Uma parceria técnico-científica estabelecida entre Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMbio) e o Instituto Tecnológico Vale - Desenvolvimento Sustentável (ITV-DS), sediado em Belém promete entregar o maior sequenciamento genético de espécies da fauna e flora brasileiras já realizado.
Denominado Genômica da Biodiversidade Brasileira (GBB), o projeto, iniciado no ano passado, vai receber um investimento de US$ 25 milhões até 2027 para estudar 5 mil genomas de espécies da biodiversidade brasileira. Do total pesquisado, 80 espécies terão um nível de detalhamento maior no sequenciamento, chamado de alta resolução, e servirão como genomas de referência para pesquisadores do mundo todo. A listagem dos animais e vegetais é definida pelo ICMBio, dentre aqueles considerados de maior interesse, seja pela necessidade de conservação, valorização do patrimônio genético ou estímulo à bioeconomia.
Até o momento, já foram implementados 93 projetos no âmbito do GBB, envolvendo 546 espécies da biodiversidade brasileira, 279 sequenciamentos realizados, com a participação de mais de 200 pesquisadores de 14 centros de pesquisas e 42 unidades de conservação.
PRESERVAÇÃO
De acordo com a bióloga Amely Martins, coordenadora do projeto pelo ICMBio, o sequenciamento genômico e o consequente conhecimento genético da biodiversidade são ferramentas importantes para a preservação, porque oferecem subsídios para ações de conservação.
“A geração desses dados genômicos, especialmente para as espécies ameaçadas de extinção, podem auxiliar na construção de planos de ação nacionais para a conservação das espécies, que visem à manutenção ou à recuperação da variabilidade genética de populações que podem estar em maior risco”, explica a especialista.
Esse tipo de conhecimento pode ser especialmente importante frente às mudanças climáticas. “A análise genômica oferece uma oportunidade única para entender, por exemplo, a resiliência das espécies frente às mudanças e aos desafios atuais de conservação. A geração de um genoma de referência, que é aquele muito bem construído para uma determinada espécie, permite identificar ou caracterizar as flutuações demográficas daquela espécie e compreender as características genéticas que influenciam em sua capacidade de adaptação. Uma espécie com maior variabilidade genética tem maior potencial de se adaptar ou de ser resiliente às mudanças climáticas. Então, podemos entender quais são as populações que têm maior chance de se adaptar e as que são mais vulneráveis e que, portanto, precisam de mais ações direcionadas”, completa.
RENDADINHOS
Um exemplo de como o projeto pode ajudar na compreensão do efeito das mudanças climáticas já foi realizado com as aves do gênero Willisornis, conhecidas como “rendadinhos” ou “formigueiros”, endêmicas da Amazônia, ou seja, que só ocorrem neste bioma.
O estudo, realizado pela equipe do ITV-DS em parceria com a Universidade Federal do Pará (UFPA), a Universidade Federal da Paraíba (UFPB) e a Universidade de Toronto, no Canadá, descobriu que, ao longo dos últimos 400 mil anos de presença na Amazônia, a espécie passou por momentos críticos em outros ciclos de mudanças climáticas. Tais momentos resultaram na redução da população da espécie e elevadas taxas de cruzamentos entre parentes, o que diminuiu sua variabilidade genética, sobretudo no sul e sudeste da Amazônia. Apesar disso, as aves demonstraram capacidade de sobrevivência, mesmo frente às perturbações climáticas.
O conhecimento gerado permitirá o desenvolvimento de estratégias a serem adotadas nas unidades de conservação, mas também a derivação para um novo estudo, que tentará descobrir, nos genes, as explicações para a resiliência do gênero Willisornis.
Estudo pode beneficiar a produção agrícola
Guilherme Oliveira, diretor científico do ITV-DS, lembra que, além de indicar os riscos de extinção e os caminhos para a conservação, o estudo do GBB pode também ser importante para melhorias na produção agrícola.
“É importante termos a genética dessas espécies para aprendermos como que, na natureza, alguns indivíduos aprenderam ou evoluíram para lidar com situações climáticas semelhantes às do futuro. Na natureza, nós encontramos espécimes que são resistentes a alguma doença que, porventura, possa aparecer, e as mudanças climáticas apontam que elas virão. Então nós temos que entender qual é a diversidade genética dessas espécies para que nós possamos aprender como a natureza lidou com essas dificuldades e trazer essas soluções para a produção”, explica o diretor.
Algumas espécies vegetais amazônicas em estudo no âmbito do GBB são a palmeira do açaí, a castanheira-do-Pará e o jaborandi, cujas folhas têm propriedades medicinais.
