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Crime Organizado

Narcotráfico internacional intensifica presença na Amazônia

Redes e grupos criminosos ampliam o uso da região como rota de distribuição. Relatório global coloca Brasil como um dos principais exportadores de droga do mundo

Daniel Nardin

16/07/2022

Entre 2011 e 2020, o volume de cocaína apreendida nos nove estados que compõem a Amazônia Legal Brasileira atingiu mais de 99 toneladas, segundo dados apresentados pela Polícia Federal. O número considera apreensões de cloridrato, pasta base e crack e é 73,8% superior ao total da droga retida na década anterior. 

Considerando apenas os últimos cinco anos, entre 2016 e 2020, o volume total foi de 56,5 toneladas, quase a mesma quantidade apreendida ao longo de toda a década anterior (56,9t). Os dados revelam o crescimento de duas frentes: maior intensificação da fiscalização pelas autoridades, mas também maior movimentação de drogas na região.

Relatório – Outro levantamento que mostra o avanço do narcotráfico na região é o relatório global de 2022 do Escritório das Nações Unidas para Drogas e Crime (UNODC), que posicionou o Brasil como um dos principais exportadores de cocaína para fora do continente americano do mundo, junto com Bolívia e Peru. Ao lado desse protagonismo está o crescimento da presença de facções criminosas e do uso de portos do Norte e Nordeste do país para a distribuição da droga, abastecendo o mercado do tráfico internacional.

O Brasil é citado também como principal ponto de saída da cocaína apreendida em países europeus, ao lado da Colômbia e do Equador. O relatório global da ONU, divulgado no final de junho, destaca ainda que entre 2015 e 2021, 70% das cargas de cocaína apreendidas na África saíram do Brasil e que quase a metade (46%) da droga confiscada na Ásia teve como origem os portos brasileiros.

Segundo o relatório da ONU, nos últimos anos, houve crescimento do uso de via marítima pelo tráfico internacional. E, nessa dinâmica, alguns portos de menor porte do Norte e Nordeste do Brasil assumiram uma importância crescente para as remessas de cocaína à Europa. A alteração de rota ocorreu, segundo o documento, devido à melhoria da fiscalização e apreensões feitas no Porto de Santos, em São Paulo, até então principal porta de exportação ilegal da droga do país.

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Foto Igor Mota

Facções aumentam presença e disputa pela rota do tráfico

Em junho deste ano, foi ao ar a edição 2022 do Anuário de Segurança Pública, elaborado pelo Fórum de Segurança Pública, que reúne dados de diversos órgãos estaduais e federais. Na publicação, um capítulo trata especificamente do aumento da violência na região amazônica, justamente por conta da maior presença de facções que disputam espaço em pontos estratégicos da chamada “rota do tráfico”.

Para os pesquisadores Samira Bueno e Renato Sérgio de Lima, diretora-executiva e diretor-presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, respectivamente, o aumento da violência na região tem diversos fatores. “O desmatamento, o garimpo ilegal, a corrupção, a criminalidade e a intensa presença de milícias e facções do crime organizado, com mais de duas dezenas de organizações regionais e duas grandes organizações nacionais (Primeiro Comando da Capital, PCC, e Comando Vermelho) que disputam as principais rotas nacionais e transnacionais de narcotráfico, transformaram a Amazônia brasileira em palco de guerras que impactam fortemente os índices de violência letal em toda a região e do país", destacam os pesquisadores, em artigo publicado na edição 2022 do Anuário.

Segundo os autores, em média, a violência letal na região amazônica brasileira é 38% superior à das demais regiões do país. Já as áreas urbanas apresentam índices ainda maiores de homicídios e mortes violentas. “Nos municípios urbanos, com mais de 50 mil habitantes e/ou predominância de áreas densamente populadas, a violência letal na Amazônia é 47,9% superior à média nacional desse tipo de município. O recado é direto, ou seja, se queremos ter um país mais seguro, justo e sustentável, precisamos retomar a Amazônia da lógica da violência e do terror”, alertam. O Anuário aponta, ainda, que, das 30 cidades brasileiras com maior taxa de morte violenta intencional, 13 estão localizadas na região.

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Foto Marinha/ Divulgação

O pesquisador Aiala Couto, professor da Universidade do Estado do Pará (Uepa) e associado do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, também enfatiza no Anuário o forte crescimento da presença de facções e narcotráfico na Amazônia. “Por outro lado, não podemos deixar de enfatizar duas importantes problemáticas que vem sendo somadas a tudo que foi exposto até agora: o narcotráfico e o crescimento de facções criminosas. A primeira evidencia a Amazônia como um forte corredor geográfico de transporte de cocaína de origem andina para o Brasil, Europa e África; a segunda é um fenômeno recente que mostra o interesse de grupos ligados ao crime organizado em estabelecer conexões com as cidades da região”, aponta.

Os altos índices de violência letal na Amazônia também estão em pauta no Senado Federal. No último dia 6, conforme divulgado pela Agência Senado, o presidente da casa, Rodrigo Pacheco, aprovou pedido de instalação da CPI do narcotráfico, protocolado pelo senador Eduardo Girão (Podemos-CE) e que busca investigar o crime organizado e o narcotráfico, apurando a relação dessas atividades com o aumento de homicídios de jovens e adolescentes no Brasil, entre os anos de 2016 e 2020.

