Estamos a poucos meses do fim de 2022 e, para a Amazônia, este já é um ano de sucessivos marcos negativos, que preocupam climatologistas, ambientalistas e pesquisadores. São recordes de queimadas e desmatamentos, além dos alertas para as mudanças climáticas que impactam a vida não só de quem mora na região amazônica, como de populações de outras regiões e países.
No início deste mês, um artigo da publicação científica Nature confirmou o que pesquisadores brasileiros já vêm alertando: a umidade da floresta amazônica está diminuindo e há um aumento da secura do ar na região. O estudo é assinado por pesquisadores da Universidade de Exeter, no Reino Unido, e identificou que essas mudanças estão relacionadas às alterações de temperatura, progressivamente elevadas em razão do avanço e persistência de queimadas no bioma.
O texto científico é assinado pelos pesquisadores Paul Ritchie, Isobel Parry, Joseph J. Clarke e Peter M. Co, e constatou uma redução de 4% da chamada fração evaporativa, nas últimas três décadas, com um aumento de amplitude térmica de 1ºC. A fração evaporativa é a relação entre o fluxo de energia que chega e o que sai da superfície terrestre. Na prática, os pesquisadores constataram que a Amazônia, mais seca e quente, está deixando de reter a água da chuva e de, por meio do fenômeno evapotranspiração, espalhar umidade pela atmosfera. Some-se a isso o prolongamento da estação seca, mesmo em áreas ainda preservadas da floresta, que contribui para uma mortalidade maior de árvores, e o resultado é a floresta amazônica deixando de absorver gás carbônico (CO2) para ser uma emissora de CO2, o principal gás causador do efeito estufa.
Segundo Carlos Nobre, copresidente do Painel Científico para a Amazônia e pesquisador sênior do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo (USP), o artigo dos pesquisadores da universidade britânica, baseado em modelos matemáticos de clima denominados “Modelos do Sistema Terrestre”, é mais uma prova dos efeitos do aquecimento no bioma. O pesquisador destaca que o estudo publicado na Nature vai ao encontro dos resultados de outros estudos, baseados em observações de campo, por meio do Experimento de Grande Escala da Biosfera-Atmosfera na Amazônia (Projeto LBA), e que também já vêm alertando para a elevação de temperatura e os efeitos do aquecimento global na Amazônia, desde o final dos anos 90.
Nobre destaca que a situação é pior no sul da Amazônia, no trecho que compreende o sul do Pará, norte de Mato Grosso, sul do Amazonas, Acre e a Amazônia boliviana. Segundo ele, esta é a área que está mais próxima do chamado “ponto de não retorno”, quando os impactos das mudanças climáticas impulsionadas pela ação humana não mais poderão ser revertidos e a floresta, da forma como conhecemos, desaparecerá, dando lugar a um “ecossistema a céu aberto, com poucas árvores, à semelhança de uma savana tropical, porém, sem a riqueza de biodiversidade do Cerrado”, explica.
Descrença - Apesar de todos os alertas científicos, uma parte da sociedade ainda tem um olhar descrente para os alertas da ciência sobre o possível desaparecimento da Amazônia, da maneira como a conhecemos hoje. Porém, os pesquisadores explicam que os impactos não se materializam na floresta em um ato só, como na tela dos filmes de “cinema-catástrofe”. A mudança já está ocorrendo e seguirá avançando, se medidas de proteção e defesa do bioma não forem tomadas com urgência. “Estamos falando de (mudar para) um ecossistema com uma estação seca de cinco, seis meses, por ano, muito mais quente, com temperaturas acima dos 35°C, de onde muitas árvores desapareceriam, com perdas de dezenas de milhares de espécies”, alerta o pesquisador Carlos Nobre.
Fogo não é elemento natural do bioma
Ao contrário do Cerrado, bioma que teve no fogo de causas naturais (como a combustão provocada pela incidência de raios), um dos componentes históricos para a formação da vegetação, a Amazônia não tem o fogo como um elemento natural. Segundo o pesquisador Carlos Nobre, mesmo na estação seca, a temperatura do solo fica na faixa de até 26°C e, na copa das árvores, não deveria passar dos 30°. “Essa faixa é a que a biodiversidade utilizou sempre para se desenvolver. As folhas não praticam mais fotossíntese se a temperatura chegar acima de 42 graus”, pontua.
