Botos_Ascom Ufra.jpeg
PRESERVAÇÃO

Os botos do Araguaia

Descritos em 2014, os mamíferos aquáticos fazem sucesso entre os turistas que visitam Mocajuba, no nordeste paraense. Agora, eles são objeto de estudo conduzido pela Universidade Federal Rural da Amazônia, que irá analisar os impactos da interação humana, com o objetivo de protegê-los

Eduardo Laviano

10/02/2023

Figuras carimbadas no imaginário popular da Amazônia, os botos da região serão objetos de estudo da Universidade Federal Rural da Amazônia (Ufra) em uma pesquisa que buscará entender melhor o organismo e o impacto das interações com humanos na saúde dos mamíferos aquáticos nos municípios paraenses de Mocajuba e Cametá. 

Uma espécie é a protagonista do estudo: o Boto do Araguaia, de nome científico Inia araguaiaensis, cetáceo recém-descrito em 2014. 

Eles habitam a região do baixo rio Tocantins, produzem 237 sons diferentes para se comunicar e são a terceira espécie de golfinhos de água doce catalogada na Amazônia.

A pesquisadora Layane Maia começou a trabalhar com os botos em 2015 e acompanhou de perto o crescente interesse pelos animais, bem como a intensificação do turismo em Mocajuba por causa deles. Agora, ela faz um doutorado focado na saúde da espécie.

Segundo Maia, o principal interesse científico é o estudo hormonal dos botos, para analisar os processos metabólicos deles. 

O objetivo é verificar os níveis de estresse, se há períodos do dia ou do mês em que eles ficam mais agitados e qual a relação disso com os sons que eles produzem e o que cada sinal sonoro pode significar. 

"Eles possuem um repertório vocal muito grande, um indicativo de que há uma complexidade social muito diversa, com muita inteligência, semelhante às orcas", pontua.

O estudo durará 36 meses e por enquanto está na fase de testes e padronização de protocolos e metodologias. 

O projeto também irá analisar riscos de doenças e patógenos, pois há dúvidas sobre o quanto a saúde dos animais está assegurada durante as interações com humanos, já que tanto os humanos podem transmitir doenças para os botos quanto vice-versa.

"Há trabalhos bastante estabelecidos para baleias, mas para botos ainda não. Acreditamos que vamos ver influências de mais ou menos visitações. Como os animais estão em contexto de interação com humanos, diretamente, vamos verificar a questão da qualidade da água e também de patógenos no intestino, sangue e respiração dos animais. Será um estudo de saúde total e que é importante para a preservação da espécie", afirma.

Estudo é inédito e desafiador

Layane avalia a operação como ambiciosa. Primeiro porque os botos são agitados e tirá-los da água para fazer exames de sangue não será tarefa fácil. 

Segundo, porque eles precisarão analisar o borrifo dos animais, ou seja, a respiração. Nos botos, ela se dá por meio do espiráculo, um pequeno buraco na cabeça que tem função semelhante à do nariz.

 Os pesquisadores precisarão tampar momentaneamente esse buraco com um recipiente cilíndrico para coletar as gotículas exaladas no momento da respiração. 

Já o terceiro desafio é criar as próprias metodologias de trabalho, já que se trata de um estudo inédito e sem literatura prévia ensinando o caminho das pedras. 

"Não temos sequer uma estimativa da quantidade de botos do Araguaia. Antes de 2014, achávamos que só existia o boto rosa aqui. Então a classificação da espécie é vulnerável e temos poucos estudos", diz.

Pesquisa inédita investiga segredos da inteligência e saúde da espécie que encanta a região e seus visitantes

Assim como Layane, o professor Frederico Ozanan faz parte do Instituto Biologia e Conservação dos Mamíferos Aquáticos da Amazônia (BioMA), iniciativa que tem se aprofundado cada vez mais no estudo dos botos amazônicos.

Para ele, catalogar os parâmetros fisiológicos e o funcionamento dos organismos de espécies endêmicas é importante para que o mundo saiba que os próprios amazônidas se importam com o ecossistema da região e que estão lutando para preservá-los por meio da ciência. Ele concorda que o ineditismo do estudo é um desafio grande, mas está confiante.

