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AMAZÔNIA ANCESTRAL

Urnas funerárias revelam práticas dos povos originários

HISTÓRIA - Arqueólogos e comunidade se unem frente às descobertas, que desvendam modos de vida de indígenas do passado e sua relação com a morte e o morrer

Ádria Azevedo | Especial para O Liberal

12/07/2025

Uma recente descoberta arqueológica no município de Fonte Boa, no Amazonas, na região do Médio Solimões, promete trazer novos conhecimentos sobre os modos de vida dos povos originários da Amazônia.


Apesar de ter ocorrido em um já conhecido sítio arqueológico, denominado Lago do Cochila, o achado foi ao acaso: a queda de uma árvore revelou sete urnas funerárias em cerâmica, duas delas de grande volume. A estimativa é que os artefatos já tenham milhares de anos.


Todo o trabalho não só de descoberta, mas também de escavação e retirada das urnas, só foi possível graças à colaboração entre os arqueólogos do Grupo de Pesquisa em Arqueologia e Gestão do Patrimônio Cultural da Amazônia do Instituto Mamirauá, sediado em Tefé (AM), e membros das comunidades locais, em especial da comunidade São Lázaro do Arumandubinha.

 


Depois do tombamento da árvore, que deixou suas raízes expostas, alguns comunitários viram as urnas, mas não deram importância para elas. Foi um manejador de pirarucu que levou a informação até um padre, que, por sua vez, procurou o arqueólogo Márcio Amaral, do Instituto Mamirauá. A partir daí, toda a comunidade foi convidada a participar do processo, em um trabalho minucioso e cuidadoso.

DESCOBERTAS

 

O Lago do Cochila é constituído por um conjunto de ilhas artificiais, construídas por indígenas ancestrais para elevar a terra em locais de várzea e mantê-la seca mesmo nos períodos de cheia, preservando suas moradias e atividades. “É uma técnica de engenharia indígena muito sofisticada, que mostra um manejo de território e uma densidade populacional expressiva no passado”, explica Márcio Amaral.


As urnas descobertas revelaram algumas características inéditas, em comparação a outros materiais funerários já descobertos na região. “São de grande volume, sem tampas cerâmicas aparentes, o que pode indicar o uso de materiais orgânicos para selamento, hoje já decompostos. Elas estavam enterradas a 40 centímetros de profundidade, provavelmente sob antigas casas”, detalha a arqueóloga Geórgea Holanda. No interior das urnas foram encontrados fragmentos de ossos humanos, de peixes e de quelônios, indicando rituais funerários associados à alimentação.

 

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Todo o trabalho não só de descoberta, mas também de escavação e retirada das urnas, só foi possível graças à colaboração entre os arqueólogos do Instituto Mamirauá, como Geórgea Holanda, e membros das comunidades locais (Foto: Instituto Mamirauá)


Mas essas foram apenas as primeiras observações dos pesquisadores sobre o material. Novos conhecimentos serão desvendados com as análises que serão realizadas na sede do Instituto Mamirauá, para onde as urnas foram transportadas, em um grande esforço logístico, percorrendo mais de 190 quilômetros em canoas, por igarapés e áreas alagadas.

Cerâmicas são de tradição pouco conhecida

 

As análises das urnas recentemente descobertas apontam para uma nova tradição cerâmica na região, diferente da comumente encontrada na Amazônia Central, denominada Tradição Polícroma da Amazônia. De acordo com a arqueóloga Erêndira Oliveira, do Museu Paraense Emílio Goeldi (MPEG), essa tradição é um estilo que se destaca pela pintura multicolorida. 

 

“Geralmente, são cerâmicas pintadas em tons de vermelho, marrom e preto sob um fundo branco ou claro e que carregam elementos bem sofisticados de decoração, que misturam tanto práticas de pintura quanto de modelagem. Há representação de rostos humanos, corpos de animais estilizados e padrões intrincados de grafismos, que tinham provavelmente uma intenção, cheia de referenciais simbólicos, com elementos imagéticos para chamar a atenção dos observadores. Era uma arte de encantamento. Talvez por isso tenham chamado tanta atenção dos viajantes cronistas, desde o século XVI”, explica.


Já as urnas encontradas em Fonte Boa indicam uma tradição pouco conhecida na região, com a utilização de uma argila esverdeada, faixas vermelhas e engodos, que são pastas de terra aplicadas externamente para disfarçar a cor natural da cerâmica. Além disso, são urnas de maiores dimensões do que as da tradição polícroma.

