O Brasil é o maior país da América do Sul, com impressionantes 8.514.004 km². O gigante também abarca a maior porção de um dos biomas mais importantes do planeta: a Amazônia. São 6,7 milhões de km², sendo 60,1% pertencentes ao território brasileiro. Toda essa grandiosidade geográfica é, hoje, bem delimitada por 16.886 quilômetros de fronteiras. O que pouca gente sabe é que esses limites são fruto do trabalho de homens e mulheres que se aventuraram nos mais desafiadores terrenos para demarcar o território nacional. É o trabalho dos integrantes da Primeira Comissão Demarcadora de Limites (PCDL).
A PCDL é um órgão ligado ao Ministério das Relações Exteriores (MRE), com sede em Belém, capital do Pará, criado em 1928 para empreender o desafio de demarcar as fronteiras ao Norte do Brasil. Outro órgão similar, a Segunda Comissão Demarcadora de Limites (SCDL), com sede no Rio de Janeiro, foi criado com o mesmo propósito, voltado para as fronteiras ao Sul.
A PCDL é responsável pela Fronteira Norte, a maior área de atuação do Ministério das Relações Exteriores na América do Sul, com 9.767 quilômetros de extensão à vizinhança dos países Peru, Colômbia, Venezuela, Guiana, Suriname e Departamento da Guiana Francesa – o que corresponde a 57,8% do total da fronteira do País. O estado do Pará, vizinho direto da Guiana e Suriname, possui 2.119 km de fronteira, o equivalente a 21,6% da Fronteira Norte.

Desde as primeiras demarcações feitas na década de 1930, a PCDL soma hoje 6.642 marcos instalados ao longo da fronteira. São estruturas de concreto superficiais e/ou subterrâneas, que sinalizam a divisa entre os países. Hoje estabelecidas, essas linhas delimitam e garantem a soberania brasileira sobre o território. Porém, quando a PCDL foi criada, elas ainda estavam em processo de demarcação, conforme rememora o atual chefe da PCDL, Dauberson Monteiro da Silva: "Inicialmente as demarcações foram realizadas por comissões não permanentes. Era determinado um serviço, era constituída uma delegação e, terminado o trabalho, era desfeita a comissão. A PCDL foi criada para ser permanente em 27 de janeiro de 1928, quando o Brasil ainda estava em processo de demarcação".
Dauberson explica que o processo de demarcação ocorre em quatro etapas: a negociação entre os países, feita por diplomatas; a delimitação das fronteiras, com o lançamento dos limites estabelecidos em mapas; o tratado, que é a descrição do limite com reconhecimento internacional; e a demarcação, que é a caracterização desses limites por meio da implantação dos marcos físicos.
Para o chefe da PCDL, é motivo de orgulho que o País seja um dos poucos no mundo com todas as fronteiras delimitadas pacificamente, sem conflitos com as nações irmãs do continente. “Os limites brasileiros, quase 17 mil km de fronteiras terrestres, estão consolidados. Não há nenhum litígio entre o Brasil e seus vizinhos”, afirma.
Este trabalho foi feito, na prática, pelas mãos de centenas de trabalhadores que, da década de 1930 até a década de 1970, se empenharam em viajar até os extremos do Brasil para fazer o posicionamento dos marcos territoriais.
A demarcação do Brasil começou em uma época marcada pela ausência de tecnologias de precisão, como o GPS, levando as equipes a usar a posição dos astros para se localizar e desbravar os caminhos, muitas vezes dificultados pelos desafios naturais do bioma amazônico, como os grandes rios e as densas florestas
“A experiência da viagem era que nós trabalhávamos em embarcação. Saíamos daqui de Belém no navio da Marinha até Manaus e, de Manaus, até São Gabriel da Cachoeira, no Amazonas. Era uma viagem extensa”, conta Pedro Barbosa dos Santos, 84, demarcador da PCDL desde o fim da década de 1950.
“Nós começamos lá andando de barco, de canoa, a gente fazia trilha na mata, tudo. E eu participei de ações em todas essas fronteiras – umas mais, outras menos. Venezuela, Colômbia, Peru. Eu cheguei a passar cinco, seis meses na fronteira”, lembra o veterano Pedro Barbosa dos Santos.
