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RENDADINHOS

DNA de pássaros da Amazônia revelam transformações do passado

Pela primeira vez genoma é usado para entender o comportamento do bioma. Entre as descobertas, os pesquisadores destacam mudanças climáticas ocorridas na era glacial

Camila Azevedo

31/05/2024

A técnica de mapear o material genético permite a descoberta de inúmeras evidências sobre o passado e o futuro. No caso de humanos, é possível entender heranças contidas nos genes, vindas de parentes de gerações antigas, e até prever doenças. Em outros animais, também. Com a observação do genoma de uma espécie típica da Amazônia, as aves do gênero Willisornis, mais conhecidas como rendadinhos, pesquisadores conseguiram identificar uma realidade que afetou o bioma milhares de anos atrás: mudanças climáticas estiveram presentes, levaram a floresta à seca e promoveram mudanças na cobertura vegetal, afetando as comunidades locais.

Essa foi a primeira vez que o resultado foi encontrado por meio do estudo do DNA das espécies. A pesquisa, realizada durante seis anos e liderada pelo Instituto Tecnológico Vale – Desenvolvimento Sustentável (ITV-DS), com a participação do Laboratório Nacional de Computação Científica, no Rio de Janeiro, da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), Universidade Federal do Pará (UFPA) e da Universidade de Toronto, no Canadá, escolheu os rendadinhos por serem considerados bioindicadores naturais da floresta, isto é, só ocorrem neste ambiente e conseguem registrar no genoma as informações sobre a distribuição da cobertura vegetal ao longo do tempo.

Cápsulas do tempo

Nove indivíduos tiveram o genoma sequenciado durante o estudo. Com os dados, foi possível entender os impactos que as mudanças climáticas ocorridas na Amazônia em um determinado período de tempo da história tiveram nas aves – tamanho populacional, maiores relações entre parentes e menor diversidade genética foram alguns dos fatores encontrados no DNA. 

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Pesquisadores consideram as aves do gênero Willisornis “cápsulas do tempo” (Foto: Nick Athanas /Macaulay Library)

Pelo fato de os rendadinhos também agirem, para os pesquisadores, como “cápsulas do tempo”, o que ocorreu no passado da floresta foi usado dentro do escopo das análises para entender as dinâmicas previstas para o futuro do bioma: quando as mudanças aconteceram, qual a magnitude delas e o impacto que tiveram.

Alexandre Aleixo, pesquisador de genômica ambiental do ITV e autor líder do estudo que sequenciou o material genético das aves, explica que alguns pontos já foram bem delimitados ao longo da pesquisa. A diminuição de populações de espécies associadas à floresta em um período que vai de 80 mil anos até 20 mil anos atrás é um dos destaques do que foi possível ler a partir das marcas que foram deixadas no DNA dos rendadinhos. “Esse foi o período chamado de Glacial e culminou com a redução da Floresta Amazônica em aproximadamente 60% do tamanho que ela tem hoje.  Isso foi sentido pelas espécies florestais”.

Sudeste

Além da diminuição populacional identificada, os estudos também mostraram que o sudeste da Amazônia foi proporcionalmente mais afetado pelas mudanças climáticas da época do que outras regiões. Os modelos de previsão de impactos que mapeiam as novas consequências do aumento constante na temperatura média do planeta apontam, ainda, que essa parte do bioma será predominantemente atingida. “Então, a história recapitula o passado e exatamente com a comprovação de que isso realmente acontece com as espécies é que a gente quer entender o que as levou a sobreviverem, mesmo diante de um cenário bastante hostil para a presença delas no sudeste”, enfatiza o pesquisador.