Amazônia é “região estratégica para geopolítica do narcotráfico”, diz pesquisador

Aiala Couto destaca ainda que as diferentes facções do crime organizado que atuam no Brasil passaram a enxergar a Amazônia como uma região estratégica para a geopolítica do narcotráfico, uma vez que a área possui relação transfronteiriça que envolve múltiplos agentes, cada um com sua função específica no universo do crime. “Facções da região Sudeste do Brasil, a exemplo do Comando Vermelho, originária do Rio de Janeiro, e do PCC, proveniente de São Paulo, passaram a ter interesses em atuar nas áreas de fronteira, bem como em cidades consideradas importantes para a fluidez da droga. O interesse destas facções está relacionado à busca pelo controle das principais rotas do tráfico de drogas na Amazônia”, detalha.

Segundo ele, no entanto, facções locais passaram nos últimos anos a compreender melhor os mecanismos de funcionamento das redes ilegais  por meio da Amazônia e, dessa forma, os estados do Amazonas e Pará, considerados grandes “corredores” de circulação de mercadorias ilícitas (drogas, madeiras e minérios contrabandeados) “tornaram-se o lócus de surgimento de grupos criminosos regionalizados, tais como Família do Norte (FDN-AM) e Comando Classe A (CCA-PA)”, avalia o pesquisador, no Anuário de Segurança Pública.

De acordo com o chefe do Centro de Coordenação de Operações (CCOp) do Comando Militar do Norte (CMN), general de Brigada Evandro Luiz Lopes Ferreira, o Pará, bem como o Amapá, Maranhão e norte do Tocantins – áreas de responsabilidade do CMN na Amazônia Oriental -, não são estados fronteiriços com países considerados produtores de drogas, o que faz com que o principal interesse das organizações criminosas, ligadas ao narcotráfico, na região, seja de transporte dos materiais ilícitos para possível exportação. “A nossa fronteira é com a Guiana Francesa, Suriname e Guiana, que não são grandes produtores de drogas. Existem os ilícitos, que são combatidos com o patrulhamento constante e por meio das grandes operações conjuntas. Então, posso dizer que o Pará é uma região de passagem, seja para outros estados ou para o exterior”.


 Cartografias – O avanço e a atuação de facções criminosas na Amazônia são também detalhados no estudo "Cartografias das violências na região amazônica: relatório final", divulgado em fevereiro deste ano. O documento foi elaborado por integrantes do Grupo de Pesquisa Territórios Emergentes e Redes de Resistências na Amazônia (Terra), da Uepa.

O estudo reforça que a "Amazônia é cercada por facções e, sendo uma área de trânsito da droga, é palco de estratégias em conjunto às facções brasileiras para que a mercadoria ilícita possa entrar pelas fronteiras do país e alcançar os principais mercados. E, desse modo, as facções brasileiras dependem de tais relações para receberem as drogas e colocarem em pleno funcionamento a venda de cocaína, ecstasy e skank no mercado interno e nas transações que envolvem o mercado global", destaca o relatório.

Assassinato de Bruno e Dom acenderam alerta sobre violência na região

O estado do Amazonas é a grande porta de entrada da cocaína de origem peruana e de skank, da Colômbia, “pois detêm as mais influentes rotas do tráfico de drogas: a do rio Solimões e a do rio Javari”, afirma o professor.

Aiala detalha ainda que “a rota do Solimões se tornou palco de disputas e conflitos envolvendo piratas da região de Coarí, membros da FDN e integrantes do PCC. Estes últimos, que detinham o controle da área, chegaram até a região através dos estados do Mato Grosso e Acre, fazendo várias alianças ao longo do percurso, já a rota do Rio Javari é hoje uma das mais complexas pelo fato de ter a presença da facção ‘Os Crias’, facção esta que surge da dissidência de membros da FDN que atuam na tríplice fronteira controlando a mais importante rota utilizada por narcotraficantes peruanos”, aponta.

O Anuário destaca que, de acordo com Aiala, “o vale do Javari convive com uma série de problemas de segurança pública que atingem as comunidades indígenas e os ribeirinhos da região, que sofrem ataques de garimpeiros e madeireiros contrabandistas”.

Foi em Atalaia do Norte, na terra indígena do Vale do Javari, que foram assassinados Bruno Pereira e o jornalista inglês Dom Phillips. Após um mês do duplo homicídio, ocorrido em 5 de junho, o caso segue sendo investigado pela Polícia Federal. Até a última quarta-feira (6), três pessoas haviam sido presas pelo suposto envolvimento no crime e outras cinco ainda são investigadas. As autoridades apuram a possível existência de mandastes e as motivações do crime. Uma das linhas de investigação aponta que ambos foram mortos por denunciarem práticas criminosas na região, entre elas a pesca ilegal de pirarucu, espécie de peixe típica da região amazônica, em terras indígenas.

