Segundo a lenda, a planta vitória-régia surgiu depois que uma indígena chamada Naiá, ao tentar tocar o reflexo da lua na água, caiu e se afogou, se transformando no vegetal. De inegável beleza e peculiar modo de crescimento, que forma grandes “pratos” na superfície aquática, a vitória-régia é um símbolo da Amazônia e do folclore da região.
Mas e se desse para comer essa planta? Foi o que fez a bióloga Amanda Galvão, que mora em Alter do Chão, em Santarém, no Pará, ao provar pratos preparados com partes da Victoria amazonica, como a vitória-régia é conhecida cientificamente.
A experiência aconteceu no Jardim Vitória Régia, no Canal do Jari, próximo de Alter do Chão. Administrado por Dulce Oliveira, o empreendimento serve pratos como quiche, bolo, rabanada, tempurá, geleia, brownie, chips e até pipoca, a partir do caule, semente, folha e flor do vegetal.
“Fui pela primeira vez ao Jardim Vitória Régia para fazer um passeio e provei os pratos. Desde então, já voltei várias vezes e já provei de tudo. O que a Dulce sai inventando, todas as novidades, eu vou provando. A comida é maravilhosa e é incrível saber que tudo daquela planta é comestível e ver todos os testes que ela faz na cozinha”, conta Amanda.

Dulce Oliveira relata que começou a cultivar um jardim de vitória-régia em 2014. “Aí, observei que vários animais comiam as partes da planta. Então, veio a curiosidade: se várias espécies comem, por que não também os humanos? Foi então que resolvi provar e testar receitas”, recorda. Além dos pratos servidos no local, ela já tem dois produtos no mercado: a geleia, feita com as flores, e a conserva, feita a partir do caule.
Segundo a empreendedora, a procura pela iguaria tem sido grande. “Alguns vêm determinados a provar. De dez pessoas que vêm até o Jardim, apenas uma não faz questão de experimentar”, afirma. Infelizmente, durante a seca de 2024, Dulce perdeu 100% do jardim e somente agora está com as mudas para recomeçar o plantio.

PANC
Dulce Oliveira conta que, até 2019, o consumo de vitória-régia era desconhecido por muitos. “Ela entrou para a lista de PANC em 2017. Era pouco consumida na nossa região, mas está ganhando mercado, por conta de suas propriedades. Precisamos abrir mais a nossa mente para nossos recursos, que a gente não costuma comer”, opina.
Dulce se refere ao acrônimo para Plantas Alimentícias Não Convencionais, cunhado em 2007 pelo biólogo Valdely Kinupp, autor do livro Plantas Alimentícias Não Convencionais (PANC) no Brasil - Guia de identificação, aspectos nutricionais e receitas ilustradas, em parceria com o botânico Harri Lorenzi.
De acordo com a nutricionista Larissa Ferreira, que se dedicou ao estudo do tema em sua dissertação de mestrado, PANC são aquelas plantas que têm uma ou mais partes que possuem um aproveitamento para alimentação humana. “Mas, geralmente, elas não estão adequadamente inseridas no nosso cardápio usual, nos sistemas convencionais de produção e nas grandes redes de supermercado”, explica.
“O conceito se refere também a partes de plantas convencionais que geralmente são descartadas, como talos, folhas de batata e sementes de abóbora. Além disso, também se relaciona a estágios considerados não convencionais, como o fruto verde, como a jaca verde, a manga verde ou a banana verde, que tem tido um ‘boom’ no consumo da biomassa”, completa
Alimentação industrializada coloca consumo regional em risco
Larissa relata que se interessou pelas PANC porque sempre buscou ter uma visão mais ampla em sua área, a Nutrição. “Além dos aspectos nutricionais, também sempre considerei fatores sociais, culturais e ambientais atrelados ao ato de comer. Sempre fui inconformada e curiosa, porque estamos em uma região com tanta diversidade, mas vemos sempre as mesmas hortaliças nos pratos e nos planos alimentares, ao mesmo tempo em que há tantas plantas nascendo ao nosso redor, seja em terrenos baldios, calçadas, beiras de estradas, hortas”, comenta.

Por isso, ela decidiu estudar as PANC durante seu mestrado em Biodiversidade e Conservação no campus Altamira da Universidade Federal do Pará (UFPA). “O objetivo do meu estudo foi verificar o conhecimento e a utilização das Plantas Alimentícias Não Convencionais por estudantes de Ciências Biológicas da Amazônia. Consegui registrar 112 espécies identificadas pelos entrevistados, sendo a maioria delas nativa, com um percentual de consumo de 71%. Dentre as mais citadas, ficaram jambu, chicória, alfavaca, taioba, ora-pro-nóbis amazônica, camapu, tucumã e pupunha. Um ponto importante é que o conhecimento dessas PANC está muito relacionado à origem familiar. Mas esse conhecimento está sendo colocado em risco por conta do consumo de alimentos industrializados e dieta cada vez mais globalizada e homogeneizada, nesse cenário de monocultura hegemônica de milho, soja, trigo, arroz, cana de açúcar”, reflete a pesquisadora.
ABRANGÊNCIA
Larissa Ferreira pontua que PANC têm quantidades significativas de vitaminas, minerais e fibras, além de várias outras propriedades, como anti-inflamatórias. “São alimentos funcionais, que, além da sua função básica nutricional, têm uma função extra para a saúde, além de trazer diversificação para a alimentação”, explica a nutricionista. Ela acrescenta que, apesar de negligenciadas e subutilizadas, podem contribuir para a segurança alimentar, porque suas folhas, flores, sementes e raízes podem fornecer alimentos em quantidade e qualidade suficientes sem comprometer outras necessidades.

