Em meio ao verde das árvores e ao canto dos pássaros, quatro peixes-bois da Amazônia repousam em tanques de água limpa, sob os cuidados atentos da equipe do Centro de Triagem e Reabilitação de Animais Silvestres (Cetras), da Universidade Federal Rural da Amazônia (Ufra), em Belém. Filhotes resgatados da beira da morte, cada um carrega uma história de luta pela sobrevivência. Eles são os primeiros da espécie acolhidos pelo projeto, que tem 13 anos de atuação e já atendeu mais de cinco mil animais.
O primeiro peixe-boi recebido foi Edinho, resgatado em 2023, no município de Santa Bárbara, na Região Metropolitana de Belém. Em 2024, chegaram Francisquinho, oriundo de Santarém, e Serginho, de Monte Alegre — ambos no oeste do Pará. O mais recente é Pedrinho, resgatado em 2025, em Oriximiná, também no oeste paraense, graças à atuação do Instituto Igarapé Nhamundá.
Cada animal é um sobrevivente de ameaças que colocam a espécie em risco de extinção. “O peixe-boi tem reprodução muito lenta. Uma fêmea pode levar mais de quatro anos para ter outro filhote, pois amamenta entre dois e dois anos e meio. Além disso, ao longo das décadas, nós os matamos em grande número, seja pela caça, pelo óleo ou por acidentes. E os desafios continuam: só neste ano, o Pará já registrou mais de dez casos de encalhes e resgates”, explica a professora e médica-veterinária Ana Silvia Ribeiro, coordenadora do Cetras/Ufra.
CUIDADOS
Para a pesquisadora, cuidar desses animais é também cuidar da Amazônia e das pessoas. “O Pedrinho, por exemplo, ainda chupa a própria nadadeira como se estivesse mamando na mãe dele. São sinais emocionais que também precisam de cuidado e atenção”, explica Ribeiro, enquanto prepara uma mamadeira, oferecida submersa na água ou de forma tradicional (dada diretamente na boca dos filhotes).
A dieta é um mix de leite sem lactose, aveia, fubá e suplementos minerais. Ao longo de cinco refeições por dia, eles também consomem folhas aquáticas, além de couve e caruru. O objetivo é prepará-los para o retorno à natureza o quanto antes. Pelo apetite, estão no caminho certo: consomem tudo em segundos.
Mas o caminho até a soltura na natureza ainda é longo. Eles precisam estar desmamados - o que ocorre entre dois e dois anos e meio de idade - e pesar pelo menos 70 quilos. Depois, passam por uma fase chamada pré-soltura, realizada em áreas preparadas nos municípios de Santarém e Soure, onde aprendem a lidar com as marés, a vegetação local e ganham autonomia antes da soltura definitiva. Essas etapas são fundamentais para garantir a sobrevivência dos animais em seu habitat natural.
Com tanta resiliência, o peixe-boi da Amazônia, o menor entre os peixes-bois do mundo, tornou-se símbolo da luta pela fauna da região. Enquanto o quarteto do Cetras se prepara para voltar à natureza, uma força-tarefa envolvendo universidades, comunidades ribeirinhas, órgãos públicos e organizações da sociedade civil também age por eles.
No Pará, o resgate e a reabilitação desses mamíferos envolvem uma rede articulada que une ciência, gestão pública e saberes tradicionais. Talita Praxedes, gerente de Fauna, Aquicultura e Pesca da Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Sustentabilidade (Semas), detalha que a pasta atua em parceria com o Cetras/Ufra, o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) e a Secretaria de Segurança Pública e Defesa Social (Segup), entre outros.
“No período de 2023 a 2025, participamos do resgate de cerca de 25 peixes-bois no Estado, principalmente nas regiões do Baixo Amazonas e do Marajó”, ressalta Talita. As principais ameaças incluem caça ilegal, captura acidental em redes de pesca (os chamados emalhes) e impactos das mudanças climáticas. “É uma espécie dócil, que não foge do homem, o que a torna vulnerável à caça e ao tráfico. E a mudança do clima também é cruel: a estiagem prolongada reduz os níveis dos rios, deixando os animais mais expostos”, detalha.
Além dos resgates, a Semas investe em educação ambiental com foco nas comunidades. “Temos trabalhado para que os ribeirinhos se tornem multiplicadores do conhecimento, participando da proteção do peixe-boi e de outras espécies”, assegura.
AÇÕES
Para completar a integração, às margens do igarapé Nhamundá, em Oriximiná, um resgate em 24 de março de 2022 marcou o início de uma nova etapa na proteção da espécie na região. Um grupo de moradores encontrou um filhote de peixe-boi amarrado pelas nadadeiras, prestes a ser vendido. “Conseguimos salvá-lo. Naquele dia, entendemos que precisávamos nos organizar de forma estruturada para enfrentar esse tipo de crime”, recorda Maria Cristina Andrade, presidente do Instituto Igarapé Nhamundá. O animal foi batizado de Gutão e seu resgate inspirou a criação da entidade.
Hoje reconhecido como de utilidade pública pelo governo estadual, o Instituto atua em um território de várzea com cerca de 1.300 famílias organizadas em Acordos de Pesca. O resgate de Gutão, que continua na organização, também motivou a criação da Lei nº 10.322/2024, que instituiu o Dia Estadual de Preservação do Peixe-boi da Amazônia, celebrado em 24 de março.
A entidade acompanha atualmente cinco filhotes resgatados, todos com apoio direto das comunidades locais. “Os moradores denunciam, participam dos resgates e ajudam nos cuidados diários”, explica Maria Cristina. A coordenadora do Cetras reforça: “O envolvimento das comunidades é urgente. Eles conhecem os ciclos da floresta, os rios e são fundamentais para o sucesso da preservação da espécie”, destaca a pesquisadora Ana Silvia Ribeiro.

