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MODA

Produções sustentáveis ganham cada vez mais espaço na Amazônia

Upcycling é alternativa para diminuir impactos que indústria têxtil oferece ao bioma

Camila Azevedo

30/08/2024

As roupas que a indústria da moda oferecem para o mercado escondem um perigo nada silencioso para a Amazônia, e podem afetar toda a realidade do bioma. Responsável por 10% das emissões mundiais de gases do efeito estufa, o setor têxtil gera mais de 4 milhões de toneladas de resíduos por ano no Brasil. Somente em Belém, capital do Pará e sede da 30ª Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas de 2025 (COP 30), uma estimativa aponta que essa quantidade seja de cerca de 15 toneladas por mês, vindas de 30 empresas diferentes do ramo de confecções.


Os números nacionais são da Associação Brasileira de Empresas de Limpeza Pública e Resíduos Especiais (Abrelpe) e, os locais, do Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (Senai). Os efeitos dessa produção desenfreada para o meio ambiente podem ser devastadores: contaminação de rios e, consequentemente, dos lençóis freáticos, além da falta de um descarte regular e ideal para o material produzido - algumas peças, como as de algodão, demoram 20 anos para se decompor, ao passo que as de materiais sintéticos podem resistir por até quatro séculos.

 

 

A indústria têxtil é a segunda mais poluidora do mundo, atrás apenas da petrolífera, segundo aponta um levantamento da Global Fashion Agenda, organização sem fins lucrativos. Pensar propostas alternativas ao problema, que garantam fonte de renda e promovam a sustentabilidade dentro dos processos é um passo que já começou a ser dado na Amazônia. A prática do upcycling vem como um diferencial ao reaproveitar os tecidos de roupas para a confecção dos mais variados produtos, desde acessórios, como bolsas, até tijolos para a construção civil e estruturas para mesas e cadeiras.

Fast fashion

Outra preocupação ambiental tem ficado mais urgente nos últimos anos: o fast fashion, modelo de negócio que se concentra em produzir excesso de peças de vestuário o mais rápido possível. Empresas como a chinesa Shein e a europeia Zara são casos como esse. O upcycling também é visto como uma tendência frente a esse problema e, inclusive, é tema de curso ofertado pelo Polo de Vestuário, do Senai, em Belém. Nas aulas, os alunos desenvolvem técnicas de reaproveitamento de materiais têxteis - vindos da indústria local - que seriam incinerados.

 

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Clarisse Chagas, gerente do Polo de Vestuário, do Senai, em Belém, diz que precisamos repensar o processo da indústria do vestuário. O Polo desenvolve técnicas de reaproveitamento de  materiais têxteis (Foto: Carmem Helena/O Liberal)

 

Clarisse Chagas, gerente do Polo, explica que a técnica é uma forma de repensar o material de forma criativa, iniciando um novo ciclo para ele, mais sustentável. No Senai, cerca de 75 alunos fazem parte do curso. “Um dos objetivos é entender como a gente precisa repensar esse processo da indústria do vestuário. Quando se pensa na palavra moda, a sociedade civil acaba relativizando e colocando para as tendências, para o que não é urgente e necessário de se debater e, na verdade, estamos entre os líderes em poluição”, diz.


Aliado ao fator ambiental, o upcycling é uma forma de garantir que a economia criativa e circular seja uma realidade para as populações da Amazônia - empreendedores conseguem gerar renda sem precisar, necessariamente, adquirir matéria-prima. “Antigamente, a gente entendia a produção de moda como linear. Hoje em dia, a gente entende como circular, onde, ao fim do uso, você dá um novo destino ao produto. Por exemplo, uma calça jeans pode virar uma bolsa e estender o tempo de vida do produto. O upcycling veio dessa necessidade de realocar esses produtos”, destaca Clarisse.

Resíduos podem virar artigos de construção civil

A proposta que o curso do Polo de Vestuário do Senai oferece é expandir a aplicação do conceito de upcycling para os mais variados setores da economia. A fabricação de tijolos e partilhas para a decoração de paredes, necessários no ramo da construção civil, por exemplo, pode ser feita a partir da fragmentação têxtil, bem como a produção de asfalto. “Como temos uma grande produção de roupas, a gente consegue escalonar, dar vazão mais rápido. Dá para atuar na moda pet, em artigos de decoração… A gente está pensando em um único objetivo, que é ser mais sustentável”, afirma a gerente.


A variedade de possibilidades existentes dentro do cenário amazônico quando o assunto é moda sustentável envolve desde pessoas que trabalham com látex e com retalhos até os que são da área de produtos feitos a partir de biotingimentos. No entanto, Clarissa pontua que ainda é necessário haver um debate na região sobre a importância de dar valor à moda sustentável. “A gente tem um potencial enorme e isso é muito positivo. Temos vários designs, criadores e estilistas que têm essa visão de urgência da moda dentro das questões de sustentabilidade. Temos que ter uma sociedade em que todos pensem essa questão”.


“Essa preocupação na Amazônia é muito forte e, além disso, temos uma vantagem, que é a relação do pertencimento cultural. A nossa cultura é muito rica e ela se conecta muito bem com essa questão sustentável. Um desafio que nós temos é conscientizar o consumidor paraense que ele precisa se atentar para isso. Nosso consumidor, infelizmente, ainda é de fora, é o olhar dos estrangeiros que se interessam pela Amazônia. Mas, falo em um tom muito esperançoso: a gente vê o mercado mudando. Temos o início de uma moda que tem constantemente pensado materiais, insumos, sementes e pigmentos”, adiciona Clarisse.