Demarcadores embarcaram em aventuras para cumprir missão
De todas as etapas para formação das fronteiras, a demarcação foi a mais desafiadora em termos práticos, pois exigia a ida de uma equipe técnica até o ponto mais extremo do território brasileiro para realizar a implantação de um marco territorial. Essas viagens demandavam coragem, desprendimento e determinação dos membros da PCDL para cumprir a missão.
Isto porque a demarcação do Brasil começou em uma época marcada pela ausência de tecnologias de precisão, como o GPS, fazendo com que as equipes precisassem usar a posição dos astros no céu para se localizar e desbravar os caminhos, muitas vezes dificultados pelos desafios naturais do bioma amazônico, como os grandes rios e as densas florestas.
É o que dá conta o relato de Pedro Barbosa dos Santos, membro da equipe de demarcadores da PCDL desde o fim da década de 1950. Hoje, com 84 anos, o aposentado relembra, com alguma dificuldade devido à idade avançada, como era seu tempo de atividade: “Na época, a gente se guiava pela astronomia. Nós tínhamos pessoas dentro dessa capacidade para fazer isso. Tinha vezes que a gente passava até oito dias para pegar o posicionamento correto. Não era muito fácil, não. Mas os aparelhos nossos eram o que estavam disponíveis para fazer o trabalho”, comenta.
Pedro Barbosa lamenta que parte dos seus registros de viagem tenham se perdido durante um temporal que provocou o desabamento de uma parte da sua casa, em Belém, enquanto ele estava em uma de suas viagens. Segundo o que sua memória ainda dava conta de lembrar, Pedro diz que era preciso ter menos de 32 anos para ingressar na viagem de demarcação. Era preciso ser “forte e sadio” para encarar os desafios. Ele também conta do percurso que era feito no começo da viagem: “A experiência da viagem era que nós trabalhávamos em embarcação. Saíamos daqui de Belém no navio da Marinha até Manaus e, de Manaus, até São Gabriel da Cachoeira, no Amazonas. Era uma viagem extensa, passava dias para nós alcançarmos. Isso era no tempo do general Bandeira Coelho”, comenta.
O demarcador relata que a comissão era grande. Os funcionários da PCDL, saídos de Belém, se encontravam com outros trabalhadores no município de Óbidos e, de lá, seguiam até o estado do Amazonas para demarcar fronteiras com a Colômbia e a Venezuela, por exemplo.
“Nós começamos lá andando de barco, de canoa, a gente fazia trilha na mata, tudo. E eu participei de ações em todas essas fronteiras – umas mais, outras menos. Venezuela, Colômbia, Peru. Eu cheguei a passar cinco, seis meses na fronteira”, lembra o veterano.
Com a chegada de uma tecnologia mais precisa para o posicionamento dos marcos na fronteira, também passou a ser uma atribuição da PCDL a atualização das coordenadas dos marcos antigos, colocados nas décadas anteriores pelos primeiros demarcadores.
“Um ponto astronômico tem uma margem de erro de mais ou menos duzentos ou trezentos metros. Não quer dizer que o marco foi mal posicionado. Quer dizer que a coordenada da época, que era obtida por esse método, não era precisa”, explica o assessor técnico Edivaldo Campos da Silva.
Edivaldo Campos da Silva explica que os antigos marcos não são movidos do lugar. A atualização das coordenadas serve para uma melhoria cartográfica.
“Nós somos um dos primeiros da América do Sul a usar drone para mapeamento”, diz Edivaldo Campos da Silva
No século passado 622 marcos foram implantados na Fronteira Norte. Depois disso, outros 6.020 marcos foram incluídos, no processo de densificação – processo que ocorreu principalmente nas fronteiras com o Peru (11 marcos incluídos), Colômbia (144) e Venezuela (3.045).
Tecnologia avança para as fronteiras
O assessor técnico Edivaldo Campos da Silva já chefiou diversas incursões a campo, desde quando começou a trabalhar na PCDL, em 1995. Ele chegou a conhecer bem a realidade com uso dos instrumentos mais arcaicos, porém, sua época foi marcada por avanços tecnológicos que não apenas facilitaram a vida em campo, como também expandiram as funções da PCDL hoje.
