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PESQUISA PARAENSE

Descobertas podem transformar e fortalecer a economia sustentável

BIODIVERSIDADE - Entre os alvos de estudos locais, está a aninga, uma planta aquática que vem sendo analisada pelo Museu Paraense Emílio Goeldi e pela Universidade Federal do Pará para as aplicações tecnológicas da fibra da espécie

Ádria Azevedo | Especial para O Liberal

22/03/2025

O potencial da biodiversidade da flora amazônica é enorme e, em grande parte, ainda desconhecido. Desde as aplicações para a produção de fármacos, passando pelo manejo sustentável da exploração madeireira, seguido pelo uso alimentício de uma diversidade de espécies e chegando até à utilização de partes das plantas ou de seus resíduos na indústria da construção.

 

Instituições de pesquisa estudam todas essas potencialidades, com resultados promissores. É o caso das investigações envolvendo a aninga (Montrichardia linifera), uma planta aquática encontrada nas margens de rios, furos e igarapés da Amazônia e que, em Belém, pode ser vista em abundância na orla do Mangal das Garças ou da Universidade Federal do Pará (UFPA) e no Parque do Utinga, por exemplo.

 

Debruçada há cerca de quinze anos sobre pesquisas a respeito da planta, a engenheira química Cristine Amarante, pesquisadora do Museu Paraense Emílio Goeldi (MPEG), conta que seu interesse em estudar o vegetal partiu do conhecimento tradicional de ribeirinhos sobre a aninga. “Seus relatos falam sobre uso na medicina tradicional para diversas finalidades, como cicatrização de cortes profundos, alívio da dor causada por ferroadas de arraia, tratamento de abscessos e tumores, além da observação popular de que ‘onde tem aninga, não há mosquito da malária’, relata.

 

 

Depois de comprovar diversas propriedades bioativas da aninga, que incluem atividades cicatrizante, analgésica, antitumoral, repelente, larvicida, carrapaticida, e virucida, com eficácia comprovada contra o vírus e larvas da dengue e inibição do crescimento dos ovos do parasita causador da malária, a pesquisadora e sua equipe focam, agora, nas aplicações tecnológicas da fibra da planta. “Os ribeirinhos usam os caules fibrosos da aninga na fabricação de jangadas, cordas e mesmo papel artesanal, o que chamou atenção para o potencial dessa fibra”, explica.

 

PROPRIEDADES

 

De acordo com Cristine, as fibras extraídas do caule da aninga, após estudadas química e estruturalmente, demonstraram alto potencial tecnológico e mecânico. Primeiramente, foi identificado um alto teor de celulose, que contribui para a resistência mecânica. Além disso, são termoestáveis até 450°C, tornando-as promissoras para aplicações que exigem resistência ao calor.

 

As fibras estudadas apresentaram resistência à tração de 308 MPa (megapascais, medida de tensão máxima que um material pode suportar antes de se romper) e um módulo de elasticidade de 13.000 MPa. Esses números são superiores aos de outras fibras naturais amplamente utilizadas, como a de coco, juta e curauá. “A fibra de coco tem uma resistência à tração de aproximadamente 220 MPa, ou seja, a fibra da aninga é cerca de 40% mais resistente. A fibra de juta, amplamente usada em sacarias e cordas, tem resistência entre 249 e 400 MPa, o que coloca a aninga em um nível competitivo com a juta. A fibra de curauá, uma das mais resistentes conhecidas na Amazônia, varia entre 87 e 1150 MPa. Sendo assim, a fibra da aninga se aproxima do desempenho das mais resistentes dessa categoria”, avalia Cristine.

 

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Depois de comprovar diversas propriedades bioativas da aninga, que incluem atividades cicatrizante, analgésica, antitumoral, repelente, larvicida, carrapaticida, e virucida, com eficácia comprovada contra o vírus e larvas da dengue e inibição do crescimento dos ovos do parasita causador da malária, Cristine Amarante e sua equipe focam, agora, nas aplicações tecnológicas da fibra da planta (Foto: Igor Mota/O Liberal)

 

Fibras de aninga tem ampla aplicação no mercado

 

A pesquisadora pontua que as fibras naturais são muito utilizadas na indústria para reforçar materiais, tornando-os mais leves e resistentes. “Além disso, ao ser incorporada a um material plástico (matriz epóxi) para formar um compósito (material híbrido), a fibra de aninga gerou um laminado com propriedades mecânicas comparáveis às de outras fibras já utilizadas na indústria. Esse laminado pode ser aplicado na produção de peças automotivas internas, embalagens reforçadas e outros materiais sustentáveis. Portanto, a fibra de aninga combina alta resistência, leveza e sustentabilidade, tornando-se uma alternativa promissora às fibras naturais já conhecidas. Sua ampla disponibilidade na Amazônia reforça sua viabilidade como um recurso renovável para produção de biomateriais avançados”, afirma Cristine. 

 

Algumas possibilidades de aplicação apontadas pela pesquisadora são na Engenharia Naval e na Engenharia Civil, para reforço estrutural e na substituição de materiais sintéticos por alternativas mais sustentáveis. Cristine sugere, na Engenharia Naval, o uso no reforço de cascos de barcos; em painéis e acabamento; na proteção contra corrosão e impactos; e proteção contra variações térmicas, pela alta resistência da fibra ao calor. 