 

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Desfile de moda com materiais têxteis reaproveitados, produzidos por Maria Gonçalves, costureira, bordadeira e artesã de Soure, no Marajó (Foto: Carmem Helena/O Liberal)

Marajó

A regionalização do tipo de produção que o upcycling sugere é um fator importante debatido nas aulas do Senai. Maria Gonçalves, costureira, bordadeira e artesã natural do município de Soure, no Marajó, participou do curso profissionalizante para aumentar a oferta de produtos e a renda da família. Antes, ela fazia roupas sem ter a técnica certa. Agora, junto ao processo de confecção, outros materiais saem como resultado: brincos, cordões e adereços para bolsos de camisas. O sucesso com os aprendizados foi tamanho que cerca de 49 mulheres marajoaras se uniram para empreender juntas.


As faixas de bordados regionais para agregar valor às peças produzidas por Maria se tornaram o carro-chefe das vendas desde que ela iniciou o curso. A ideia, a partir disso, é expandir os negócios e a cultura marajoara. “Geralmente, sobram 3cm ou 4cm. Desses, dá para você fazer um colar, um brinco, colocar no bolso de uma outra blusa… Aquele pedaço não se perde, ele vai para outras finalidades. Até porque, o material para nós, no Marajó, é difícil [de ter acesso]. É tudo mais caro. Para obtermos as coisas, precisamos mandar buscar em Belém, pagar barco…”, finaliza a artesã.

 

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Maria Gonçalves, costureira, bordadeira e artesã do Marajó: “Geralmente, sobram 3cm ou 4cm. Aquele pedaço não se perde, ele vai para outras finalidades” (Foto: Carmem Helena/O Liberal)

Alunos do Senai criam produtos exclusivos a partir de resíduos têxteis

O entusiasmo de Maria é refletido também em outros alunos do Senai. Josilene Garcez, professora do curso de moda da instituição, conta que o objetivo das aulas ministradas é exatamente esse: envolver os interessados na criação de produtos exclusivos, a partir dos resíduos, para fortalecer o desenvolvimento socioeconômico. “Os alunos ficam entusiasmados porque é um produto novo para eles. É uma matéria-prima que eles têm acesso e que eles têm como resultado coisas que não existem no mercado, nas lojas. Eles conseguem desenvolver produtos exclusivos e estão satisfeitos com o trabalho”.


“As empresas paraenses nos procuraram para solucionar um problema que eles têm sobre os resíduos. Então, nós desenvolvemos projetos, desenvolvemos vários trabalhos sobre como reutilizar essa matéria-prima que seria descartada na natureza. Também estamos querendo trabalhar o tijolo, porque o tecido é uma parte muito resistente. Assim, trabalhamos não só o vestuário, mas materiais de construção. O projeto de pesquisa é fazer a parte que faz a liga para dar consistência. O Senai está em busca de desenvolver a máquina para triturar esse tecido, porque a gente vai reduzir em 100%”, completa.

 

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Josilene Garcez, professora de moda no Senai, diz que o objetivo das aulas é envolver aqueles interessados na criação de produtos exclusivos a partir dos resíduos (Foto: Carmem Helena/O Liberal)

Upcycling diminui impactos na Amazônia

A indústria da moda ainda tem uma responsabilidade muito grande pela frente. Deryck Martins, engenheiro florestal e presidente do Conselho Temático de Meio Ambiente da Federação das Indústrias do Pará (Fiepa), afirma que as opções do setor ainda estão muito restritas e que existe um desafio para reutilizar e reaproveitar os resíduos gerados pelo processo. “A indústria da moda vem muito da tendência que é apresentada, disseminada aos consumidores, mas que, muitas vezes, você precisa repensar. E existe uma prática que tem sido cada vez mais comum, que são os brechós”.


Transformações sociais e econômicas para as comunidades que vivem na Amazônia são descritas pelo presidente do Conselho como possibilidades diante da prática de repensar o que os resíduos têxteis podem se tornar. “Quando você adota as práticas de reutilização, você diminui a prática do descarte. Isso é fundamental, parece simples, mas é fundamental para combater o consumo excessivo, você promove um mercado mais consciente. Para a nossa realidade, você tem ainda desigualdades sociais que precisam ser combatidas”, enfatiza Deryck.

Carbono

À lista de benefícios, o upcycling no bioma também ajuda a controlar a quantidade de carbono lançado à atmosfera. “Práticas mais conscientes diminuem a quantidade de recursos, geram mais oportunidades de negócio, de utilização de mão de obra e diminuem a necessidade de obtenção de recursos naturais. Têm uma relação de você utilizar mais as roupas de produções locais, o que diminui muito o impacto dessa produção em massa. Se formos falar de carbono, [as produções locais] diminuem a pegada, porque faz consumo aqui. Além de deixar a renda para os produtores da região”, conclui Martins.

 

PARCERIA INSTITUCIONAL
A produção do Liberal Amazon é uma das iniciativas do Acordo de Cooperação Técnica entre o Grupo Liberal e a Universidade Federal do Pará. A tradução do conteúdo é realizada pelo acordo, através do projeto de pesquisa ET-Multi: Estudos da Tradução: multifaces e multisemioses.