Para muita gente, estar conectado à internet é tão natural quanto acender a luz ou abrir a torneira. Um simples toque na tela do celular dá acesso a notícias, aulas, atendimento médico, trabalho e lazer. A vida acontece na ponta dos dedos, em tempo real. Porém, para milhões de brasileiros, isso ainda não é realidade.
Segundo pesquisa do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), cerca de 22 milhões de pessoas vivem em casas sem internet no Brasil. A maioria está concentrada nas regiões Norte e Nordeste. No Acre, 1 em cada 4 domicílios ainda não tem acesso à rede. No Amazonas e no Pará, mais de 20% das residências seguem desconectadas. Em contraste, unidades como São Paulo, Santa Catarina e o Distrito Federal ultrapassam os 93% de cobertura, evidenciando uma desigualdade digital que reforça outras formas de exclusão.
A Organização das Nações Unidas (ONU) reconhece o acesso à internet como um direito humano fundamental. Até pouco tempo atrás, no entanto, a conectividade ainda era negada aos moradores da comunidade Campo Verde, no interior de Concórdia do Pará, região nordeste do Estado, onde a ausência de internet impunha limites ao cotidiano das famílias.
A 40 quilômetros do centro urbano mais próximo, os comunitários viviam à margem do mundo digital. Os principais meios de informação eram o rádio e a televisão, ambos com sinal instável. “As notícias chegavam mais no boca a boca mesmo”, recorda José Maciel, de 21 anos, morador da comunidade e hoje estudante de Engenharia de Telecomunicações da Universidade Federal do Pará (UFPA).
COMBATE
Mas esse cenário começou a mudar em 2023, com a chegada do Projeto Telefonia Celular Comunitária (Celcom) à comunidade. A iniciativa é desenvolvida pelo Núcleo de Pesquisa e Desenvolvimento em Telecomunicações, Automação e Eletrônica (Lasse), laboratório da UFPA, e instalada no Parque de Ciência e Tecnologia (PCT) Guamá, em Belém. O objetivo é levar conectividade para comunidades tradicionais e extrativistas da Amazônia para combater a exclusão digital.
“O padrão de conectividade na nossa região ainda é muito desigual. As operadoras comerciais não chegam até essas áreas porque não é lucrativo. Então, criamos tecnologia para facilitar a chegada do sinal 4G e 5G nesses lugares”, explica o engenheiro da computação Cleverson Nahum, pesquisador do projeto. “A gente desenvolve, instala e capacita as comunidades para manterem o sistema funcionando a longo prazo”, destaca.
Segundo Nahum, mestre e doutor em engenharia elétrica pela UFPA, o modelo comunitário de telefonia é uma resposta prática à negligência histórica com essas populações. “O que a gente faz é quebrar um ciclo de exclusão. Ao permitir que as comunidades tenham autonomia sobre sua própria conectividade, a gente fortalece a cidadania, a educação, o acesso à saúde e até as possibilidades de geração de renda. E tudo isso sem depender de grandes corporações”, assegura.
FUNCIONAMENTO
Atualmente, o Celcom funciona em duas comunidades: Campo Verde, com cerca de 500 moradores beneficiados, e Boa Vista do Acará, no município do Acará, nordeste do Pará, com até 300 pessoas atendidas. O sistema envolve a instalação de torres com antenas de 30 a 50 metros de altura, servidores locais que processam os dados e uma rede de miniantenas que amplifica o sinal.
Na vida de José Maciel, o projeto provocou uma reviravolta pessoal. “Escolhi engenharia de telecomunicações porque o projeto despertou uma curiosidade que eu não tinha antes. Quis entender como aquilo funcionava, como uma coisa que parecia tão distante podia ajudar tanto a nossa comunidade”, relata.

O jovem atua, hoje, como monitor do Celcom em Campo Verde. Mas ainda há desafios. “O sinal que nós temos ajuda, mas não é suficiente. Além disso, menos de 30% das pessoas aqui sabem como lidar com a tecnologia”, sinaliza. Apesar disso, ele reconhece os avanços. “A internet trouxe informação, comunicação, educação e saúde. É um direito!”, argumenta.
Iniciativa conecta os povos da floresta
Enquanto algumas ações avançam em escala estadual, há também iniciativas de abrangência regional, que conectam múltiplos territórios. É o caso do Conexão Povos da Floresta, projeto criado em 2022 e implantado em janeiro de 2023, com o objetivo de levar internet banda larga a mais de 4.500 comunidades indígenas, quilombolas, ribeirinhas e extrativistas da Amazônia Legal.
A proposta busca promover a inclusão digital como ferramenta de cidadania, educação, saúde e conservação ambiental. “Estamos em fase de escala”, conta Juliana Dib Rezende, secretária executiva da iniciativa. “Já conectamos mais de 1.700 comunidades, o que estimamos representar cerca de 145 mil pessoas. A meta agora é chegar a três mil comunidades até o fim deste ano, sempre priorizando áreas que enfrentam os maiores desafios de acesso e ameaças externas e onde a conectividade pode ter impacto na garantia de direitos”, detalha.
O projeto é liderado pela Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras e Rurais Quilombolas (CONAQ), Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (COIAB) e Conselho Nacional das Populações Extrativistas (CNS), com apoio de mais de 30 organizações da sociedade civil, instituições e empresas.
ESTRUTURA
Com roteadores de alta capacidade, antenas via satélite, celulares, computadores e, em regiões isoladas, kits de energia solar, o Conexão Povos da Floresta ultrapassa barreiras logísticas, climáticas e geográficas. Só no Pará, 691 comunidades já foram alcançadas, seguidas por 386 no Amazonas, 209 no Amapá, 105 no Acre, 94 em Rondônia, 64 no Mato Grosso, 63 no Maranhão, 60 em Roraima e 50 no Tocantins.
Mas a tecnologia, segundo Dib Rezende, só tem sentido se for apropriada coletivamente e com consciência. “Um dos pilares do projeto é o controle comunitário da rede. A comunidade escolhe os facilitadores que vão gerenciar a conexão, define as regras de uso e participa da governança do sistema. Isso fortalece o protagonismo local”, resume.
Para dar sustentação a essa nova realidade digital, a iniciativa criou cinco Grupos de Trabalho (GTs): Educação, Saúde, Proteção Territorial, Empreendedorismo e Cultura e Ancestralidade. Neles, surgem cursos como o Sabedoria Digital, com foco em segurança e uso responsável da internet. Já no eixo da saúde, um programa de telessaúde permitiu mais de 1,1 mil atendimentos remotos em 100 comunidades.
BENEFÍCIOS
Os impactos práticos aparecem em diferentes esferas. No Vale do Javari (AM) e no Xingu (PA), a internet ampliou a capacidade de vigilância territorial contra invasores. Outro exemplo vem da Resex do Rio Unini, em Barcelos (AM), onde um morador passou a divulgar serviços de turismo ecológico nas redes sociais após ser capacitado em empreendedorismo digital pela iniciativa.
No momento, há instalações simultâneas sendo realizadas em todos os estados da Amazônia Legal. “A conectividade é também uma forma de proteção ambiental. Eles passam a denunciar invasões, acompanhar debates políticos e participar da construção de políticas públicas sem sair de seus territórios”, conclui a secretária executiva do projeto.