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Identificar as mudanças climáticas ocorridas há anos e estabelecer como afetaram a biodiversidade da Amazônia foi um ponto da pesquisa. O outro é ajudar a desenvolver medidas que amenizem o avanço desses efeitos em todo o bioma (Foto: Carmem Helena / O Liberal)

Era glacial guarda mudanças climáticas ocorridas na Amazônia

O que tem sido visto na Amazônia como consequência das mudanças climáticas não é uma novidade. Por outras razões, o fenômeno ocorreu na chamada Era Glacial, período em que a temperatura do planeta era de 7,8°C – segundo um estudo publicado na revista Nature. Para efeito de comparação, a taxa no último século era de 14°C. Atualmente, os processos industriais e a queima de combustível fóssil são os responsáveis pelas mudanças, mas Alexandre Aleixo destaca que outras causas estavam envolvidas no passado. “Talvez, no passado, a causa principal é o que chamam de mudanças relacionadas com a órbita do globo terrestre”, diz o pesquisador.

“Então, essas mudanças são cíclicas e elas levam, de fato, a situações em que os raios do sol atingem a Terra de modo mais intenso ou menos intenso. Em períodos glaciais, em que aumenta o gelo e na Amazônia tem mais seca, você tem uma diminuição de radiação solar atingindo a Terra, é isso que explica. Ou seja, as mudanças climáticas atuais, que estão, de fato, relacionadas principalmente ao aumento de CO2 [dióxido de carbono], são um cenário bem diferente daquilo que causou essas mudanças climáticas e esse ressecamento da Amazônia em um momento de 20 mil anos atrás. As causas são diferentes, no entanto, aparentemente até onde a gente consegue entender, os efeitos foram muito parecidos”, diz Aleixo.

Futuro

Identificar as mudanças climáticas ocorridas há anos e estabelecer como afetaram a biodiversidade da Amazônia foi um ponto da pesquisa. O outro é ajudar a desenvolver medidas que amenizem o avanço desses efeitos em todo o bioma. “Uma das principais ações que estão sendo feitas é exatamente [entender] como manter as reservas, que já foram delimitadas, intactas. Isso é uma coisa meio intuitiva, a gente acha que uma vez que a reserva foi delimitada, ela vai estar a salvo. Mas as mudanças climáticas vêm para mostrar que isso não é o caso. Mesmo se uma reserva estiver bem conservada, bem vigiada, as mudanças climáticas vão alterar a vegetação e a fauna”, alerta Aleixo.

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A pesquisa parte em busca das condições que levaram a esse cenário de resistência e sobrevivência das aves. Com os resultados, afirma o pesquisador, reintroduções no bioma poderão ser feitas (Foto: Carmem Helena / O Liberal)

No caso dos rendadinhos, que sobreviveram às mudanças climáticas da era glacial, a pesquisa parte em busca das condições que levaram a esse cenário de resistência e sobrevivência das aves. Com os resultados, afirma o pesquisador, reintroduções no bioma poderão ser feitas. “Também através de corredores ecológicos, facilitando a dispersão, o movimento dessas espécies para essas unidades de conservação, que vão ser bastante afetadas pelas mudanças climáticas. Então, essa é uma forma de manejo, a partir do momento que você tem conhecimento de como o genoma responde às mudanças climáticas e identifica quais populações são mais resistentes”, explica o cientista.

Mudanças climáticas impactam fluxo migratório das aves

Os estudos conduzidos pelo ITV mostraram que a biodiversidade dos rendadinhos da Amazônia foi afetada pelas mudanças climáticas da era glacial. Hoje, um outro problema é evidente: as espécies que têm fluxos migratórios para o bioma são ameaçadas e podem correr o risco de perder um ambiente seguro para essa estadia. Marcos Pérsio, professor e coordenador do Laboratório de Biogeografia da Conservação e Macroecologia (Biomacro-Lab) da Universidade Federal do Pará (UFPA), destaca que as aves que possuem trânsito para a região estão em busca de melhores condições climáticas e oferta de recursos alimentares.

