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DO MANGUE À MESA

Consumo de turu é tradição da Amazônia

Molusco dos mangues do Amapá, Maranhão e Pará une grandes benefícios nutricionais e originalidade culinária à força da identidade ribeirinha da região

Ádria Azevedo | Especial para O Liberal

10/10/2024

Quando o assunto é turu, não há muito meio-termo. A reação ao molusco de áreas de mangue, consumido como iguaria, costuma ser ou água na boca ou repulsa. Independente do quanto é apreciado, não há como negar: ele faz parte da identidade ribeirinha de certas regiões amazônicas. Mas o que é exatamente esse animal invertebrado, esbranquiçado, gelatinoso e com corpo cilíndrico e alongado, que mais parece uma grande minhoca?


Seu nome oficial é Teredo sp. É um molusco bivalve, da mesma família da ostra e do mexilhão. Tem particularidades que justificam a aversão de alguns: além de ter o aspecto de um verme, cresce em pedaços apodrecidos de madeira presentes em mangues do Marajó e da Amazônia Atlântica, incluindo os estados do Pará, Amapá e Maranhão.


Ele pode se alojar no interior de pedaços de troncos caídos ou mesmo no casco molhado de embarcações, deixando a madeira com uma aparência característica, cheia de furos.

 


Apesar desse visual não tão convidativo, o turu já é consumido há, pelo menos, alguns séculos, desde que foi descoberto por povos indígenas da região. Seja em caldos, farofas, só com sal e limão ou em outros modos de preparo, a tradição é mantida pelos ribeirinhos.

Mais do que um alimento: uma parte da identidade cultural

Quem mantém a tradição e tem o turu em seu cotidiano não tem dúvidas: ele dá “sustância” (sustento), é afrodisíaco e até cura doenças. Miguel Picanço, cientista social e pesquisador da Antropologia da Alimentação, comprovou os simbolismos associados ao turu durante os estudos para sua tese de doutorado. “Quando eu estava em pesquisa de campo etnográfico para a minha tese de doutorado, eu me encontrei como pesquisador com o turu. Mas é claro que esse encontro já havia acontecido porque eu sou caboclo, amazônida, nortista, da comunidade de Araí, no município de Augusto Corrêa, nordeste paraense. Desde muito cedo, quando criança, eu já experimentava o turu. Mas esse olhar mais antropológico, mais científico, se deu quando eu estava estudando a vida social da mandioca e elegi Araí como meu campo etnográfico”, explica.

 

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Miguel Picanço, cientista social e pesquisador da Antropologia da Alimentação, estudou os simbolismos associados ao turu para sua tese de doutorado (Foto: Miguel Picanço/Arquivo pessoal)


Durante as observações e entrevistas realizadas para a sua pesquisa, ele percebeu que o turu ocupa um lugar importante nas representações dos amazônidas, particularmente de pescadores, da comunidade de Araí. “Mas posso afirmar, sem medo de errar, que toda a Amazônia Atlântica é atravessada por essas experiências. Nesses locais, o turu traz consigo certas singularidades. Por exemplo, o povo do nordeste paraense atribui ao turu uma carga curativa”, relata.


“Então, se a pessoa está convalescendo de alguma doença, se sentindo muito fraca e debilitada, comer o turu daria essa ‘sustância’, vitalidade, regenerando o corpo e a saúde. Os ribeirinhos me relataram a cura de viroses, inclusive na época da covid-19. E também contaram que, outrora, antes da descoberta do tratamento pela ciência moderna, as pessoas eram tratadas de tuberculose com o caldo do turu”, descreve.
Picanço explica que as práticas relacionadas ao turu se originaram de saberes dos povos indígenas. “Quando eu falo do turu com essa carga curativa, estou falando de uma ciência ancestral, herdada dos povos originários, tupinambás e outras etnias que povoaram a região”, detalha.

 

O pesquisador também lembra outra propriedade atribuída ao turu: a de ser afrodisíaco. “Nas comunidades, também dizem, às vezes até com tom jocoso, que o turu pode ser afrodisíaco e remédio para resolver questões de impotência sexual”, informa Picanço.