ARTICULAÇÕES
Emerson Carvalho, agricultor familiar e extrativista da comunidade Casinha, no Lago do Sapucuá, em Oriximiná, é um dos moradores que atuam nos resgates e na mobilização popular. “O que mais me marcou foi o contato com os filhotes: ver como são dóceis, vulneráveis, como se quisessem agradecer pelo resgate”, narra ele, emocionado.
Além de ajudar no transporte dos filhotes até os órgãos responsáveis, Emerson também articula politicamente as ações de base. “É triste ver tantos filhotes órfãos porque suas mães foram mortas. Isso revolta. Mas também me motiva a continuar. Faço esse trabalho desde sempre, aprendi com meus pais a defender a fauna e a flora. Hoje contamos com o apoio do Instituto Nhamundá, da Semas e da Polícia Militar. Quando o Estado se faz presente com a gente, dá mais força para seguir em frente”, finaliza.
Escolas da região também participam das ações educativas do Instituto. “Levar crianças e professores para verem um peixe-boi muda tudo. Muitos nunca tinham visto esse animal antes”, comenta Maria Cristina.
Para ela, o peixe-boi é símbolo e agente do equilíbrio ecológico. “Ele ajuda a manter os igarapés navegáveis e oxigenados, beneficiando todo o ecossistema. A luta começou com o Gutão, mas continua com cada filhote resgatado, cada criança sensibilizada. E não estamos sozinhos”, salienta a presidente da entidade.

No Amazonas, sete filhotes de peixe-boi foram resgatados entre janeiro e abril deste ano pelo Projeto Peixe-boi, do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa/MCTI), em parceria com a Associação Amigos do Peixe-Boi (Ampa). O número representa quase metade do total anual esperado.
A maioria foi encontrada sozinha, vítima de caça ou emalhe acidental. “Os caçadores matam a mãe, deixando o filhote órfão. Como ele mama até os dois anos, não sobrevive. Se a sociedade não mudar de atitude, a espécie pode ser extinta”, alerta a pesquisadora do Inpa, Vera da Silva, que coordena o projeto.
MONITORAMENTO
Além da reabilitação, o trabalho inclui a soltura e o monitoramento dos animais em áreas protegidas, como a Reserva Piagaçu-Purus, onde cinco peixes-bois foram devolvidos à natureza no mês passado. O monitoramento é feito por ex-caçadores treinados. “Quando os ribeirinhos aprendem sobre o peixe-boi e acompanham de perto, tornam-se protetores da natureza”, afirma Vera.
Criado em 1974, o Projeto recebe apoio do SeaWorld Conservation Fund para realizar ações de manejo, readaptação, soltura e monitoramento. A meta é devolver à natureza ao menos dez animais em 2026.

PAPEL ECOLÓGICO
Apesar do nome, o peixe-boi é um mamífero aquático, herbívoro e de comportamento calmo. No Brasil, existem duas espécies nativas: o peixe-boi da Amazônia (Trichechus inunguis), que habita rios da bacia amazônica e o peixe-boi-marinho (Trichechus manatus), que vive na costa do país.
O peixe-boi da Amazônia é o menor da espécie, com até 2,75 metros e 420 quilos. Com coloração acinzentada e manchas claras na barriga, migra entre várzeas e canais profundos conforme as cheias e secas. Consome cerca de 8% do seu peso por dia em mais de 50 espécies de plantas aquáticas e semiaquáticas.
Esse consumo é essencial para o equilíbrio dos rios: impede o excesso de vegetação, que poderia reduzir o oxigênio na água e matar outras espécies. “A ausência do peixe-boi pode causar um colapso ecológico”, enfatiza Ana Silvia Ribeiro. “Ele sustenta nichos inteiros de vida”, complementa a pesquisadora da Ufra.
Mesmo com tantos benefícios, a espécie é listada como vulnerável pela União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN). A população está em declínio, embora faltem dados precisos, devido à dificuldade de monitoramento em seu habitat. “O sumiço do peixe-boi afeta toda a cadeia ecológica ao redor. Não podemos deixar isso acontecer”, finaliza a coordenadora do Cetras.
PARCERIA INSTITUCIONAL
A produção da Liberal Amazônia é uma das iniciativas do Acordo de Cooperação Técnica entre o Grupo Liberal e a Universidade Federal do Pará. Os artigos que envolvem pesquisas da UFPA são revisados por profissionais da academia. A tradução do conteúdo também é assegurada pelo acordo, por meio do projeto de pesquisa ET-Multi: Estudos da Tradução: multifaces e multissemiótica.