A pesquisadora ressalta, ainda, que são recursos importantes frente às mudanças climáticas. “São mais resistentes, mais adaptadas às condições de clima e solo, dependem menos de recursos hídricos e cuidados. É por meio dessas cadeias curtas, que não exigem transporte e causam menos desperdício, que vamos conseguir um sistema alimentar mais sustentável. É fundamental para o conceito de soberania alimentar, que é a autonomia para escolher quem produz os alimentos, refletindo sobre o que coloco no meu prato. Qual o caminho que o meu alimento faz até chegar no meu prato? É saudável do ponto de vista ecológico, ambiental, cultural, social, econômico?”, questiona.
PESQUISA
Valdely Kinupp, criador do acrônimo PANC, especialista no tema e professor do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Amazonas, estuda as PANC há 22 anos. Seu interesse surgiu desde criança. “Eu sou de uma família muito simples, sem terra. E aprendi com meus pais a comer serralha, coração da bananeira, medula do mamoeiro”, relembra.
Como pesquisador, se dedicou ao estudo do assunto, o que resultou no livro, publicado em 2014. “Ele levou 12 anos para ficar pronto. Descobrimos um rol enorme de espécies com potencial alimentício. O livro tem 1.053 receitas ilustradas e tem contribuído para a popularização das PANC”, indica. A obra ainda está em atualização, próxima da terceira edição.

Mas Kinupp não se ateve às pesquisas: criou um sítio em Manaus, no Amazonas, que chama de “laboratório vivo”. “Recebemos visitantes, que podem conhecer um celeiro da agrobiodiversidade brasileira, seguindo os preceitos da agroecologia para cultivar essas plantas. Vendemos produtos para restaurantes e também oferecemos refeições preparadas com PANC no próprio sítio, que tem também hospedagem”, explica.
No local, são explorados, por exemplo, tucumã, urtiga, capeba, picão preto, ora pró-nóbis, taioba, cubiu e outras hortaliças e frutas PANC da região.
Yara Howe, de Tuiuti, no interior de São Paulo, foi uma das visitantes do Sítio PANC. Conhecendo o livro de Kinupp, ela já buscava consumir essas plantas em sua cidade, mas o acesso era limitado. Segundo ela, a experiência foi um divisor de águas e mudou seus hábitos alimentares. “Expandiu meu conhecimento sobre modos de produzir alimentos. Quanta comida a gente tem no planeta e despreza e vai acabando com nosso solo, nosso clima. A gente precisa mudar radicalmente a nossa visão da alimentação, da preservação da natureza e a nossa relação com o mundo. E também ter saúde e diversidade na alimentação. Acho que a iniciativa do Kinupp é uma visão de futuro”, argumenta.

Potencial das PANC ainda é pouco conhecido
De acordo com Kinupp, as PANC mais consumidas na Amazônia são as tradicionais, utilizadas pelos ribeirinhos e pelos indígenas. “Algumas até pela sociedade urbana, mas a cadeia produtiva ainda é bastante incipiente. A cajurana, por exemplo, é uma fruta que nunca chega nas feiras. Só quem conhece é o pescador, o extrativista”, comenta.
Em sua tese de doutorado, o biólogo constatou que cerca de 21% das plantas amazônicas são comestíveis. “Então, se a gente tiver 20 mil espécies aqui e 20% forem comestíveis, temos em torno de 4 mil plantas comestíveis nativas. Mas quantas a gente come, de fato? A FAO (Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura) aponta que 150 espécies dominam o mercado mundial de alimentos. Dessas, quatro contribuem para aproximadamente 90% das calorias que o planeta ingere: trigo, arroz, milho e batata. A gente está na Amazônia, mas quase tudo vem de outros estados ou outros países. Então, é preciso diversificar o cardápio. Todo mundo conhece couve, repolho, rúcula, alface, mas a gente não conhece as nossas verduras. Precisamos ser mais autônomos”, sugere.
Segundo Kinupp, PANC é sinônimo de sustentabilidade. “As PANC estão aí para evitar a degradação do ambiente, permitindo que você faça plantios agroflorestais, agroecológicos. Se você planta, compra ou faz mais extrativismo de PANC, vai estar evitando comprar alimentos do agronegócio predatório”, afirma.

CULTIVO
A engenheira agrônoma Rafaelle Fazzi, professora da Universidade Federal Rural da Amazônia (Ufra), realiza uma pesquisa para descobrir os efeitos de diferentes arranjos de sistema agroflorestal para o cultivo de PANC, em Santo Antônio do Tauá. “É um sistema de agricultura orgânica e regenerativa, em que construímos os arranjos em áreas já antropizadas pela agricultura ou pela pastagem. Queremos avaliar os processos que ocorrem em função do tempo, utilizando quatro modelos diferentes. As plantas de produção são jambu, chicória e cariru e as plantas de serviço, que compõem o sistema agroflorestal, são várias, diferentes em cada arranjo”, explica.
A pesquisa pretende oferecer modelos de cultivo mais sustentáveis e gerar mais rendimento para os produtores. “Por ser um sistema de cultivo biodiverso, um grande benefício é a fixação do carbono, tanto na planta quanto no solo, e a oferta de outros serviços ecossistêmicos, integrando produção de alimentos e recuperação de áreas de floresta”, aponta a agrônoma.

De acordo com a pesquisadora, ela escolheu PANC para o projeto por acreditar no potencial desses vegetais frente aos cenários de mudanças climáticas. “São plantas mais resilientes, adaptadas aos ambientes naturais e que precisam de menos insumos. O nosso sistema é totalmente baseado na natureza, não usamos fertilizantes. Além disso, tem a questão sociocultural da nossa região com essas plantas e sua riqueza nutricional. Tudo isso contribui para o meio ambiente e para a promoção da segurança alimentar”, finaliza.
PARCERIA INSTITUCIONAL
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