Um hábito tão caro aos brasileiros, beber café, tem sofrido mudanças nos últimos tempos. A alta no preço do produto leva famílias a tentarem se adaptar, mudando de marcas, fazendo pesquisa de preços ou mesmo reduzindo o consumo. De acordo com o Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) divulgado em janeiro, o aumento do valor do café, nos últimos doze meses, ultrapassou 50%. A expectativa é que o preço continue subindo.
Vários fatores contribuíram para esse aumento no último ano no Brasil, que é o maior produtor e exportador mundial do grão. Houve expansão do consumo mundialmente, com maior interesse dos países asiáticos pela bebida, ampliando o mercado para o café brasileiro. Além disso, as guerras pelo mundo influenciaram os preços de transporte. E, principalmente, os efeitos das mudanças climáticas castigaram as lavouras em 2024.
Seca, incêndios e altas temperaturas causaram a perda de plantações inteiras, a diminuição do número de grãos e sua qualidade. “Existe uma alteração em curso no padrão climático que tem levado lavouras em diversas partes do país a sofrerem estresse e diminuírem sua produção. Essa combinação de estresse hídrico e estresse por temperatura, na época de florada e enchimento dos frutos, prejudicou a safra de 2024, que foi menor do que nos anos anteriores. A quantidade de frutos que se tinha expectativa não está correspondendo, porque justamente o período de florada do café, que é entre julho e setembro, foi o mais crítico de estresse hídrico e térmico. Isso fez com que houvesse escaldadura, dano nas flores. Muitas não abriram e não se fecundaram”, explica o agrônomo Enrique Alves, da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) de Rondônia.

ALTERNATIVAS
A boa notícia é que sistemas alternativos de cultivo, mais sustentáveis, podem ajudar a produção brasileira. E muitas dessas tecnologias são desenvolvidas na Amazônia, gerando grãos de qualidade e sem agredir o meio ambiente. “A forma de remediar isso é trabalhando a sustentabilidade. É preciso diminuir a perda de água, então, eu tenho que trabalhar melhor a cobertura do solo, eu tenho que diminuir a evapotranspiração das plantas, criando microclimas, deixando o solo coberto”, detalha Enrique.
“Existem pesquisas que estão determinando processos mais sustentáveis e regenerativos de produção. Isso envolve uma combinação de plantas nas entrelinhas do café para repor matéria orgânica, para proteger o solo, para conservar a água e manter a umidade na lavoura. Também há sistemas integrados de produção de cafés com outras espécies e ainda os sistemas agroflorestais, que trabalham uma grande diversidade de plantas em um mesmo local. Esses sistemas integrados, arborizados e agroflorestais permitem que se crie uma proteção climática no ambiente de produção”, indica o agrônomo.
Amazônia é destaque na produção de café
Ao contrário do restante do país, que cultiva mais a espécie arábica de café, a Amazônia é forte na espécie canéfora, que se desenvolveu melhor na região. Também conhecido como robusta, tem como características maior capacidade produtiva, maior teor de cafeína, bom desenvolvimento em baixas altitudes, maior resistência a pragas e maior adaptabilidade.
A partir de estudos de melhoramento genético da Embrapa e seleção pelos próprios cafeicultores da região, chegou-se, ao longo de 50 anos de evolução, aos que são conhecidos como robustas amazônicos.

“Eles têm a primeira Indicação Geográfica para cafés robustas sustentáveis do mundo, a do robusta amazônico das Matas de Rondônia. É uma Indicação Geográfica das mais emblemáticas que existem hoje dentre as regiões de produção de café do país”, explica Enrique.
EVOLUÇÃO
Segundo o agrônomo, a espécie, por muito tempo, foi considerada de segunda linha, que só servia para baratear blends de café, ou seja, mistura de grãos de diferentes origens. Hoje, é um produto valorizado e premiado. “A Indicação Geográfica do tipo Denominação de Origem, obtida em 2021, certifica que é um produto único, de qualidade diferenciada que tem relação com o ambiente de produção e com o saber fazer dos produtores. Cacoal, em Rondônia, que faz parte dos 15 municípios que compõem a Indicação Geográfica, é considerada a capital do café na Amazônia. Tem essa notoriedade do contexto histórico e cultural, do saber fazer e da parte ambiental, porque é produzido sem degradar, em áreas preservadas. Estudos demonstraram que o desmatamento recente vinculado à cafeicultura no estado é próximo de zero”, detalha o agrônomo.

Fábio Vailatti é um dos produtores do robusta amazônico, no distrito rural de Nova Califórnia, em Porto Velho, Rondônia. Ele trabalha com certificação orgânica e em sistema agroflorestal, em que associa várias outras culturas de valor econômico ao café: cupuaçu, castanha, açaí e andiroba. “Tenho aproximadamente 6 mil pés de café e já cheguei a produzir 40 sacas. Uso práticas agroecológicas, biofertilizantes, compostagem, cobertura de solo. Não uso nenhum tipo de produto químico, nem herbicida nem adubos solúveis”, relata.
Para Vailatti, o sistema traz várias vantagens. “Para a agricultura familiar, é muito importante a diversificação da produção, porque é um seguro contra as oscilações do mercado. A sustentabilidade, práticas agroecológicas, diversificadas, de baixo carbono, agregando valor à produção, são alternativas ao monocultivo. O clima cada vez mais severo impõe novas práticas mais resilientes, que suportem fortes temperaturas, dias mais secos ou fortes chuvas. Acredito que seja um dos poucos caminhos que nos resta”, afirma.
TECNOLOGIAS
De acordo com Enrique Alves, Rondônia é o quinto maior produtor de café do Brasil e o segundo maior produtor da espécie canéfora, responsável por 90% do café produzido na Amazônia. Mais de 17 mil famílias no estado tiram seu sustento do café.

