Jaborandi - Crédito Divulgação Vale 4.JPG
JOIA DA BIODIVERSIDADE

Pesquisadores buscam preservação do jaborandi

Espécie nativa brasileira, usada no tratamento de doenças oculares, está ameaçada. Projeto “Bioeconomia do jaborandi” busca reverter quadro.

Ádria Azevedo | Especial para O Liberal

24/10/2024

Imagine uma planta exclusiva do Brasil, única fonte natural de uma substância de uso farmacêutico. Trata-se do jaborandi (Pilocarpus microphyllus), uma joia da biodiversidade amazônica que virou objeto de pesquisa do Instituto Tecnológico Vale - Desenvolvimento Sustentável (ITV-DS), localizado em Belém. O estudo em questão pretende conhecer melhor a espécie e garantir sua preservação, já que está ameaçada de extinção.


Das folhas do jaborandi se extrai a pilocarpina, usada para a produção de colírios que tratam o glaucoma. A doença oftalmológica afeta o nervo óptico e pode levar à cegueira. A substância auxilia na redução da pressão intraocular que danifica o nervo e foi um dos primeiros medicamentos utilizados para combater o problema.
Por conta da relevância do jaborandi e seus usos terapêuticos, o projeto “Bioeconomia do jaborandi”, realizado desde 2015 no ITV-DS, sob coordenação do pesquisador Cecílio Frois Caldeira Júnior, busca mapear as áreas de ocorrência do jaborandi, estimular o extrativismo sustentável, desvendar técnicas de cultivo e sequenciar o genoma da espécie. 


O trabalho de campo é desenvolvido na Floresta Nacional (Flona) de Carajás, em parceria com a Cooperativa dos Extrativistas (Coex) local e com o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio). A Flona é uma unidade de conservação federal que abrange os municípios de Parauapebas, Canaã dos Carajás e Água Azul do Norte. É uma área de grande ocorrência do jaborandi, com histórico de extrativismo pelas comunidades locais, assim como a região do Xingu.

 

EXPLORAÇÃO

Desde o fim do século XIX, a medicina europeia descobriu as propriedades do jaborandi para o tratamento do glaucoma, o que iniciou a demanda por suas folhas, que só ocorrem naturalmente no leste do Pará, no oeste e norte do Maranhão e no norte do Piauí.


“Lá em 1920, já havia exploração comercial do jaborandi, que se intensificou muito nas décadas de 70 e 80, quando houve um pico de demanda. Então, houve uma extração desordenada, um depauperamento das plantas em ambiente natural, porque as pessoas arrancavam não só as folhas, mas os galhos e até a planta inteira para colher bastante e vender para a indústria”, conta o pesquisador Cecílio Caldeira.


Além da exploração predatória da planta, o próprio desmatamento como um todo vem ameaçando a espécie. “Esses dois motores dizimaram mais de 50% das populações naturais de jaborandi. Hoje, ele é considerado uma espécie ameaçada de extinção segundo a legislação brasileira”, aponta Caldeira.


O engenheiro agrônomo se refere à inclusão do jaborandi, desde 1992, na Lista Oficial de Espécies da Flora Brasileira Ameaçadas de Extinção, do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), relação em que permanece até hoje.

 

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Desde 1992 a espécie está na Lista Oficial de Espécies da Flora Brasileira Ameaçadas de Extinção, do Ibama (Foto: Divulgação/Vale)

Conhecimento ancestral impulsionou pesquisas

Muito antes de ser descoberto pela medicina europeia, o jaborandi já era utilizado pelos indígenas, com finalidades terapêuticas e ritualísticas. De acordo com Gracialda Ferreira, professora da Universidade Federal Rural da Amazônia (Ufra) e também pesquisadora do jaborandi na Flona de Carajás, os tupi-guarani reconheciam o jaborandi como ia-mbor-endi, ou seja, “que faz babar”. 