Para o cientista social, o turu é mais do que apenas um alimento. “Se pensarmos a comida como marcador de identidade, não é um alimento que está ali só para saciar a fome, mas uma comida, na perspectiva de que ela agrega, de que é coletiva. E não é uma comida ordinária. Não é algo que se come a qualquer momento, pois há todo um ritual para coletar o turu, uma sabedoria do ribeirinho para identificar em qual mangue ir, em qual estágio de decomposição a árvore precisa estar, como tirar o molusco para que ele não seja despedaçado. Há toda uma técnica e um saber para coletar e também para preparar, porque, se não fizer do modo certo, você estraga o turu, ele emborracha”, esclarece.


Nesse sentido, o turu se torna um marcador de territorialidades. “Apesar de ter gente de Belém que conhece, que já estabeleceu essa relação com o turu, ele é um marcador de origem. Onde é que se come o turu? Quem é que come o turu? É o povo do nordeste paraense e do Marajó. Então, é uma comida muito singular e muito nossa, que diz sobre os modos de estar e de viver nos territórios marajoaras e da Amazônia Atlântica”, completa.

 

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Elivaldo Modesto Júnior é pesquisador em Tecnologia de Alimentos e ratifica os benefícios da ingestão de turu (Foto: Elivaldo Modesto Júnior/Arquivo pessoal)

Alimento é rico em propriedades nutricionais

De acordo com Elivaldo Modesto Júnior, doutor pelo Programa de Pós-Graduação em Ciência e Tecnologia de Alimentos da Universidade Federal do Pará, o turu tem alto valor nutricional. “Ele é rico em proteínas, com teores variando entre 5% e 8%; em carboidratos, entre 15% e 23%; em lipídios, em torno de 0,13% a 0,20%; e em minerais, como o cálcio. Seu valor energético total varia de 91 a 118 kcal a cada 100g, configurando-o como um alimento relativamente calórico, especialmente quando comparado a frutos do mar, como camarão, ostra e mexilhão”, explica o especialista.


Além de ser pesquisador em Tecnologia de Alimentos, Modesto Júnior também é marajoara e conhece o turu desde pequeno. “Na Ilha do Marajó, de onde sou natural, o turu é amplamente vendido e consumido, especialmente em Salvaterra e Soure, regiões onde os manguezais fornecem o ambiente ideal para o desenvolvimento dessa espécie. O turu é frequentemente conhecido como ‘afrodisíaco paraense’, o que pode ser atribuído ao seu valor calórico, uma vez que ainda não há estudos científicos conclusivos que comprovem essa propriedade”, destaca.


“No entanto, a crença popular é forte, ligada tanto aos aspectos culturais e psicológicos quanto ao modo de preparo, que vai desde o consumo direto, acompanhado de limão e sal, até pratos mais elaborados, como caldeiradas, que são famosas por ‘curar a ressaca’ de muitos paraenses”, relata o pesquisador.


Modesto Júnior lembra ainda as possíveis propriedades terapêuticas do turu, defendidas pelas populações tradicionais para uma variedade de doenças. “Algumas pesquisas preliminares indicam a possível presença de alcaloides, compostos que podem explicar o potencial bioativo do turu e justificar seu uso terapêutico, mas ainda são necessários estudos mais aprofundados. De qualquer forma, trata-se de um alimento de fácil digestão e com elevado teor proteico, o que o torna valioso na alimentação diária dos marajoaras”, enfatiza.

 

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Maryllin Oliveira, proprietária de uma pousada na Vila dos Pescadores, em Bragança, incluiu o turu no cardápio do restaurante (Foto: Ádria Azevedo/Especial para O Liberal)

Restaurantes incluem o molusco no cardápio

O turu é uma iguaria servida em alguns restaurantes das regiões em que o molusco é encontrado. É o caso de algumas das pousadas localizadas na Vila dos Pescadores, em Ajuruteua, no município de Bragança. No menu, encontram-se o caldo de turu e o turu cru, apenas com sal e limão.