 

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As urnas encontradas em Fonte Boa têm maiores dimensões do que as da tradição polícroma (Foto: Instituto Mamirauá)

REDES

 

Erêndira Oliveira é especialista na Tradição Polícroma da Amazônia. Tanto no mestrado quanto no doutorado, ela estudou a cerâmica da Amazônia Central, na área de confluência entre os rios Negro e Solimões. No doutorado, pesquisou especificamente as chamadas “urnas funerárias Tauary”, encontradas em 2014 na comunidade de mesmo nome, próxima ao rio Tefé (AM), durante a reforma de uma escola. 


“Essa tradição tem datas entre os séculos VI até XVIII e está presente em diferentes regiões da Bacia Amazônica. Ela se destaca pela sua ampla dispersão regional, pois já foi encontrada em sítios arqueológicos desde os grandes rios da Amazônia peruana, equatoriana e colombiana até áreas próximas ao estuário amazônico no Brasil. Essa distribuição geográfica mostra que houve uma grande circulação e troca dessas cerâmicas e desse estilo. Então, provavelmente, os povos que produziram essa cerâmica estavam integrados em redes de saberes, conhecimentos e também relações políticas”, afirma a pesquisadora.

 

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Erêndira Oliveira é especialista na Tradição Polícroma da Amazônia., mas agora estuda urnas funerárias marajoaras (Foto: Igor Mota/O Liberal)

Cada urna conta uma história

 

Quem também estudou as urnas Tauary foi a arqueóloga Anne Py-Daniel, professora da Universidade Federal do Oeste do Pará (Ufopa). Após todo o processo de escavação e transporte, realizado também por comunitários e técnicos do Instituto Mamirauá, as urnas foram de Tefé para o Laboratório de Arqueologia Curt Nimuendaju da Ufopa, em Santarém, no Pará. As análises, realizadas entre 2019 e 2025, envolveram até o uso de tomografia para visualizar estruturas internas de urnas não totalmente escavadas. 


Após as análises laboratoriais, as urnas retornaram, em abril deste ano, ao seu território de origem, no município de Tefé. Junto com a cerâmica, os pesquisadores levaram uma devolutiva dos resultados dos estudos para a comunidade envolvida nas ações.


Mas o trabalho da professora Anne se estendeu a vários outros sítios arqueológicos e urnas funerárias, além das Tauary: as urnas Paredão, do sítio arqueológico Hatahara, em Iranduba (AM); as urnas Caiambé, do lago Amanã, na confluência do rio Solimões com o rio Japurá (AM); as urnas da região de Santarém; e as urnas Maracá, no Amapá. 


“Todas elas são muito interessantes. E cada uma delas conta para a gente uma história diferente. Apesar de serem muito comuns na Amazônia, elas representam particularidades socioculturais muito grandes. Algumas são sepultamentos inteiros, com a pessoa enterrada diretamente. Outras envolvem cremação e sepultamentos secundários [quando os restos mortais, como ossos, são enterrados novamente após um período]. Algumas urnas, como as Maracá, representam aparentemente uma pessoa, reproduzem a pele da pessoa com suas pinturas, com o que elas deveriam parecer em vida. Já outras urnas, como as Paredão, são enormes e comumente têm representações de animais ou pessoas, provavelmente relacionadas a entidades que devem levar o morto para outro caminho. As urnas marajoaras também têm isso, com representações que parecem corujas nas urnas Joanes pintadas”, detalha Anne.

 

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Escavações de urnas marajoaras no município de Anajás. “No sítio arqueológico de Açaituba, foram encontradas aproximadamente quinze urnas", conta Erêndira Oliveira (Foto: Márcio Tobias Valente)

Arqueologia da morte estuda sociedades humanas

 

De acordo com a professora Anne Py-Daniel, da Ufopa, Arqueologia da Morte é uma perspectiva dentro da ciência arqueológica que investiga a morte, o morrer, as pessoas que morrem, a maneira como se cuida dessas pessoas quando elas morrem, as práticas funerárias e os lugares envolvendo esse momento da morte. “A ideia é lidar com a morte como uma parte essencial das sociedades humanas, porque é algo que nos une a todos: todas as sociedades humanas no mundo, em algum momento, desenvolveram ferramentas para lidar com a ausência de entes queridos”, afirma.