Acesso é estratégia para evitar a colonização digital
Mais do que conectar comunidades à internet, a inclusão digital na Amazônia é uma medida de reparação histórica e estratégica. É o que argumenta o especialista em tecnologia e inteligência artificial Igor Gammarano, pós-doutor em administração e professor da Universidade do Estado do Pará (Uepa). Para ele, integrar as comunidades ao ambiente digital é um avanço que também fortalece a cidadania e promove mais equidade. “Ao acessar a internet, as populações passam a reivindicar direitos, dialogar com outras culturas, fortalecer a economia local, além de consumir conteúdo”, garante.
Entre os principais benefícios, Gammarano menciona o uso da internet para suprir lacunas estruturais históricas. “Na educação, isso significa romper com a escassez de materiais didáticos e permitir que alunos e professores dialoguem com o mundo em tempo real. Na saúde, é o salto para a telemedicina, para diagnósticos remotos e ações preventivas que salvam vidas onde o Estado não chega”, exemplifica. “Na economia, o acesso digital permite que pequenos produtores comercializem itens da sociobiodiversidade, criando novos modelos de empreendedorismo sustentável. Já na política, aumenta a capacidade de mobilização e fiscalização social”, enumera.
DESAFIOS
Em contrapartida, o pesquisador também alerta para os riscos de uma inclusão feita de forma desestruturada, que pode resultar em novas formas de exclusão. “Quando essas comunidades acessam o ambiente digital, elas se deparam com riscos reais: manipulação de dados, exploração econômica e apagamento cultural, por exemplo”, observa. Segundo ele, há uma ausência de políticas públicas que garantam proteção de dados, segurança informacional e respeito à cultura local.
Gammarano enfatiza ainda que a conectividade não pode ser imposta de forma colonial, ignorando as especificidades das populações tradicionais. “Conectar sem invadir, respeitando territórios, culturas e modos de vida. O digital não pode ser uma nova forma de colonização”, adverte.
Se por um lado a internet representa uma janela para o mundo, por outro, os caminhos para fazer essa conexão chegar até as comunidades tradicionais da Amazônia são tortuosos, longos e, muitas vezes, instáveis. A começar pela própria geografia da região, onde rios, matas e distâncias extremas exigem uma logística complexa e cara. “Os principais entraves envolvem organizar essa logística e o custo elevado da implantação em áreas remotas”, aponta Juliana Dib Rezende, do Conexão Povos da Floresta.

PLANEJAMENTO
Essa preocupação é compartilhada por Cleverson Nahum, pesquisador do Projeto Celcom, que acrescenta a necessidade de planejamento sustentável e continuidade nas políticas públicas. “Projetos de conectividade que começam e não se sustentam ao longo do tempo podem gerar frustrações e retrocessos. É preciso garantir que a conectividade permaneça e seja útil para as comunidades”, afirma.
Além das dificuldades de infraestrutura, há também um impacto social sutil, mas profundo: a substituição de espaços coletivos por interações virtuais. “Antes, conversávamos nos terreiros. Agora, mandamos mensagens e poucas vezes vamos aos vizinhos, por exemplo”, comenta a coordenadora pedagógica Alice Silva, da comunidade Campo Verde, em Concórdia do Pará.
Para ela, o futuro da conectividade precisa equilibrar benefícios tecnológicos com o fortalecimento comunitário. “Se houver internet pública nos espaços coletivos, com monitores voluntários, podemos fortalecer a cidadania, garantir direitos e manter vivas as nossas formas de convivência”, defende.
PARCERIA INSTITUCIONAL
A produção da Liberal Amazônia é uma das iniciativas do Acordo de Cooperação Técnica entre o Grupo Liberal e a Universidade Federal do Pará. Os artigos que envolvem pesquisas da UFPA são revisados por profissionais da academia. A tradução do conteúdo também é assegurada pelo acordo, por meio do projeto de pesquisa ET-Multi: Estudos da Tradução: multifaces e multissemiótica.