Maryllin Oliveira, proprietária de um desses empreendimentos, diz que decidiu servir o turu desde que abriu a sua pousada. “Quando a gente conheceu a Vila, os próprios moradores serviram o turu para a gente. Então, quando fomos montar o cardápio, montamos com as coisas do cotidiano da Vila, as coisas que costumam fazer e comer aqui. A ideia foi valorizar as vivências e costumes locais”, recorda.


A empresária conta que há quem vá ao seu restaurante justamente para provar o molusco. “A curiosidade atiça, porque temos o caldo e a degustação, só no limãozinho e sal. Grupos de amigos vêm e ficam naquela brincadeira, questionando se vão conseguir comer. Então, muita gente passou a vir. E o mais pedido é justamente a degustação”, aponta.


Para quem fica receoso de consumir, Maryllin argumenta: “Às vezes o turu não agrada aos olhos, mas o gosto é muito bom. Quando a gente vai falando dos benefícios, que é rico em proteína, em cálcio, que é saudável, as pessoas concordam em provar e muitas se surpreendem pelo sabor”, afirma.

 

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Abel Pojo, professor, experimentou turu com sal e limão (Foto: Ádria Azevedo/Especial para O Liberal)


Um dos clientes que aceitou a experiência foi o professor Abel Pojo. Ele já havia provado anteriormente o caldo de turu, mas decidiu apostar na degustação. “Foi muito interessante. Tem um sabor de marisco e uma consistência que você vai mastigando e o sabor vai se prolongando. O caldo é muito saboroso mas, como já vem com um monte de temperos, não se sente tanto o sabor do turu. Se for só com sal e limão, você sente bem a textura e um sabor muito particular. Achei gostoso e pretendo comer novamente. E acho que faz muito sentido isso ser servido aqui, porque é uma valorização de saberes, de uma prática tradicional dos pescadores”, elogia.
 

Na trilha do turu

São os moradores da Vila que fornecem a matéria-prima para os pratos com turu servidos na pousada. “A gente compra já certo de uma família. A gente fala quantos litros quer para a semana e eles já trazem tudo tratado”, diz a proprietária Maryllin Oliveira.


Um dos coletores é Roni Pereira, que vai ao mangue em busca do turu desde a infância. Para ele, é uma tradição que passa de geração para geração. “Os mais velhos vão levando e a gente vai aprendendo e gostando da atividade. Para consumir, eu não gosto, mas acho divertido ir tirar, é interessante. A gente corta a madeira, abre e vê bastante turu, é muito lindo”, comenta.


“O turu só dá em madeiras que caem dentro do mangue, que a maré derruba. Mas a madeira muito nova [que caiu há pouco tempo] não tem turu. Só a madeira mais antiga, com uns quatro, seis meses [após cair]. Para a gente identificar se tem turu ali, a gente olha embaixo da madeira. Se tem uma água vermelha, é porque tem. Então, a gente corta com machado, empina o tronco e dá uma batidinha para o turu poder descer”, ensina o ribeirinho, mostrando seu saber ancestral.

 

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Roni Pereira vai ao mangue em busca do turu desde a infância. (Foto: Ádria Azevedo/Especial para O Liberal)

TRILHA


Além de ofertar os pratos no restaurante, a pousada Kiall oferece também outra experiência relacionada ao molusco: a trilha do turu. Grupos de visitantes são levados por moradores da Vila para extrair o turu diretamente do mangue. “O turu é consumido lá mesmo: abre o tronco, tira o turu, lava na água da maré e consome. Eu acho muito mais gostoso assim, inclusive”, opina a dona da pousada. Questionado se arriscaria provar o turu nessas condições, o professor Abel Pojo não titubeia: “Na hora, sem dúvidas. Adoraria e ainda pretendo ter essa experiência”, planeja.

 

PARCERIA INSTITUCIONAL
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