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RECONHECIMENTO

Mestres da cultura da Amazônia ganham visibilidade nacional e internacional

TRADIÇÃO – Referências no Pará, Curica e Damasceno seguem atuantes e com projetos em andamento. Já o legado do saudoso Mestre Sacaca, do Amapá, inspira o enredo da Mangueira e ganha programação especial em Macapá

George Miranda | Especial para O Liberal

21/06/2025

Com exuberância natural reconhecida em todo o planeta, a Amazônia é também um celeiro de riquezas culturais. Personagens, como os mestres Curica e Damasceno, do Pará, e Sacaca, do Amapá, são a própria expressão da resistência e da criatividade da região. Com vidas dedicadas à música e à cultura popular, eles sintetizam a herança afro-indígena e cabocla que molda o Norte e influencia o Brasil inteiro.


Prova disso é a escolha da Estação Primeira de Mangueira, do Rio de Janeiro, uma das mais tradicionais escolas de samba do País, que anunciou como enredo para o Carnaval 2026 a história de Mestre Sacaca, que faleceu em 1999. Intitulado “Mestre Sacaca do Encanto Tucuju - O Guardião da Amazônia Negra”, o desfile vai mergulhar na ancestralidade afro-indígena do Amapá por meio da vida e dos saberes do curandeiro Raimundo dos Santos Souza, o Sacaca.

 


 

Nascido em Macapá, ele recebeu esse apelido por seu conhecimento no uso de plantas medicinais da Amazônia. De origem negra e indígena, Sacaca se tornou conhecido como “doutor da floresta” por aplicar garrafadas, chás e simpatias no tratamento de doenças e na promoção da saúde comunitária, sempre com uma visão de equilíbrio entre ciência e espiritualidade.
 

O mestre também abraçou as festas populares do Amapá. Foi Rei Momo por mais de 20 anos, criou blocos carnavalescos, ajudou a fundar escolas de samba e foi defensor do Marabaixo, uma manifestação afro-amapaense que mistura música, dança e rituais.

CENTENÁRIO

 

A homenagem chega em um momento especial: em 2026, Sacaca completaria 100 anos de idade, o que acrescenta ainda mais peso simbólico ao reconhecimento nacional. “Essa escolha representa muito da cultura do Amapá, do nosso jeito de ser: simples, caboclo, quilombola, negro e indígena”, afirma Fábio Souza, neto do curandeiro. 

 

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A escola de samba Estação Primeira de Mangueira, do Rio de Janeiro, anunciou como enredo a história de Mestre Sacaca para o Carnaval 2026, ano em que ele teria completado 100 anos (Foto: Arquivo familiar)


 

Dô Sacaca, filho do homenageado, também expressou gratidão pela escolha do enredo. “É uma honra ver o nome dele sendo levado por uma escola como a Mangueira, que vai ecoar no Brasil e no mundo. Isso ajuda a manter esse legado sempre vivo”, garante. 
 

De acordo com Sidnei França, carnavalesco da agremiação verde e rosa, tratar de costumes afro-indígenas é algo inédito na história da escola carioca. “Mesmo no Brasil, muitas vezes ainda predomina uma visão monolítica sobre a Amazônia, com muitas narrativas e personagens ainda inexplorados ou sem ter a devida atenção. Com sua vocação de contar ‘outras histórias’, a Mangueira vai apresentar Mestre Sacaca, um legítimo representante dessa floresta afro-indígena”, ressalta.

HOMENAGENS
 

Em Macapá, o Museu Sacaca mantém viva a memória do mestre. O espaço é administrado pelo Instituto de Pesquisas Científicas e Tecnológicas do Amapá (IEPA), do Governo do Estado, e atrai um público diverso, entre turistas, escolas e moradores locais. Segundo Adriana Rodrigues, coordenadora do local, a presença de interessados na história do curandeiro é constante. “O número de visitantes aumentou nos últimos anos”, relata.
 

A instituição conta com um memorial dedicado ao mestre, onde é possível conhecer sua trajetória por meio de objetos pessoais doados pela família e de um filme documental. “É uma honra para todos nós ver o Mestre Sacaca sendo reconhecido nacionalmente com a homenagem da Mangueira. Vamos representar com muito orgulho os saberes tradicionais da Amazônia", destaca a coordenadora do espaço.
 

Para 2026, o museu planeja uma programação especial em parceria com a família do defensor do Marabaixo para marcar os 100 anos de nascimento de Sacaca. O objetivo é celebrar todas as fases da vida do mestre. “Queremos relembrar toda a cultura e o legado deixado por ele, que continua vivo no nosso modo de vida, no respeito à natureza e na ancestralidade amazônica”, reforça Adriana.