"São animais dóceis e acostumados com humanos, mas vamos precisar fazer uma contenção. Isso não é fácil. Estamos estudando ainda como será. É um risco para quem está manejando e para os próprios animais, pois eles serão retirados da água. Depois a parte laboratorial será mais fácil. São muitas pessoas e muita gente estará por perto no local da coleta, pois é no centro de Mocajuba. Não dá para dizer que não há risco. Já tivemos outros estudos sobre botos mas não no mesmo contexto", lembra ele, que faz parte de uma equipe de dez pesquisadores ligados ao estudo, que conta com apoio da Universidade Federal de Alagoas e Universidade Federal Rural de Pernambuco.

Angélica Rodrigues, que também é pesquisadora do BioMA, participou do primeiro grupo de pesquisa sobre botos na região, ainda em 2006. 

Ela se sente feliz de ver o trabalho que ela ajudou a iniciar crescendo e ganhando força.

"Antes, não tínhamos pesquisa nenhuma que contasse a história natural, a ocorrência e ecologia da espécie. Ou seja, as pessoas viam os botos mas não havia nada produzido sistematicamente de conhecimento sobre eles. O principal obstáculo é o recurso financeiro, então nosso grupo se ajuda na pesquisa e também na captação de recursos. A região Norte ainda tem pouca visibilidade quando o assunto é pesquisa científica", afirma.

Hidrelétricas e pesca predatória são obstáculos para sobrevivência da espécie

Os botos sempre são apontados como espécies em risco de extinção e este cenário não é diferente com os botos do Araguaia. Isso é porque há vários perigos ligados ao habitat deles, os rios. O primeiro deles são as hidrelétricas. 

Segundo a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), há 221 hidrelétricas operando na Amazônia. São 27 de grande porte, 102 médias e pequenas e 92 microgeradoras. Outras 35 estão em construção ou rumo às obras, inclusive na bacia Araguaia-Tocantins, onde o boto recém-descoberto vive. 

"Isso gera risco de isolamento geográfico, infelizmente. Imagina: você tem a construção de uma barragem onde os animais não vão mais conseguir se deslocar por esse trecho do rio, do qual antes eles tinham livre acesso. Afeta o ecossistema", conta Layane Maia.

Layane Maia e Gabriel Melo estão animados com o estudo

Conflitos com pescadores também entram na lista. Os botos têm uma capacidade de mobilidade muito grande e são notadamente rápidos e habilidosos. Isso é porque são animais sem vértebra cervical fusionada, o que confere a eles grande mobilidade de pescoço e cabeça, algo que os demais golfinhos e cetáceos não possuem. 

Normalmente, os botos do Araguaia se alimentam em locais alagados, como as florestas de igapó, no meio das raízes mesmo. 

Mas, quando o pescador joga a rede e o boto avista a oportunidade de reforçar a alimentação, o animal nada com força rumo ao equipamento de pesca, morde, vira o pescoço e rasga a rede. 

"Ou seja, prejuízo para o pescador. Essa competição entre pescador e boto é algo que precisamos intermediar com cautela", diz Maia.

Além disso, a carne do boto é utilizada como isca para a pesca da picaratinga na bacia do rio Amazonas, atividade que já chegou a promover matança estimada entre 300 e 4 mil botos por ano, segundo o Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa).

Atualmente, a pesca deste peixe, também conhecido como douradinha, está proibida pelo menos até 2 de julho de 2023 e entidades que atuam na defesa dos botos lutam para postergar a validade da lei, estabelecida em 2015 pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento. 

A pesca da espécie também está proibida na Colômbia.

Mitos e lendas

O folclore que ronda a imagem dos botos também é um desafio para a sobrevivência dos animais. A lenda de que eles saem do rio e se transfiguram em homens charmosos de vestes brancas e lábia sedutora ainda é forte em cidades pequenas do interior da região amazônica. 

O caráter mágico que o animal assume e a crença de que ele vai engravidar as meninas que moram ao longo do rio acaba gerando medo e interações negativas com humanos, que resultam em agressões.

Segundo Layane, os relatos do gênero são corriqueiros. 

"Então junto tudo: o boto rasga rede, é malino, sai do rio e vira homem, tem capacidade e inteligência humana. É muito veloz. Há órgãos utilizados em rituais de pajelança e às vezes se o boto está vulnerável acabam matando. Em Cametá, temos muitos botos com sinais de agressões", relata.

Ricardo Calazans, pesquisador responsável pelo espaço Mirante do Boto, em Mocajuba, conta que muitos pescadores não respeitam os botos, mas que eles são uma minoria. 