Práticas funerárias e relações com a vida e com a morte têm sido temas centrais dos estudos de Erêndira Oliveira, do MPEG. “As urnas funerárias revelam que os povos antigos da Amazônia tinham uma relação com a morte profundamente simbólica e que se conecta com as visões de mundo de muitos povos indígenas ainda hoje. A morte não era entendida como fim absoluto, mas como um processo de transformação, do corpo e da identidade daquela pessoa. É um momento de passagem entre diferentes dimensões de existência, o que exige muitos cuidados e rituais minuciosos com o corpo, com o tempo de luto e com os objetos que acompanhavam a pessoa falecida”, observa. 


A arqueóloga complementa que, por esse motivo, as cerâmicas funerárias eram tão cuidadosamente decoradas com grafismos e símbolos, com referências a corpos humanos e animais. “Esses diferentes elementos estavam, muito provavelmente, conectados aos sistemas cosmológicos desses povos. Urnas, por exemplo, com rostos e membros humanos poderiam retratar não apenas a pessoa falecida, mas representar um novo corpo e nova identidade, uma nova pele que vai acompanhá-la nesse processo de transformação que se inicia com a morte. As imagens das urnas não são meramente decorativas, mas partes ativas desse sistema de crença, como por exemplo em sistemas cosmológicos em que as pessoas podem virar pássaros, peixes, onças”, analisa.

 

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Atualmente, as urnas marajoaras passam por processo de restauração no Museu Goeldi (Foto: Igor Mota)

Urnas marajoaras passam por restauração no Goeldi

 

Depois de se dedicar às urnas Tauary, agora Erêndira estuda urnas funerárias marajoaras, junto com outros pesquisadores do MPEG. “No sítio arqueológico de Açaituba, no município de Anajás, no Marajó, foram encontradas aproximadamente quinze urnas. É basicamente um sítio funerário, um cemitério. Essas urnas apareceram justamente por causa de um período de seca extrema, em 2023”, relata.


Atualmente, as urnas passam por processo de restauração no Museu Goeldi. “A partir dos nossos estudos, podemos dizer que essas urnas foram usadas em sepultamento secundário. O que foi sepultado nas urnas foram os ossos, que podem ter sido cremados ou tratados de diferentes formas. Também sabemos que, enquanto a tradição polícroma tem grande dispersão geográfica, a cerâmica marajoara se estende apenas na região estuarina do Amazonas. Além disso, há diferenças cronológicas, porque a marajoara é um pouco mais antiga que a polícroma”, esclarece a arqueóloga. Segundo Erêndira, a arte cerâmica marajoara era extremamente refinada e acabou se tornando um símbolo da identidade amazônica.

 

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Para Geórgea Holanda, não são os pesquisadores que têm envolvido as comunidades no processo de pesquisa arqueológica, e sim o contrário. "A gente tem nossa formação acadêmica e eles têm a formação de Amazônia. A gente une esses dois conhecimentos e atua conjuntamente”, conta (Foto: Instituto Mamirauá)

COMUNIDADE

 

Para Geórgea Holanda, do Instituto Mamirauá, uma das pesquisadoras envolvidas na recente descoberta em Fonte Boa, não são os pesquisadores que têm envolvido as comunidades no processo de pesquisa arqueológica, e sim o contrário. “Nós já temos um trabalho sólido desenvolvido pelo Laboratório de Arqueologia na região e agora as pessoas já nos chamam e participam do trabalho junto com a gente. São eles que conhecem a área, os caminhos, que nos levam até o sítio arqueológico. A gente tem nossa formação acadêmica e eles têm a formação de Amazônia. A gente une esses dois conhecimentos e atua conjuntamente”, conta.


Para Anne Py-Daniel, a arqueologia, tradicionalmente, era feita por pessoas distantes dos contextos onde os materiais eram achados, mas hoje em dia isso mudou. “Depois de muitas reflexões e cobranças das comunidades, a gente percebeu que envolvê-las não é opcional, ainda mais quando estamos trabalhando nos seus quintais e falando, muitas vezes, de seu passado. O arqueólogo e a arqueóloga não são donos do material arqueológico. Na verdade, ninguém é dono. Então, a gente tem que ter responsabilidade e valorizar os anseios da comunidade nesse processo”, afirma.

 

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