 

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O Museu Sacaca tem um memorial dedicado ao mestre, onde é possível conhecer sua trajetória por meio de objetos pessoais doados pela família e de um filme documental. Para 2026, o museu planeja uma programação especial para marcar os 100 anos de nascimento de Sacaca (Foto: Márcio Pinheiro)

Mestre Curica é referência da guitarrada no Pará

 

Se no Amapá, o centenário de Sacaca mobiliza os atores locais e ecoa no país, no Pará, mestres da música popular seguem em plena atividade. Um dos principais nomes desse movimento é Raimundo Leão Ferreira Filho, o Mestre Curica, referência da guitarrada paraense e exemplo de inovação na música amazônica.
 

Ele nasceu em 1949, em Marituba, município da Região Metropolitana de Belém. Mergulhou, desde cedo, no universo musical. O pai dele era banjista e, aos nove anos de idade, Curica já tocava bateria. Com o tempo, dominou o banjo e, depois, desenvolveu a “guitarrinha cabocla”, instrumento musical que mistura banjo e guitarra elétrica e que se tornou a marca registrada do artista.
 

Além dessa criação inovadora, Curica se diferencia por compor letras para suas músicas, algo raro em um gênero predominantemente instrumental. “A guitarrinha tem afinação diferente e um som mais metálico, que se encaixa perfeitamente nos nossos ritmos, como o carimbó, o merengue e a cumbia. E combina com uma boa letra também”, explica.
 

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Um dos principais nomes de mestres da cultura popular no Pará, Curica fundou o projeto “Mestres da Guitarrada”, junto com Aldo Sena e Vieira (Foto: Igor Mota/O Liberal)

 

Nos anos 2000, ele fundou o projeto Mestres da Guitarrada, ao lado dos músicos paraenses Aldo Sena e Mestre Vieira (falecido em 2018). O trio também ajudou a levar o som amazônico para o cenário nacional e internacional.

TRAJETÓRIA

 

Aos 75 anos de idade, dos quais mais de 60 foram dedicados à arte, Curica já se apresentou em sete países, incluindo Portugal, México e Alemanha. Foi reconhecido como o melhor banjista do mundo em um festival na Ilha da Madeira. O músico soma mais de 2.700 composições e perdeu as contas de quantos artistas já gravaram suas canções. 
 

Mesmo com uma longa estrada percorrida, Curica nem pensa em se aposentar e ainda mantém viva a missão de formar novos talentos. “A música não pode acabar. Você tem que cultivar o que aprendeu e sempre buscar fazer o melhor. Eu ensino para que os alunos toquem melhor do que eu. É isso que me deixa realizado”, relata.

DAMASCENO

 

No arquipélago do Marajó, o também paraense Damasceno Gregório dos Santos, artisticamente conhecido como Mestre Damasceno, tornou-se referência no carimbó, nas toadas e na poesia oral. Nascido em 1954, na comunidade quilombola do Salvá, em Salvaterra, ele perdeu a visão aos 19 anos, após um acidente de trabalho, e encontrou na cultura popular o caminho para reinventar seu olhar sobre o mundo. “Eu tinha o dom. Com a perda da visão, precisava encontrar outra forma de enxergar a vida. A cultura popular foi o meu caminho de reconstrução”, relembra.

 

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Mestre da tradição marajoara, Damasceno é referência no carimbó, nas toadas e na poesia oral. Também é criador do Búfalo-Bumbá, manifestação junina que mescla teatro popular, cultura quilombola e elementos da natureza amazônica (Foto: Guto Nunes)


 

Compositor, cantor de carimbó, repentista e mestre da tradição marajoara, Damasceno é também o criador do Búfalo-Bumbá, manifestação junina que mescla teatro popular, cultura quilombola e elementos da natureza amazônica. Com mais de 400 composições autorais e seis álbuns gravados, ele é um símbolo de resistência e da força cultural do Norte do Brasil. “Fui o primeiro mestre de bumbá do arquipélago. A gente tem que continuar insistindo para que essa cultura nunca acabe”, defende.
 

Ao longo de seus 70 anos de vida, com cinco décadas dedicadas à cultura marajoara, Mestre Damasceno coleciona importantes reconhecimentos. Em 2023, sua obra foi declarada patrimônio cultural imaterial do Estado do Pará, por meio da Lei nº 10.141. Ele também foi homenageado pela Escola de Samba Paraíso do Tuiuti, no Carnaval do Rio de Janeiro, que levou o Búfalo-Bumbá para a Sapucaí. No mesmo ano, recebeu a Comenda Eneida de Moraes, a Medalha Mestre Verequete e o título de Cidadão de Belém, entre outras distinções.
 