Embora tenha havido baixa na produção de 2024 e a expectativa para a safra de 2025 ainda seja de queda, o estado é conhecido pela alta produtividade. “Tanto Rondônia quanto a Amazônia têm a média superior a 54 sacas por hectare, o que é mais alto, por exemplo, que o Espírito Santo, que é o maior estado produtor de canéfora do país, que tem uma média de 45 sacas por hectares”, aponta o agrônomo.
“Nem sempre os índices de produtividade foram tão favoráveis para a cafeicultura amazônica. O cultivo começou na década de 70, com a onda de migrantes de regiões com tradição da cafeicultura, que plantaram mudas tanto de arábica quanto de canéfora. Mas a produtividade era praticamente extrativista, de 8 a 10 sacas por hectare, em média. Foi a partir de 2010 que houve uma revolução tecnológica, com a propagação de materiais de melhor características genéticas e novos métodos de produção”, pontua Alves.

A cultura do robusta amazônico não exige grandes áreas para gerar renda, porque tem alta produtividade em pequenos espaços. Boas práticas agronômicas; material genético clonal de qualidade; mais resistente às mudanças climáticas; arranjo espacial adequado; irrigação; manejo do solo; dos nutrientes e de água garantem a alta produção. E tudo isso em sistemas agroflorestais ou integrados, que podem envolver a plantação de corredores arborizados nas plantações. “Esses sistemas integrados não só têm a capacidade de promover um microclima para a cultura, uma proteção, como fixam mais carbono nas plantas e no solo”, esclarece Alves.
Iniciativa local tem cultivo retomado
Outro exemplo de produção sustentável de café amazônico é o Café Apuí Agroflorestal, produzido no município de Apuí, no sul do Amazonas. O cultivo, que havia sido parcialmente abandonado, foi retomado por iniciativa do Instituto de Conservação e Desenvolvimento Sustentável da Amazônia (Idesam), ainda em 2008. “Apuí é um dos municípios mais desmatados da Amazônia e a intenção do projeto era justamente semear a ideia da sustentabilidade. Há, no município, duas culturas muito fortes: pecuária e café. Mas a gente chegou e viu que muitos produtores tinham abandonado seus cafezais porque não valia mais a pena. Só que percebemos que esses cafezais abandonados, com o mato crescendo ao redor, sombreado, estavam produzindo melhor do que os plantados apenas ao sol”, relata Jonatas Machado, diretor comercial da Amazônia Florestal, empresa criada a partir da iniciativa, como uma derivação do Idesam.

Diante da realidade constatada na época, a equipe do Idesam lançou um projeto e, em 2015, passou a incentivar o cultivo de café em agrofloresta, plantado junto com espécies nativas da região, desde o ingá, que fornece a sombra, até espécies madeireiras, como seringueira, jatobá ou mogno, ou frutíferas, como açaí e cacau. “Além do sombreamento e melhoria do café, isso promoveu uma regeneração daquele sistema”, afirma Machado.
Hoje, já são cerca de 115 famílias parceiras do projeto, com mais de 230 hectares de café agroflorestal plantado. Desde 2017, já foram produzidas mais de 130 toneladas. No ano passado, foram 30 toneladas, mas a expectativa para esse ano é dobrar o quantitativo, por conta dos novos plantios que darão a primeira produção.
APOIO
A empresa Amazônia Agroflorestal foi criada em 2019 para impulsionar o projeto, ajudando na compra de insumos pelos produtores e no escoamento da produção. “A Amazônia está em alta e o nosso produto é de regeneração, totalmente sustentável. A cada hectare de café plantado, é um hectare regenerado. Assim, buscamos nossa diferenciação: como café da Amazônia, 100% robusta”, pontua Machado.
O diretor ressalta também a qualidade do produto. “Contratamos uma consultoria em qualidade e um dos nossos produtores já conseguiu ficar entre os 30 melhores cafés do Brasil no campeonato Coffee of the Year”, comemora.
De acordo com Machado, o projeto mudou totalmente a realidade dos produtores locais, porque a empresa consegue adiantar 50% do pagamento para que eles possam investir no cultivo e colheita e também porque garante a compra da produção. “Além disso, pagamos 20% a mais no valor de mercado pela produção agroflorestal, pela qualidade, pela certificação orgânica”, ressalta.

BENEFÍCIOS
O produtor Ronaldo Moraes confirma as vantagens de participar do projeto. “Ajudou muito. A gente vende o café acima do valor da praça e conseguiu o selo orgânico, que tem um valor agregado. Tem empresa que não compra café tradicional, mas garante a compra do nosso café de agrofloresta”, pontua.
O cafeicultor também mostra seu envolvimento com a preservação. “Com essa lavoura de café, a gente não desmata: vai em áreas que já estão degradadas e recupera. Então, a gente trabalha para a gente mesmo sobreviver melhor, e pensando lá na frente, no futuro. Porque a nossa idade está chegando, mas a juventude que está vindo vai sobreviver de quê?”, questiona, deixando uma reflexão sobre a necessidade de investir em sustentabilidade.
PARCERIA INSTITUCIONAL
A produção do Liberal Amazon é uma das iniciativas do Acordo de Cooperação Técnica entre o Grupo Liberal e a Universidade Federal do Pará. A tradução do conteúdo é realizada pelo acordo, através do projeto de pesquisa ET-Multi: Estudos da Tradução: multifaces e multisemioses.