“O GPS veio em 1987, mas não tinha a precisão que tem hoje. Era uma precisão de três metros de erro. A partir de 1995 que foram lançados os GPSs que têm a precisão de hoje. Então, quando eu cheguei aqui, tive essa facilidade de posicionamento”, conta o funcionário.
Com a chegada de uma tecnologia mais precisa para o posicionamento dos marcos na fronteira, também passou a ser uma atribuição da PCDL a atualização das coordenadas dos marcos antigos, colocados nas décadas anteriores pelos primeiros demarcadores. Edivaldo diz que esse é um trabalho importante para a cartografia do presente e do futuro.
“Um ponto astronômico tem uma margem de erro de mais ou menos duzentos ou trezentos metros. Não quer dizer que o marco foi mal posicionado. Quer dizer que a coordenada da época, que era obtida por esse método, não era precisa. Já o GPS, quando colocado em cima do mesmo marco, dá a coordenada precisa. Por isso, uma das nossas atribuições hoje é ir a campo e fazer uma atualização dessa coordenada”.
Edivaldo enfatiza que, de modo algum, os marcos são movidos do lugar. Uma vez estabelecidos pelos primeiros demarcadores, ali eles permanecem. Mas a atualização das coordenadas serve para uma melhoria cartográfica – um desenho mais preciso da posição desses divisores nos mapas do país.
Além dos GPSs, outras tecnologias têm trazido modernidade para o trabalho: “Hoje a gente está utilizando o drone para mapeamento, principalmente nas cidades fronteiriças. Até pela facilidade de chegada e tudo. Nós somos um dos primeiros da América do Sul a usar drone para mapeamento. Já temos uns cinco anos fazendo isso”, comenta.
Outra atribuição importante da PCDL, hoje, é a densificação das fronteiras, ou seja, o trabalho de implantar novos marcos territoriais entre aqueles estabelecidos pelos primeiros demarcadores, a fim de encurtar a distância entre os marcos e delimitar melhor a fronteira, conforme pontua o atual chefe da PCDL, Dauberson da Silva: “A densificação é a inclusão de novos marcos no trecho que consideramos necessário. Normalmente, no trecho onde está crescendo a população na área fronteiriça ou regiões que exijam caracterizar melhor os limites, constroem-se marcos novos, intermediários entre os principais. Nós temos poucas cidades fronteiriças no Norte: a Assis Brasil, no Acre com o Peru; a Cruzeiro do Sul também no Acre; Tabatinga, no Amazonas; Pacaraima, no norte de Roraima; Bonfim, na fronteira com a Guiana; e a cidade de Oiapoque com a França”.
Segundo dados da PCDL, durante o período da demarcação, no século passado, 622 marcos foram implantados na Fronteira Norte, estabelecendo os limites do país. Depois disso, outros 6.020 marcos foram incluídos, no processo de densificação – processo que ocorreu principalmente nas fronteiras com o Peru (11 marcos incluídos), Colômbia (144) e Venezuela (3.045).
“Foi uma vivência que me deu o real valor do material que eu estava armazenando e cuidando, aqui, para a posteridade. Participando da História”, afirma Ivete Castro Botelho.
“Um dos critérios para escolher meu curso foi justamente que não tinha muitas mulheres na área e sempre quando tem um obstáculo, ou algo do tipo, eu acho muito interessante”, conta a engenheira cartógrafa agrimensora Gabriela da Silveira Mesquita, a primeira mulher a fazer parte de uma equipe de demarcadores.

Presença feminina na fronteira
Outra funcionária da PCDL que, além de ter vivido experiências de campo junto às fronteiras, também é guardiã das memórias da Comissão é Ivete Castro Botelho. Bibliotecária por formação, Ivete conta que, quando começou a trabalhar na PCDL, em 1993, não tinha dimensão de tudo que ia viver.
“Eu comecei com a expectativa de trabalhar na biblioteca, atender o público etc. Mas quando cheguei aqui, foi diferente. Eu tive a missão de abrir a biblioteca, que ainda não era aberta ao público. Desde o início a gente percebeu que o material era bem específico para quem fazia graduação, mestrado etc.”.