Já em 2025, o mestre foi agraciado com o título de Comendador da Ordem do Mérito Cultural, a maior honraria do Ministério da Cultura, entregue em cerimônia oficial no Rio de Janeiro. A sua música, cheia de vida e memória, segue ecoando por todo o Pará e além, lembrando a todos que “a cultura é um valor que nunca morre, pois se renova a cada canto, tambor e dança”, defende Damasceno.

Saberes inspiram a juventude amazônida

 

A trajetória dos mestres reverbera nas novas gerações de artistas da Amazônia. Um exemplo disso é o percussionista e banjista Marcelino Santos, de 26 anos. Morador de Belém, ele se apaixonou pelo carimbó aos 11 anos, ao assistir à apresentação de um grupo na igreja que frequentava. Tempos depois, conheceu Curica pessoalmente e passou a aprender com o mestre. “Eu estava começando a tocar banjo e ele se prontificou a me dar algumas dicas”, recorda.

 

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A trajetória de mestres como Curica reverbera nas novas gerações de artistas da Amazônia. O mestre continua ativo e vai passar seu aniversário de 76 anos, no dia 26 de junho, do jeito que gosta: em viagem, trabalhando e levando alegria para as pessoas por meio da música, em um evento em Cabo Verde (Foto: Igor Mota/O Liberal)


 

Mais do que técnica, o contato com ídolo é uma aula sobre valores. “Ele me ensinou a levar a vida com leveza, a valorizar as nossas raízes e a transmitir felicidade com a música. Isso moldou minha visão como artista”, diz Marcelino, que hoje integra grupos de carimbó e tem a honra de tocar ao lado dos mestres da cultura da Amazônia, incluindo o Curica.

AMPLIAÇÃO

 

Para Cláudia Palheta, doutora em História Social da Amazônia e também carnavalesca, o desfile da Mangueira tem potencial de ampliar o reconhecimento nacional de mestres que moldam os saberes populares da região. “O carnaval das escolas de samba é um potente cronista do país. Quando atravessa até a região Norte para valorizar fazedores de cultura, permite que o Brasil inteiro tome consciência da importância dessas figuras”, salienta.
 

Ela acredita que esse tipo de homenagem tem um efeito duplo: além de informar o público de outras regiões, também provoca orgulho e reconhecimento entre os próprios amazônidas. “A escola de samba atua como esse agente externo que exalta e desperta”, aposta.
 

Sobre Curica, Damasceno e Sacaca, a pesquisadora os define como “instrumentos de transmissão da fala da floresta”, seja por meio das poções de cura ou da música. “Os mestres têm o mágico dom de interagir com a natureza, de escutar e sentir o que ela é. Isso é o que torna seus saberes tão fundamentais para a Amazônia”, aponta a estudiosa.
 

Segundo Cláudia Palheta, a cultura da Amazônia é um movimento constante. “Não estamos falando de um santuário imaculado. Ela se alimenta de bois e quadrilhas vindas do Nordeste, inventa nobres pássaros juninos a partir da corte europeia e transforma escolas de samba no que é o carnaval do Pará. Essa região mastiga e regurgita culturas, vive e produz sem parar”, finaliza.

 

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Mestre Damasceno será homenageado pelo Governo do Estado do Pará na 28ª edição da Feira Pan-Amazônica do Livro e das Multivozes, ao lado da escritora e poeta Wanda Monteiro, em agosto deste ano (Foto: Guto Nunes)

PROGRAMAÇÃO

 

Nos dias 27 e 28 deste mês, o Mestre Curica vai levar o som da guitarrada da Amazônia para a terceira edição do Festival Master Cordas, em Cabo Verde. O evento celebra os 50 anos de independência do país africano, e o mestre passará seu aniversário de 76 anos, no dia 26 de junho, do jeito que gosta: em viagem, trabalhando e levando alegria para as pessoas por meio da música.
 

Já Mestre Damasceno será homenageado pelo Governo do Estado do Pará na 28ª edição da Feira Pan-Amazônica do Livro e das Multivozes, ao lado da escritora e poeta Wanda Monteiro, em agosto deste ano.
 

Em comum, os dois seguem atuantes e têm buscado repassar suas culturas adiante. “Sempre pedi para ver minha obra valorizada em vida. Não por vaidade, mas para que as futuras gerações reconheçam o valor da nossa cultura e a mantenham viva", enfatiza o mestre Curica.
 

 

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