Para o pesquisador Aiala Couto, os grupos que cometem práticas ilegais se inter-relacionam na região. “A complexidade que se estabelece na Amazônia envolve uma rede de criminosos que estão relacionados tanto ao narcotráfico, quanto aos crimes ambientais, e esta dinâmica fragiliza as políticas de segurança pública afetando negativamente os povos da floresta que estão expostos a uma dinâmica de violência. O enfrentamento da mesma, portanto, deve perpassar pelo enfrentamento ao crime organizado e deve considerar as especificidades locais da região, a qual está sendo alvo de disputa”, complementa.

Porto de Vila do Conde: droga em cerveja, minério e até açaí

O Porto de Vila do Conde, localizado no município de Barcarena, distante cerca de 60 quilômetros da capital Belém, no estado do Pará, é um dos principais portos da região amazônica. Diariamente, através dele, são exportadas cargas legais, como minério, madeira e, entre outros produtos, derivados da fruticultura amazônica, como o açaí.

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Foto Igor Mota

A frenética movimentação de navios que têm a Europa como destino e a baixa fiscalização, segundo uma fonte policial que atua na investigação de crimes relacionados ao narcotráfico, fazem do local, administrado pela Companhia Docas do Pará (CDP), uma área bastante utilizada pelo crime organizado. “É um porto estratégico onde chega a droga e por onde ela é enviada para países da Europa. Muitas vezes recebemos uma denúncia de carga, mas para acessar e mandar abrir um contêiner, precisamos de ordem judicial. E, então, perdemos o tempo certo, a informação vaza e a operação acaba frustrada. Mesmo assim, é um porto onde a apreensão é frequente, mas muita coisa ainda passa. Se tiver fiscalização eficiente, todo dia tem algo para ser apreendido”, revela a fonte, que pede para não ser identificada.

“Muitas cargas são alteradas nos contêineres, dentro da área da CDP. Os lacres, feitos fora da área de embarque, são adulterados. É na área de embarque que, na maioria dos casos, inserem a droga que vai ser despachada”, diz.

Em nota, a CDP informa que trabalha com efetivo de Guardas Portuários Federais no Porto de Vila do Conde, “além de completo sistema de segurança eletrônica, conforme estabelecido pelo plano de segurança aprovado pela Comissão Nacional de Segurança Pública nos Portos, Terminais e Vias Navegáveis (Conportos)”. A Companhia explicou que todas as operações com contêineres, incluindo a sua fiscalização, ocorrem no terminal alfandegado, por empresa operadora portuária, mediante contrato de arrendamento, responsável por este tipo de operação; e informou “que não possui qualquer processo administrativo interno em andamento contra empregados da CDP, no que se refere a tráfico de drogas ilícitas - narcotráfico”. 

Apreensões recentes relacionadas ao Porto de Vila do Conde

Outubro, 2021:Ação integrada entre a PF e a Receita Federal, em conjunto com outros órgãos, incluindo do Pará, apreendeu, em poucos dias, quase uma tonelada de cloridrato de cocaína, escondidas em cargas de manganês. A droga tinha como destino a cidade de Rotterdam, na Holanda, importante entreposto mundial. A carga ilegal estava escondida dentro de um dos contêineres de manganês, que fazia parte de uma exportação com mais 29 contêineres.

Novembro, 2021: Quase meia tonelada (440 quilos) de cocaína  confiscada. A droga estava armazenada junto a caixas de garrafa de cerveja da empresa Cerpa e tinha como destino a cidade de Porto, em Portugal. Nesse episódio, que ainda segue sob investigação, as autoridades policiais identificaram que o lacre foi adulterado. Uma das suspeitas dos órgãos de segurança é de que tenha ocorrido a prática de "rip-on", que é quando o lacre original é retirado, algo é inserido indevidamente e, então, um novo lacre é feito de maneira irregular. Na semana da apreensão, em nota, a Cervejaria Paraense S/A declarou que colabora de forma irrestrita com as investigações que “buscam desmantelar uma associação criminosa para tráfico internacional de drogas que atua no Estado do Pará”.

Junho, 2022:  Polícia Judiciária de Portugal confirmou a prisão de brasileiros durante a Operação “Norte Tropical”. O carregamento ilegal de cocaína – suficiente para produção de 3,2 milhões de doses individuais, segundo a autoridades portuguesa – estava escondido em carga de açaí congelado, que saiu do Porto de Vila do Conde e estava sendo exportado para o país europeu.

Em Portugal, as autoridades têm tido maior foco em cargas vindas de países da América Latina. Uma das operações, realizada no início deste ano, foi batizada de “Exotic Fruit”, ou “fruta exótica”, justamente por esconder cocaína em carregamento de frutas tropicais, como banana, mamão e, agora, açaí. Entre os presos na ação estava o português Ruben Oliveira, também chamado de "Xuxas", tido como um dos maiores traficantes de droga do país. Ele seria o “braço direito” de um brasileiro, Sérgio Carvalho, conhecido como “Major Carvalho”, preso na Hungria em junho deste ano. Pelo volume de transações ilegais e ramificações de suas operações, Carvalho foi apelidado de “Escobar brasileiro”, em referência ao traficante colombiano Pablo Escobar.