No entanto, as queimadas e os números relacionados ao desmatamento continuam aumentando. Dados divulgados pelo Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon) comprovaram que o desmatamento acumulado na Amazônia apenas em oito meses deste ano chegou a quase 8 mil km², sendo o maior dos últimos 15 anos. Os pesquisadores levantaram que, somente em agosto, foram derrubados 1.415 km² de floresta. Ainda segundo o relatório do Imazon, a degradação florestal causada pela extração de madeira e pelas queimadas na região cresceu 54 vezes, em relação ao mesmo mês do ano passado. A área degradada passou de 18 km², em agosto de 2021, para 976 km² em agosto de 2022, uma alta de 5.322%.
COP 27- O pesquisador Carlos Nobre afirma que o Painel Científico para a Amazônia, iniciativa ligada à Rede de Soluções para o Desenvolvimento Sustentável, da ONU, que envolve mais de 200 renomados cientistas e pesquisadores de oito países, levará a urgência de ação em favor da região amazônica para a COP-27, Conferência da Organização das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas, agendada para novembro deste ano, no Egito. “Precisamos atuar muito rapidamente para zerar o desmatamento, zerar a degradação florestal, reflorestar e regenerar uma grande parte do sul da Amazônia. Vamos lançar na COP-27 uma proposta de Arco da restauração florestal”, finaliza.
Temática ambiental precisa ser vista como prioridade
O pesquisador Lincoln Alves, da Coordenação Geral de Ciências da Terra, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (CGCT-Inpe), corrobora com os colegas do Reino Unido e do Painel Científico para a Amazônia. Ele destaca que, ao longo das últimas décadas, as diversas pesquisas de campo e modelagem se completam e trazem informações preocupantes sobre o processo que a região amazônica vem passando. “Do ponto de vista científico, não há mais dúvidas do que vem ocorrendo, no âmbito climático”, afirma.
“Quem vive, conhece ou estuda a Amazônia, sabe muito bem que não é apenas ‘uma’ Amazônia, são ‘várias Amazônias’, e todas estão sendo impactadas pelas mudanças climáticas”, aponta, para esclarecer que os impactos são observados em diferentes níveis, em meio à imensidão do bioma, e que as imagens de satélite são mais uma evidência de o quanto o cenário da Amazônia já se modificou, ao longo dos anos.
Dados divulgados pelo Inpe revelaram que apenas nos primeiros sete dias do mês de setembro deste ano, o número de queimadas na Amazônia conseguiu superar os focos de incêndio de todo o mês de setembro de 2021. Foram 18.374 focos de incêndio do dia 1º ao dia 7 de setembro - quase 10% a mais que a quantidade de focos registrada no mês inteiro, no ano passado. Também no início de setembro a fumaça das queimadas na Amazônia chegou a São Paulo e a outros estados do sudeste e sul do Brasil.
O pesquisador reforça que a temática ambiental precisa fazer parte da agenda prioritária do país independente de quem ganhar as eleições majoritárias deste ano, e que o Brasil precisa ter mais protagonismo nessa área.
Doenças respiratórias aumentam e elevam gastos públicos
Além do impacto direto no clima do bioma, o avanço do desmatamento e das queimadas na Amazônia tem outro efeito grave e preocupante. Um estudo da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e do WWF-Brasil, relacionou às queimadas os percentuais de internações hospitalares por problemas respiratórios, entre 2010 e 2020, nos estados com maior número de focos de calor, na referida década: Amazonas, Pará, Mato Grosso, Acre e Rondônia.
O estudo, divulgado em 2021, considerou que, “mesmo com a possível subnotificação, por conta de inconsistências na base de dados do DataSUS, os valores diários extremamente elevados de poluentes contribuíram para aumentar, em até duas vezes, o risco de hospitalização por doenças respiratórias atribuíveis à concentração de partículas inaláveis finas (fumaça) nos estados analisados”.
Segundo o relatório, no Amazonas, o percentual de internações hospitalares relacionadas às altas concentrações de fumaça foi de 87%, no período analisado. O documento destaca que no Mato Grosso, Acre e Rondônia esse percentual foi de 70% e, no Pará, 68%. Já quando os pesquisadores avaliaram as internações por doenças respiratórias, o percentual associado à fumaça foi o mesmo: 70%
O estudo revelou que o Sistema Único de Saúde (SUS) teve uma despesa em saúde de aproximadamente R$1 bilhão com hospitalizações nesses estados, decorrentes das altas concentrações de poluentes atmosféricos.