Normalmente, as espécies que migram para a Amazônia se reproduzem, ou seja, vivem no Hemisfério Norte – Estado Unidos e Canadá – e no Sul – Argentina e Sul do Brasil – do planeta. São pequenas aves que passam, em média, três meses longe do habitat natural e, em seguida, retornam para uma nova temporada de reprodução. Pérsio afirma que a quantidade de tipos que fazem esse trajeto anual varia de 30 a 40 e passam a temporada na Floresta Amazônica pela grande variedade de ambientes e alimentos. “Na Floresta Amazônica, o ano inteiro tem basicamente a mesma temperatura, ou seja, a temperatura estável, quente e uma abundância em alimentos, tanto em insetos como frutas”.

Riscos

No entanto, esse fluxo migratório corre riscos devido às mudanças climáticas e seus efeitos no bioma amazônico. Segundo o professor, o processo de alteração dos ciclos hidrológicos ocorridos, com falta de chuvas e consequentes secas, a oferta de alimentos, como insetos e frutas, começa a ser diretamente impactada. “Quando começa a alterar o clima, começa a alterar os períodos em que há uma maior abundância de alimentos. Quando essas aves saem dos Estados Unidos em setembro e em agosto para chegar na Amazônia em outubro, elas contam que vão encontrar uma oferta grande de alimentos. O problema é que essas alterações climáticas podem provocar uma alteração na oferta de comida”.

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Marcos Pérsio, pesquisador da UFPA destaca que as aves que possuem trânsito para a região estão em busca de melhores condições climáticas e oferta de recursos alimentares (Foto: Arquivo pessoal)

Projeções apontam para futuro preocupante

Essa realidade de mudanças climáticas pode interferir até no processo interno da floresta, uma vez que as espécies nativas e as migratórias, em busca de alimentos, começam a competir entre si. O resultado, frisa Marcos Pérsio, é a morte dos indivíduos. Junto a isso, um estudo de 2024, conduzido pelo pesquisador da UFPA, identifica, ainda, que as mudanças climáticas são um problema que vai além.
“A gente avaliou 43 espécies que são ameaçadas de extinção e que vivem na Amazônia e fizemos projeções para o futuro de como as mudanças climáticas poderão impactar na distribuição geográfica dessas espécies. O que encontramos é bem preocupante”.

Futuro

“Se a gente pensar em um cenário otimista, em que as legislações ambientais vão ser respeitadas, novas unidades de conservação vão ser criadas, mesmo assim, 65% dessas 43 espécies terão uma forte redução em suas áreas, ou seja, elas vão perder, em média, mais de 80% da sua área de ocorrência. É uma redução muito forte. No cenário pessimista, 96% dessas espécies têm uma redução ainda maior na distribuição geográfica. Basicamente, 84% desses táxons simplesmente não vão ter nenhuma área adequada no futuro e vão correr sério risco de estar extintas em poucas décadas”, diz Pérsio.

Saiba mais

- O rendadinho é um Passeriforme da família Thamnophilidae.

- Seu nome científico significa: Willis = homenagem ao Dr. Edwin O'Neill Willis - (1935-2015) professor e ornitólogo norte americano que residiu no Brasil; e do (grego) ornis = pássaro; do (grego) poikilonotos = manchado, rendado. ⇒ Pássaro rendado de Willis.

- Tem cerca de 13 cm de comprimento e pesa 17 g. O macho apresenta coloração geral cinza, com cauda e asas negras. Costas riscadas de branco, asas com barras brancas e cauda com pintas brancas nas pontas e na base. As fêmeas apresentam a cabeça e peito ocráceos com peito cinza e garganta cinza clara.

- Vive geralmente aos pares, em poleiros verticais próximos ao chão, para onde vai rapidamente apenas com o objetivo de agarrar suas presas (pequenos insetos e aranhas). Apanha insetos também na folhagem próxima. Segue formigas-de-correição com frequência.

- É uma espécie comum em ambientes de sub-bosque de florestas úmidas de terra firme, sendo menos frequente na várzea.

FONTE: https://www.wikiaves.com.br/wiki/rendadinho