“É uma alusão ao seu efeito sudorífico e de excitação das glândulas salivares. Os indígenas podem ter utilizado o jaborandi em rituais xamânicos para cura de doenças, em virtude da sudorese, salivação abundante e tremores decorrentes de um estágio ‘semiepiléptico’ causado pela mastigação de suas folhas em grande quantidade”, explica a engenheira florestal. 


Sobre esta questão, o pesquisador Cecílio Caldeira reforça: “Por provocar essa salivação e sudorese, eles também usavam para tratar picadas de insetos e cobras, como uma forma de expelir o veneno”.


A partir desse conhecimento ancestral é que foi percebida a possibilidade de uso da planta e o isolamento da substância pilocarpina. “Mas foi um conhecimento trazido por indígenas e que se perpetua até hoje, com a coleta de folhas pelas comunidades locais”, lembra Caldeira.

USOS ATUAIS

Embora haja outras espécies do mesmo gênero que produzem a pilocarpina, a Pilocarpus microphyllus é a que apresenta o maior nível da substância em suas folhas, tornanda-o comercialmente viável para a produção do colírio para glaucoma. Mas o uso da planta não se resume a isso. 


A pilocarpina também é utilizada no tratamento da xerostomia, ressecamento da boca que ocorre por conta de tratamentos quimioterápicos ou radioterápicos na região da cabeça e pescoço. Lembrando o significado do nome indígena jaborandi, a pilocarpina auxilia no reflexo salivar. 


A pesquisadora Gracialda Ferreira lembra que a planta também é muito utilizada pela indústria de cosméticos, para cuidados capilares e de pele. E Cecílio Caldeira adianta que, no mercado estadunidense, já há um novo tipo de colírio que utiliza a pilocarpina, para tratar a presbiopia, também conhecida como vista cansada. “Por enquanto, está restrito ao mercado americano, que já é um mercado gigantesco. Então, existe uma demanda grande pela molécula de pilocarpina nesse sentido também”, diz o especialista.

 

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A produção de pilocarpina é variável conforme o ambiente onde a planta está, e temos estudos para entender o que influencia essa produção, a interação entre fatores genéticos e ambientais." diz o pesquisador Cecílio Caldeira (Imagem: Igor Mota/O Liberal)

Produção de pilocarpina varia conforme o ambiente

A pesquisa capitaneada por Cecílio Caldeira no Instituto Tecnológico Vale trabalha em diversas frentes. Uma delas é o mapeamento de onde o jaborandi ocorre na Flona Carajás, para que as comunidades extrativistas consigam manejar melhor a espécie. 
“Se eu exploro o jaborandi em um ponto A e eu tenho condições de explorar no ponto A e no ponto B, quer dizer que em um ano eu consigo explorar no ponto A e, no ano seguinte, aquele ponto A fica descansando e eu vou explorar o ponto B. A planta pode, assim, refazer a sua copa, e eu consigo extrair muito mais folhas, porque ela vai se recuperar melhor. É um manejo mais sustentável”, detalha o pesquisador.


Além disso, a equipe estuda as melhores técnicas de cultivo do jaborandi. A ideia é reintroduzi-lo em áreas onde ele já ocorreu, em ações de recuperação florestal desenvolvidas pela Vale na região. Outra possibilidade avaliada é inserir o jaborandi em sistemas agroflorestais, consorciado a outras espécies, agregando valor a essa produção. Para isso, é preciso desvendar como propagar o jaborandi e como produzir mudas que cresçam e se desenvolvam bem em ambiente natural.


“Temos pesquisas em todos esses pontos. A produção de pilocarpina é variável conforme o ambiente onde a planta está, e temos estudos para entender o que influencia essa produção, a interação entre fatores genéticos e ambientais. Então, a gente tenta reproduzir isso para otimizar essa produção e oferecer folhas em quantidade e qualidade que a indústria tanto precisa”, aponta Caldeira.

TEOR

A exploração do jaborandi se dá por meio do extrativismo. Isso porque o teor de pilocarpina presente nas folhas é drasticamente diferente entre as plantas que ocorrem naturalmente e aquelas que são cultivadas.


