras indígenas, ou até mesmo em algumas áreas já demarcadas. Isso ocorre porque o cadastro é autodeclaratório, cabendo aos órgãos estaduais a análise e validação das informações declaradas. O documento também é obrigatório para documentar o espaço de imóveis rurais.

Segundo dados do Ipam e da Coiab, terras indígenas com povos isolados têm 10,9% do território com sobreposição de cadastros ilegais. Já entre as terras sem isolados, com indígenas que já possuem contato e interação com o exterior da aldeia, a sobreposição média é de 7,8%. Ainda segundo esses dados, só a terra indígena Ituna/Itatá, entre os municípios paraenses de Altamira e Senador José Porfírio, por exemplo, possui 94% do território em sobreposição com registros de CARs.

Assistência aos indígenas enfrenta obstáculos

Um estudo do Mapbiomas, uma rede colaborativa, formada por Organizações Não Governamentais (ONGs), universidades e startups de tecnologia, aponta que há, atualmente, 13.161 indígenas sofrendo com fome e desnutrição, por conta do garimpo ilegal, em cinco territórios do Pará e do Amazonas, os dois estados com maior extensão territorial do país.

Força Aérea Brasileira (FAB) entrega alimentos para serem distribuídos aos Yanomami, em Roraima_Foto.jpeg
Desde as primeiras imagens da crise humanitária, governos e sociedade civil estão se mobilizando para levar comida e medicamentos aos Yanomami - Foto : Força Aérea Brasileira

As grandes distâncias amazônicas, a pouca oferta de transportes e o número grande de indígenas dispersos em diversas aldeias e territórios acabam se tornando entraves logísticos para garantir a saúde de povos indígenas. Mesmo assim, há quem não meça esforços para prestar apoio e solidariedade. A Ação Cidadania Contra a Fome, entidade que promove a segurança alimentar por meio de doações em todo o Brasil, está realizando uma força-tarefa desde que a crise sanitária dos yanomami veio à tona. Com apoio das Forças Armadas, a Ação já levou 17 toneladas de alimentos para Roraima. Rodrigo Afonso, diretor-executivo da entidade, lembra que trata-se de um trabalho que exige um planejamento para atender a demandas específicas, bem diferentes das necessidades de quem mora nos grandes centros urbanos.

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Rodrigo Afonso - Foto: Divulgação

"Em cada região a gente entra em contato com o órgão indígena local para se informar. A Fundação Nacional dos Povos Indígenas nos ajuda nesse processo de conhecer melhor os hábitos alimentares de cada povo e entregar, de fato, o que eles precisam e consomem”, explica. “É mais do que doar comida, pois temos que aliar os aspectos culturais e nutritivos. No caso dos yanomami, por exemplo, tivemos que enviar leite em pó, algo que eles (originalmente) não consomem. Mas, segundo os profissionais da saúde, as crianças precisam de uma alimentação super reforçada dado a gravidade dos casos. Nosso trabalho é muito minucioso e não permite erros", completa.

Ele lembra que os indígenas não possuem o hábito e nem teriam onde armazenar comida por longos períodos, e, por isso, o calendário de envios precisa ser bem pensado para evitar desperdícios. "Nosso desafio é continuar dando assistência quando o caos não estiver mais nos holofotes. O assunto, aos poucos, sairá da mídia e isso traz redução de doações. É preciso um olhar de médio e longo prazo. E a gente conta sempre com a solidariedade dos brasileiros, que podem nos ajudar pelo site www.acaodacidadania.org.br", diz.

Indignação precisa se transformar em pressão

O professor indígena Almires Machado concorda que é preciso de um olhar de longo e médio prazo para a questão da fome dos povos originários da Amazônia. Ele argumenta que as cestas básicas são uma medida emergencial, mas que o problema, em si, é muito mais amplo e multidisciplinar. Machado lembra que o caráter antropológico da alimentação indígena tem sido desvirtuado pelo avanço do garimpo, que leva para as aldeias álcool, alimentos ultraprocessados e com corantes e diversos produtos industrializados. Ou seja, o primeiro passo é retirar os garimpeiros ilegais da região.

“Não há Brasil sem indígenas, pois eles chegaram aqui quando tudo ainda era nada” - Professor Almires Machado

O docente espera que a comoção provocada pelas imagens da crise humanitária dos Yanomami resulte em ações concretas. Segundo ele, ver indígenas sobrevivendo, apesar de tantas tentativas de extermínio, é um lembrete de que, independente do tamanho da brutalidade cometida contra os povos, eles resistem: não há Brasil sem indígenas, pois eles chegaram aqui quando tudo ainda era nada. "Havia uma estimativa que até os anos 1980 não teríamos mais indígenas vivos no Brasil. Foi o contrário. Demonstramos resiliência e resistência”, afirma.

O professor indígena reforça que, nos últimos 523 anos, a forma de intimidação aos povos originários não mudou. “Ela apenas recuou em alguns momentos, foi mais forte em outros, mas está viva. Mas não é todo brasileiro não indígena que é favorável a isso. As notícias reforçam a ideia de que a invasão e conquista continua, no Norte do Brasil. Alguns se escandalizam e isso precisa ser transformado em vontade de cobrar os políticos”, destaca. “Sou muito agradecido por todas as pessoas que demonstram solidariedade, afinal todos somos brasileiros. E todos temos costumes indígenas nos cotidianos, dos nomes nas ruas aos alimentos que comemos. Faz parte da nossa cultura. E sempre fará", conclui.