Ela conta que, ainda no seu primeiro ano de serviço, uma reunião foi feita para decidir sobre a presença de mulheres nas delegações de demarcação – algo que já havia sido autorizado em 1987, pela primeira vez, quando as funcionárias Eliete Gillet Brasil, Jamile da Fonseca e Roseli Alves Pronk inauguraram a presença feminina em campo – no entanto, Ivete conta que, depois disso, passou algum tempo sem que mulheres seguissem em viagem.
“Na primeira reunião para saber como estava o serviço de cada setor, um dos pontos foi sobre a participação das mulheres nas missões, que havia um tempo que elas não estavam mais indo. Houve uma votação, inclusive um dos votos foi meu, e foi aprovado que as mulheres continuassem indo para as missões. No ano seguinte, em 1994, foi minha primeira missão”.

Ivete relata que não fazia ideia do que a esperava, mas que se apaixonou pelas aventuras em campo. “Nós fomos para a fronteira com a Venezuela. Nós fomos até Boa Vista, depois, de ônibus até Pacaraima, onde encontramos a comissão venezuelana, e nos deslocamos para San Antonio, uma localidade próxima à última cidade de fronteira com a Venezuela. ‘Acampamentão’ mesmo, de lona azul. Éramos uns 15 técnicos - um pessoal de todos os níveis, desde o chefe até o pessoal do apoio. Tudo me chamava atenção: a montagem do acampamento, a montagem da cozinha, no meio do mato mesmo”, conta, sobre sua primeira viagem.
Em suas viagens, Ivete lembra que costumava ter a atribuição de “suprida”, um cargo que ficava responsável pela administração do dinheiro da comissão e compra de suprimentos. “Era responsável pelo pagamento de todo o material que era adquirido, pelo pagamento dos trabalhadores, o que entrava e saía de dinheiro. Eu fazia isso pela manhã, então à tarde eu tinha tempo livre e me prontificava para fazer tudo. Desde ajeitar uma mesa até atravessar rio, verificar as picadas, que eram caminhos na mata – eu fazia tudo”.
Sua vivência em campo foi fundamental para o seu trabalho com os registros históricos da PCDL. Ivete pontua: “Esse trabalho me deu uma noção do material que eu tinha em mãos, porque, até então, nem eu sabia bem como era a demarcação. Então eu passei a dar um valor ainda maior ao trabalho, uma vez que o Itamaraty produz e é o guardião do seu próprio material, sua própria memória. Foi uma vivência que me deu o real valor do material que eu estava armazenando e cuidando, aqui, para a posteridade. Participando da História”.

A primeira demarcadora
Desde que as mulheres começaram a ir a campo em viagens de demarcação, em 1987, levou 35 anos para a PCDL ter sua primeira mulher na equipe, em termos formais. Foi apenas em 2022 que a Comissão passou a contar com uma demarcadora com formação na área para tal – a engenheira cartógrafa agrimensora Gabriela da Silveira Mesquita, de 27 anos.
Gabriela começou a trabalhar na PCDL há um ano e conta que ficou surpresa quando descobriu que era a primeira mulher com formação profissional para atuar na demarcação das fronteiras: “Eu sempre achei que já tinham outras. Até que eu fui para a primeira campanha na Colômbia e as pessoas comentavam 'nossa, uma mulher na equipe'. E eu era muito bem tratada, sempre com respeito. Quando foi na segunda campanha que eu fui, eles falaram 'vamos brindar pela primeira demarcadora'. E aí que eu entendi que eu era a primeira mulher com formação a atuar na área”.
A profissional conta que sempre gostou de superar desafios, por isso, desde a sua formação técnica, buscava áreas onde a presença feminina ainda não era tão intensa. “Um dos critérios para escolher meu curso foi justamente que não tinha muitas mulheres na área e sempre quando tem um obstáculo, ou algo do tipo, eu acho muito interessante”, comenta.
Hoje, Gabriela entende que tem um papel representativo como a primeira demarcadora da PCDL, uma conquista que ela espera refletir positivamente para as futuras gerações: “É uma responsabilidade. A gente fica um pouco ‘pisando em ovos’, se preocupando em manter uma linha, ser o mais coerente possível para representar sempre bem as mulheres na profissão. E encorajar, também, para que mais mulheres ocupem esses espaços”.