Segundo ele, a onda de matança de botos é bem mais comum no estado do Amazonas, que possui mais regiões ribeirinhas afastadas de cidades. 

Calazans conta que muitos moradores têm o costume de avisá-lo quando percebem que algum boto está machucado.

"O que não falta aqui é gente contando que já dançou com o boto, que tem filha com o boto, que o boto levou uma sobrinha para uma festa. Mesmo assim, eu diria que 90% dos ribeirinhos respeitam e cuidam do boto", estima.

Passeio dos botos impulsiona turismo ecológico em Mocajuba

Criado em 2016, o Mirante do Boto é a sensação do turismo em Mocajuba, município no nordeste do Pará. 

São 17 botos, entre filhotes e adultos, que chegam todo dia para passear, brincar e comer nas proximidades do Mercado Municipal de Mocajuba. 

Tanto sucesso fez do espaço um local oficializado pela prefeitura, tudo sob a responsabilidade de Ricardo Calazans. 

O pesquisador fez um trabalho de conclusão de curso focado nos botos de Mocajuba, cidade-natal dele. 

Hoje, ele se dedica a pesquisar os hábitos dos cetáceos e a gerir o local que chega a receber mil pessoas por semana durante o verão amazônico. 

Nas épocas de chuva, o fluxo cai para 200 pessoas. Os botos chegam por volta das seis da manhã e, ao meio-dia, partem de volta para as águas mais distantes dos contato humano.

Cada grupo de visitantes interage entre 10 a 15 minutos com os animais, para evitar que eles se estressem. Os turistas também alimentam os botos. 

"Temos que tomar um cuidado muito grande, porque são pequenas porções de peixe vendidas pelos feirantes. Mas nem todo peixe eles comem. Temos que vistoriar tudo antes, para ver se é o peixe ideal, se tem espinhas. Eles comem mapará, tucunaré e filhote. Além de supervisionar os peixes, fazemos uma palestra antes com as orientações", afirma. 

Todos os botos possuem nomes próprios e Calazans garante que reconhece cada um de longe.

"Nunca aparecem os 17 juntos. Já notamos que quantos menos visitantes temos, mais eles aparecem. Alguns são meio ariscos. Mas temos uma média diária de 5 a 7 botos todos os dias passeando ao redor do mercado", conta.

Ricardo conta que está empolgado com a pesquisa sobre a saúde dos animais. Segundo o pesquisador, trabalhar no Mirante mudou a vida dele e é motivo de felicidade e orgulho. 

"Eu tinha um amigo e o pai dele vendia peixe no mercado. Eu, criança, notava que ele sempre ia lá e pegava um peixinho e dava para o boto. Quando entrei na universidade, já falei para minha professora sobre a ideia de pesquisar os botos da minha cidade. E desde então comecei a visitar e ver sempre o estado do boto, se eles estavam bem, cuidar deles de maneira voluntária. Então a prefeitura me contratou. Eu criei a página no Instagram [@botosdemocajuba] e temos mais de 30 mil de seguidores. Foi uma coisa incrível. São botinhos que eu amo de coração, brigo por eles e faço tudo por eles", relata.

Atualmente, Ricardo conta com o apoio de uma veterinária que semanalmente faz o monitoramento de saúde dos animais. 

Segundo ele, boa parte dos arranhões e mordidas que aparecem nos botos são frutos de brigas entre eles mesmos. 

"Normalmente são só arranhões superficiais mesmo. As pessoas estão convidadas para conhecer o Mirante, é tudo de graça, mas todo cuidado é pouco. Aqui a gente orienta passo a passo a interação. E sempre pedimos que as pessoas preservem. Esse fenômeno dos botos se dirigirem rumo ao contato humano é muito especial e só ocorre em dois lugares do mundo: aqui e em Manaus. Então temos que cuidar e fazer tudo da maneira certa", diz.

Para o pesquisador Frederico Ozanan, da Ufra, um dos grandes ganhos do projeto de pesquisa será o ordenamento turístico da interação. 

"A partir das conclusões poderemos buscar um controle maior de quantas pessoas por dia irão interagir e de que maneira, assim como o controle nutricional da quantidade de alimento dada aos animais. Vamos poder ajudar a prefeitura e órgãos ambientais para estruturar, de maneira mais segura, as visitas", aponta.