Bebês, gestantes, idosos e pessoas com comorbidades correm mais riscos
A pesquisadora Sandra Hacon, da Escola Nacional de Saúde Pública da Fiocruz, que participou o trabalho realizado em parceria com a WWF-Brasil, explica que os materiais particulados que compõem a fumaça resultante das queimadas têm compostos orgânicos e inorgânicos, incluindo carcinogênicos (que podem provocar câncer). A combinação da fumaça com a baixa umidade relativa do ar, comum na estação mais seca, e com as altas temperaturas, aumenta o risco para a saúde. “Esses poluentes causam quadros de rinite, sinusite, otite, pode até resultar em câncer sinusal, por exemplo. Esses efeitos vão ser muito piores em grupos vulneráveis, como gestantes, crianças, pessoas com comorbidades como diabetes, doenças cardiovasculares, hipertensão e doenças respiratórias”, afirma Sandra, destacando que são geralmente as pessoas dos grupos vulneráveis que acabam sendo internadas nesse período.
Atividades físicas ao ar livre devem ser evitadas na estação seca
A pesquisadora da Fiocruz alerta que, nos municípios onde a fumaça provocada pelas queimadas é mais intensa, a população deve evitar praticar atividades físicas ao ar livre durante a estação seca. “Ao praticar as atividades físicas, é comum respirar pela boca. Porém, na boca, não há nenhum tipo de ‘filtro’ da poluição (ao contrário das narinas). Então, a poluição que entra pela boca, passa pelo sistema gastrointestinal e vai direto para a corrente sanguínea”, alerta. “Quando a pessoa faz exercício físico, aumenta o fluxo sanguíneo e o pulmão fica mais capilarizado, ou seja, se dilata, o que aumenta a capacidade de absorção de gases. Isso é bom em um ambiente sem poluição, baixa umidade relativa do ar e alta temperatura. Com o ar mais seco, temperaturas elevadas e inalação de fumaça, isso é uma combinação explosiva”, completa, lembrando ainda que a perda da função pulmonar é um processo que ocorre no organismo de forma assintomática (sem sintomas).
Com todos esses riscos à saúde, ela lamenta a falta de campanhas de orientação para evitar a prática de atividades ao ar livre nesta época do ano. “Tinha que ter campanhas de esclarecimento para evitar atividades esportivas ao ar livre. Deveria ter um protocolo de urgência sanitária nos postos de saúde para esta época do ano - especialmente de julho a outubro”, comenta. Ela pontua que pessoas com doenças cardíacas e renais, em um quadro crítico como esse, podem sofrer consequências graves, como infarto, isquemia e angina, quadros que apresentam risco de morte.
Crises respiratórias e sangramentos nasais frequentes
A social media Giovanna Marquioro, 26 anos, mora no município de Marabá, na região sudeste do Pará, há 8 anos. Ela, que tem diagnosticado rinite e sinusite, costuma sentir muita dificuldade para respirar no período mais seco e quente, especialmente entre os meses de agosto e setembro, quando as temperaturas ficam muito mais elevadas. Giovanna lembra que, há cerca de duas semanas, precisou procurar atendimento médico de urgência após um intenso sangramento nasal. “Era muito sangue. Acho que estourou algum vaso quando fui assoar o nariz. Enquanto morei em Belém (capital do Pará), não tinha problemas respiratórios. Desenvolvi aqui, e, em especial nos últimos anos, tenho tido crises e sangramentos nasais mais frequentes”, afirmou.
Segundo o monitor do fogo, do projeto MapBiomas, em 2022, a área atingida pelas queimadas no município de Marabá foi 9.425 hectares, até o mês de agosto. O número é bem maior que o registrado no município, no mesmo período de 2021, 5.455 ha. Giovanna, que costuma trafegar de moto pela cidade, diz que, infelizmente, a fumaça das queimadas são parte do cenário da cidade. “Se a gente limpa a casa pela manhã, no fim da tarde tem que limpar de novo, por conta da fuligem”. Ela relata que costuma ir com os amigos ao pedral da ponte do rio Tocantins, um dos rios que banham Marabá. “A gente consegue ver boa parte da mata ciliar e, à noite, vemos melhor as chamas das queimadas. É assustador”, lamenta.
Para diminuir as crises respiratórias, Giovanna faz limpeza com soro nasal, além de nebulização, em casa. No dia a dia, mantém um copo com água sempre ao lado da cama. A pesquisadora da Fiocruz, Sandra Hacon, diz que recipientes com água, umidificadores, pano molhado nas janelas, frestas das portas e maior hidratação são algumas medidas que podem ajudar quem sente mais fortemente os efeitos da estação seca. "Também é importante monitorar pressão arterial e batimento cardíaco nos postos de saúde”, finaliza.