Gavião-real é uma das espécies amazônicas sequenciadas
Coordenador do GBB pelo ITV-DS, o biólogo Alexandre Aleixo ressalta que em torno de 50% das espécies sequenciadas, até o momento, têm ocorrência na Amazônia.
Ele cita como exemplo o gavião-real, espécie ameaçada de extinção e a primeira que teve o genoma de referência sequenciado pelo projeto, dentre as 80 espécies selecionadas. “Embora distribuído no Brasil, ele tem sua maior presença na Amazônia. Esse ano, publicamos seu genoma de referência. Também estamos sequenciando o da arara azul, que ocorre no Pantanal e na Amazônia, mas que tem populações amazônicas que são inclusive diferenciadas geneticamente, como os estudos já provaram. Ou seja, a presença de espécies amazônicas dentro desse contingente é muito grande e esse número deve crescer”, afirma o pesquisador.
Amely Martins explica que o projeto Genômica da Biodiversidade Brasileira contempla espécies de todo o Brasil, mas que existem projetos com foco em espécies amazônicas. Dentre eles, ela cita os de algumas espécies em risco.
VARIEDADE
“Nós temos primatas, como o Cebus kaapori, popularmente conhecido como caiarara, e o Ateles marginatus, coatá-da-testa-branca ou macaco-aranha, que são ameaçados de extinção, e que nós estamos gerando os genomas de referência. Além dos primatas, vários outros grupos são contemplados, como o cascudinho-zebra, um peixe encontrado exclusivamente na Volta Grande do rio Xingu, no Pará, e que vem sofrendo impactos com a implantação da Usina de Belo Monte e principalmente com a biopirataria. E um outro exemplo é a Podocnemis expansa, a tartaruga da Amazônia, que é uma espécie bem interessante, porque ela é de grande interesse bioeconômico, fonte vital de proteína para muitas comunidades ribeirinhas da Amazônia, mas que é avaliada como quase ameaçada de extinção”, detalha.
Colaboração mira espécies que atravessam fronteiras
O GBB estuda apenas espécies brasileiras, mas já são planejadas parcerias para ampliar o escopo do projeto, principalmente no que se refere à Pan-Amazônia. “O Brasil possui grande parte da Amazônia, porém, não é o único país amazônico. Existem diversos países vizinhos ao Brasil que contêm também áreas da floresta amazônica e, às vezes, áreas bastante diferentes das que estão no Brasil. Porém, as espécies não lidam com restrições geopolíticas, elas atravessam as fronteiras”, analisa o diretor do ITV-DS, Guilherme Oliveira.
“É muito importante que a gente tenha um conhecimento das espécies que habitam a Amazônia, que façamos colaborações com países da região para que esse conhecimento seja pan-amazônico, abranja toda a Amazônia. Nesse sentido, durante a COP 16 da Biodiversidade [Conferência das Nações Unidas sobre Biodiversidade das Partes da Convenção das Nações Unidas sobre Diversidade Biológica de 2024, realizada na Colômbia entre 21 de outubro e 1º de novembro], já discutimos com institutos de pesquisa da região, como o Instituto Humboldt, de Bogotá, sobre como nós podemos colaborar para estudar a genética das espécies da Amazônia”, adianta o pesquisador.
DNA ambiental permite identificação simultânea
Além da produção dos genomas de referência, o projeto utiliza ainda uma técnica que permite a produção dos chamados códigos de barra de DNA com base na coleta de amostras ambientais, seja do solo, da água, de sedimentos ou do ar de um determinado local.
É o chamado DNA ambiental, e-DNA ou metabarcoding, que permite a identificação simultânea de múltiplas espécies que habitam aqueles ambientes, gerando códigos de barras de DNA de comunidades inteiras. Como não exige a coleta de espécimes, é considerada uma técnica não invasiva, além de mais rápida e acessível, já que uma única amostra revela várias espécies, sem que os indivíduos estejam fisicamente presentes no momento da coleta, mas apenas o material genético que deixaram para trás.
EXPEDIÇÕES
O projeto Genômica da Biodiversidade Brasileira já realizou duas expedições de campo para as coletas de DNA ambiental: uma em junho deste ano, na Floresta Nacional do Tapajós, no oeste do Pará; e uma em outubro, na Reserva Extrativista do Rio Cajari, no Amapá. Na primeira foram coletadas amostras de solo e serrapilheira, que pretendem detectar espécies de mamíferos, aves, anfíbios e invertebrados. Na segunda foram colhidas amostras de água para identificação de espécies de peixes, invertebrados, plantas e anfíbios.
Outras expedições em unidades de conservação estão previstas até 2027, prometendo mais conhecimento sobre as espécies e dando mais esperanças para a conservação do riquíssimo patrimônio genético do País e da região mais biodiversa do mundo, a Amazônia.