“Já houve tentativas de cultivo nas décadas de 70 e 80, quando começaram os primeiros plantios. Mas percebeu-se que, apesar de produzir bastantes folhas, a concentração de pilocarpina caiu muito. Em ambiente natural, a média de concentração na folha seca é em torno de 1%. No cultivo, isso cai pela metade ou menos. Isso torna a extração de pilocarpina dessas folhas financeiramente inviável”, diz Caldeira. “Para haver uma produção agrícola, é preciso misturar com a que vem da floresta. Então, precisa ter o jaborandi ainda explorado em condições naturais”, complementa. 


Mas a pesquisa pretende dar uma resposta à questão, com os estudos sobre cultivo. “A gente vai colocar essas plantas para crescer em determinadas condições, para ver se vão crescer bem e produzir pilocarpina em uma concentração maior do que a gente tem nas áreas cultivadas. É importante ter o jaborandi cultivado, para que as áreas de ocorrência natural, que já estão cada vez menores, não sejam perdidas graças a uma demanda muito alta que possa vir da indústria”, explica o engenheiro agrônomo.

 

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Estudo genético do jaborandi faz parte do Projeto Genômica da Biodiversidade Brasileira, uma parceria do ITV-DS com o ICMBio (Imagem: Igor Mota/O Liberal)

Pesquisa sequencia genoma do jaborandi

A pesquisa do ITV-DS também faz o sequenciamento do genoma do jaborandi. Em anos de estudos, já foram mapeados os chamados códigos de barra de DNA, criados a partir de pequenos trechos de DNA extraídos de regiões padronizadas do gene. Mas a meta é descrever a sequência genética completa da espécie. 


O estudo genético do jaborandi faz parte do Projeto Genômica da Biodiversidade Brasileira, uma parceria do ITV-DS com o ICMBio. A iniciativa pretende gerar 80 genomas de referência de espécies brasileiras, sendo uma delas o jaborandi. Caldeira espera que, com mais cerca de um ano de estudos, o processo seja concluído e a equipe entregue o primeiro genoma completo de uma espécie vegetal medicinal amazônica.

COMUNIDADES

Além do incentivo à preservação e da produção de conhecimento sobre a espécie, a pesquisa também traz ganhos para as comunidades extrativistas. “A gente mostrou para a Coex [Cooperativa dos Extrativistas da Flona de Carajás], que colhe o jaborandi lá dentro, novas áreas de ocorrência, o que amplia a capacidade de produção de folhas. Isso também permite um manejo otimizado, com áreas produzindo e áreas descansando. Tem todo um conhecimento da preservação, mas também benefícios para as comunidades, porque o jaborandi é uma importante fonte de renda para elas”, afirma Caldeira. 


Ana Paula Nascimento, presidente da Coex, confirma os frutos positivos de participar tanto dos estudos realizados pela professora Gracialda Ferreira, da Ufra, quanto do ITV-DS. “É muito bom para a cooperativa. Ganhamos em vários aspectos, inclusive no poder de negociação com a indústria, porque, tendo as áreas produtivas mapeadas, conseguimos fazer uma estimativa do quanto será vendido naquele ano. Fechamos o contrato com mais segurança e garantia de que vamos cumprir”, avalia a extrativista.
De acordo com a presidente, os resultados são muito significativos para a receita dos cooperados, porque a produção é crescente. “Em 2021, coletamos 30 toneladas; em 2022, 34 toneladas. Já em 2023, foram 52 toneladas de folhas secas vendidas para a empresa que faz o beneficiamento”, conta. 

 

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O trabalho de campo é desenvolvido na Floresta Nacional (Flona) de Carajás, em parceria com a Cooperativa dos Extrativistas (Coex) local (Imagem: Divulgação/Vale)


“É uma forma de gerar renda para as famílias envolvidas nessa atividade, mas também tem a questão ambiental, porque trabalhamos dentro de uma unidade de conservação, dentro de um plano de manejo, com toda uma preocupação com a sustentabilidade e com essa espécie nativa do bioma amazônico que tem propriedades tão importantes”, finaliza Ana Paula.
 

 

PARCERIA INSTITUCIONAL
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