 

Já na Engenharia Civil, a fibra da aninga poderia ser usada no reforço de concreto e argamassa; em placas para construções sustentáveis; na pavimentação; e em tijolos ecológicos. Além disso, pode ser usada para a fabricação de diferentes tipos de papéis e embalagens ecológicas, atendendo à crescente demanda por esse tipo de produto.

 

Até o momento, a equipe de pesquisadores liderada por Cristine desenvolveu, na prática, dois produtos: um protótipo de viga para construção civil, resistente a até uma tonelada, e um protótipo de papel. “Os próximos passos incluem o aperfeiçoamento dos protótipos, testes adicionais de resistência e durabilidade e a busca por parcerias com setores industriais que possam viabilizar a produção e comercialização desses materiais sustentáveis”, adianta a engenheira química. 

 

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Pesquisadores do Museu Paraense Emílio Goeldi estudam propriedades da aninga para as indústrias farmacêutica e de engenharia (Foto: Igor Mota/O Liberal)

 

PARCERIA

 

Depois de descobrir as propriedades da fibra da aninga, a equipe do MPEG precisou avançar na etapa de confecção dos protótipos. Para isso, contou com a parceria do  Laboratório de EcoCompósitos da Universidade Federal do Pará (UFPA), que dispõe de maquinário e ferramentas adequadas.

 

Chefiado pela também engenheira química Carmen Dias e vinculado à Faculdade de Engenharia Mecânica da universidade, o laboratório prepara máquinas e dispositivos para processar materiais reaproveitados, como plásticos, metais, cerâmicas e resíduos de açaí.

 

“Processamos materiais que são excedentes de uso. Então, a gente não cria impactos ambientais: pelo contrário, reduz impactos ambientais usando esses excedentes, que são nossa matéria-prima. E, dependendo da finalidade desse produto, da propriedade que a gente quer alcançar, a gente une materiais. Daí vem a palavra compósitos: materiais diferentes que, juntos, adquirem uma propriedade que não teriam sozinhos”, explica Carmen.

 

Um exemplo é a combinação de um polímero associado à borra do açaí para produzir ecoblocos construtivos. “Na borra do açaí, a gente tem sílica biogênica e lignocelulose. A associação desses materiais dá uma boa resistência final ao produto e boa recuperação elástica. Então, ele suporta peso em quantidade. Sofre pequenas deformações, mas se recupera totalmente dessa deformação pela forma como foi processado”, detalha a pesquisadora.

 

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Um exemplo estudado pelo Laboratório de EcoCompósitos da Universidade Federal do Pará é a combinação de um polímero associado à borra do açaí para produzir ecoblocos construtivos (Foto: Igor Mota/O Liberal)

 

Flor do jambu também é opção para a indústria

 

Outro produto estudado pelo laboratório aproveita resíduos da flor do jambu. Depois de processados pela indústria, os materiais são retrabalhados e podem se transformar em embalagens para ser utilizadas pela própria empresa que produziu os excedentes. Além disso, já foram fabricadas telhas ecológicas, bancos feitos com resíduos de açaí, barcos produzidos com polímeros pós-consumo e embalagens biodegradáveis feitas de outros materiais além da flor do jambu, como resíduos de caranguejo.

 

PATENTES

 

O Laboratório de EcoCompósitos já entrou com quinze pedidos de patentes. A maior parte ocorre em parceria com outras instituições ou grupos, pois o laboratório da UFPA é o ponto de partida para o desenvolvimento de materiais, que são explorados mais a fundo em outros locais. “Temos vários biomateriais, como para regeneração óssea, combustível. Nossa primeira patente foi do ecopiso, produzido a partir da fibra do babaçu, que é muito resistente”, destaca a professora. 

 

De acordo com ela, já há várias empresas parceiras trabalhando com produtos originados no laboratório. Alguns dos próprios alunos se tornaram empreendedores para trabalhar os processos e levar os materiais ecológicos para a sociedade. 

 

“Acreditamos que a parceria com empresas, cooperativas e instituições de pesquisa é essencial para viabilizar a implementação em larga escala dessas tecnologias”, reforça a engenheira química.

 

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“Processamos materiais que são excedentes de uso. Então, a gente não cria impactos ambientais: pelo contrário, reduz impactos ambientais usando esses excedentes, que são nossa matéria-prima. E, dependendo da finalidade desse produto, da propriedade que a gente quer alcançar, a gente une materiais", explica Carmen Dias, coordenadora do Laboratório de EcoCompósitos (Foto: Igor Mota/O Liberal)

 

ECONOMIA CIRCULAR

 

A missão do Laboratório de EcoCompósitos é o desenvolvimento de novos materiais sustentáveis, aproveitando resíduos agroindustriais e polímeros pós-consumo. “Nosso foco é a economia circular, transformando materiais descartados em soluções tecnológicas para diversas aplicações. Assim, nosso trabalho visa criar um ciclo produtivo mais eficiente, beneficiando tanto o meio ambiente quanto a economia local. Em vez de descartar, damos um novo propósito aos resíduos, reduzindo a poluição. Com isso, esperamos contribuir para um futuro mais sustentável, em que os resíduos sejam vistos como recursos valiosos, e não como descartes”, finaliza a pesquisadora.

 

PARCERIA INSTITUCIONAL
A produção do Liberal Amazon é uma das iniciativas do Acordo de Cooperação Técnica entre o Grupo Liberal e a Universidade Federal do Pará. A tradução do conteúdo é realizada pelo acordo, através do projeto de pesquisa ET-Multi: Estudos da Tradução: multifaces e multisemioses.