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OPINIÃO

A ameaça da "grilagem" do carbono florestal na Amazônia

Agrônoma, com doutorado em Ecologia pela University of Stirling (UK). Estuda a ecologia da Floresta Amazônica. Pesquisadora titular e ex-diretora do Museu Goeldi. Conselheira da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência-SBPC

Ima Vieira

13/01/2023

Os mecanismos de compensação de emissões têm sido vistos como uma das soluções para a crise climática, mas, de fato, esses mecanismos não combatem as causas do aquecimento global. Na prática, isso dá uma “licença para poluir”, desde que compensem suas emissões, e pode levar a uma “nova forma de especulação”, como percebeu o Papa Francisco, em Laudato Si*.

O mercado de carbono se organiza de diversas formas no mundo. O tipo que preserva a floresta nativa é conhecido como REDD + (Redução de Emissões por Desmatamento e Degradação Florestal). A lógica do desmatamento evitado gera um crédito de carbono com base em uma tonelada de carbono que deixou de ser lançada para a atmosfera. E, nessa lógica, a Amazônia tem se tornado um locus potencial de comercialização de créditos de carbono com base em desmatamento evitado, focado nas florestas.

Mas o que é, onde estão e a quem pertencem esses estoques de carbono florestal da Amazônia? O carbono estocado nas florestas amazônicas é a quantidade de carbono que foi sequestrado da atmosfera e que está agora armazenado no ecossistema florestal. As florestas atuam como um sorvedouro de carbono porque as árvores absorvem gás carbônico (CO2) da atmosfera por meio do processo de fotossíntese e fixam o carbono na biomassa da vegetação. São cerca de 73 bilhões de toneladas de carbono armazenados nas florestas amazônicas, 58% encontram-se nos territórios indígenas, nas unidades de conservação e territórios de comunidades tradicionais e outros 20% estão em terras públicas não destinadas.

Com discursos ambientais, vários agentes têm comercializado créditos de carbono em projetos de REDD gerados em territórios de populações tradicionais, assim como têm assediado as comunidades para negociar créditos de carbono em esquemas pouco confiáveis e sem considerar os Protocolos de Consulta Prévia Livre e Informada. Sem regras claras e transparentes de comércio e monitoramento, como também sem normas de natureza socioambiental e fiscal sobre esse mercado, é muito fácil ocorrer especulações e abusos.
Empresas de REDD têm se “apossado” do Carbono de áreas das comunidades tradicionais e gerado conflitos fundiários e socioambientais. Assim, vimos repetir com o carbono, o mesmo modus operandi de apropriação de terras e violação de direitos de comunidades.

Nesse contexto, multiplicam-se “os carbonos de papel” de inúmeras empresas que se declaram proprietárias dos direitos aos créditos de carbono de milhões de hectares na Amazônia mesmo sem que o uso da terra e a conformidade legal, além de outros requisitos fundamentais da análise em projetos verificados e auditados, estejam de fato garantindo o que foi comercializado.

Enquanto o Brasil ruma para regulamentar esse mercado em torno de cinco propostas que vêm sendo disputadas no Congresso Nacional - o PL 2.122/2021, o PL 3.606/2021, o PL 4.028/2021, o PL 1.684/2022 e o PL 412/2022 - é conveniente sugerir que para evitar a “grilagem do carbono” na Amazônia, quaisquer contratos de cessão de direitos sobre créditos de carbono em territórios protegidos e coletivos ocorram com o consentimento livre e informado das populações e após à existência de um plano de manejo/gestão que contemple as atividades de REDD+ e que aponte as formas de repartição de benefícios, os custos de implementação das atividades, o modelo de gestão dos recursos, os mecanismos de controle social e de resolução de conflitos sobre a aplicação desse recurso e sobre todas as etapas do projeto.

Sem o devido cuidado, os instrumentos de mercado de carbono não se constituem em oportunidades, mas verdadeiro perigo às comunidades amazônidas e ao patrimônio público.
 

* Laudato Si é o nome que se dá à Encíclica (tipo de comunicação escrita papal) assinada pelo Papa Francisco em 2015. Saiba mais sobre os conceitos e ideias centrais do documento neste link.