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ACESSO PRECÁRIO

Saúde na Amazônia enfrenta gargalos

Falta de médicos e pouca cobertura na Atenção Básica estão entre as dificuldades. Pesquisadores defendem um olhar diferente das autoridades para as necessidades locais

Camila Azevedo

18/07/2024

Indicadores sociais da Amazônia apontam que a saúde segue sendo um dos principais desafios a enfrentar na região. O território cobre cerca de 5 milhões de km², apresentando não apenas as barreiras impostas pela degradação florestal, mas as consequências dela: a vulnerabilidade e a dificuldade de implementação de políticas públicas que atendam às particularidades do bioma e da população, promovendo desenvolvimento e protagonismo.

A realidade de gargalos é traduzida em números. Em Boa Vista, capital de Roraima, um dos estados da Amazônia, a quantidade de médicos para mil habitantes é 1,63, segundo levantamento do Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (Ieps). A taxa é a menor do bioma e está bem abaixo do registrado em outras cidades do Brasil, como Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, que possui 6,66 profissionais para o atendimento de mil moradores.

Em 2023, as políticas de saúde focadas na região, desenvolvidas pelo Ministério da Saúde, miraram na criação de vagas exclusivas do programa Mais Médicos e na habilitação de novas unidades do programa Farmácia Popular. A pasta também expandiu o orçamento para reforçar a assistência de alta e média complexidade, mas não detalhou quanto foi investido. Devido à situação de seca extrema que atingiu o bioma no mesmo ano, parte da verba anual foi destinada para apoiar a população atingida.

Necessidades locais

A atenção à realidade local é elencada como prioridade para o bom desenvolvimento da saúde pública da Amazônia, tanto que uma das iniciativas realizadas pelo Ministério em 2023 foi a antecipação da multivacinação e da campanha contra a gripe influenza - o que levou em consideração as questões climáticas da região. A ação faz parte de uma série de estratégias que gestores, trabalhadores e movimentos sociais da saúde estão, aos poucos, tentando introduzir dentro do Plano de Saúde da Amazônia Legal (PSal).

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Falta de médicos e pouca cobertura na Atenção Básica estão entre as dificuldades na Amazônia (Foto: Tarso Sarraf / O Liberal)

Para eles, é fundamental a discussão de um modelo de atenção que possibilite o atendimento ao usuário em tempo oportuno e conceba a questão da saúde como parte do desenvolvimento econômico e social do bioma. As diretrizes defendidas pelo grupo têm como objetivo, também, a diminuição das desigualdades regionais e a busca pela equidade - tudo levando em consideração as especificidades da Amazônia e de seus habitantes.

O projeto é de autoria de quatro pesquisadores amazônidas, entre eles Paulo Oliveira, professor da Universidade Federal do Pará (UFPA), psicólogo e militante do Sistema Único de Saúde (SUS). Segundo ele, a região tem sido alvo de muitos estudos relacionados ao descobrimento de doenças, mas nada voltado para como desenvolver a região a partir desse processo. “Como organizar a atenção primária da saúde em um território onde tempo e distância são enormes? É um desafio”, diz.

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É fundamental a discussão de um modelo de atenção que possibilite o atendimento ao usuário em tempo oportuno e conceba a questão da saúde como parte do desenvolvimento econômico e social do bioma (Foto: Tarso Sarraf / O Liberal)

“Como um paciente que está, por exemplo, em Castelo dos Sonhos [no Pará], a mil quilômetros de Altamira, ou em Breves, e tem câncer, vai ser atendido em um tempo oportuno? [Além disso,] a gente precisa entender que tem vida inteligente na Amazônia para produzir vacinas, para produzir soros… temos conhecimento vasto de plantas que podem e já estão sendo estudadas. Temos que incorporar esse trabalhador em uma cadeia produtiva”, adiciona Oliveira.

O plano também envolve o investimento mais direcionado para a saúde pública do bioma. Isso porque, conforme analisa Paulo, há diferenças nos custos de manutenção. “É muito diferente manter um médico no interior da Amazônia, a prefeitura não tem condições sem o suporte federal. Junto a isso, tem o corporativismo profissional, eles só querem ficar a 200 quilômetros da fronteira, não querem interiorizar. Precisamos de formação que ajuda na fixação desses profissionais. São pontos importantes que estão com o Ministério”.

PAULO OLIVEIRA, PROFESSOR DA (UFPA), PSICÓLOGO E MILITANTE DO SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE (SUS) -  FOTO THIAGO GOMES  (1).JPG
“A gente precisa entender que tem vida inteligente na Amazônia para produzir vacinas, para produzir soros… temos conhecimento vasto de plantas que podem e já estão sendo estudadas”, diz o professor (Foto: Thiago Gomes / O Liberal)

Soluções passam por conhecimentos tradicionais

A valorização dos conhecimentos tradicionais é apontada por Paulo como uma forma de superar as dificuldades presentes no cenário da saúde da Amazônia. “Precisamos entender a saúde como um bem viver e eles [populações tradicionais] podem ajudar tanto nas boas práticas de manutenção do território, porque saúde também é meio ambiente, quanto na descoberta de novos fármacos e na concepção de vigília em saúde, pois sabem identificar os riscos de forma mais avançada”, enfatiza.

“O seu conhecimento precisa ser incorporado, sua expertise e saber não com uma visão de colonizador. Precisamos ter uma virada pragmática, olhar para o que vai nos ajudar a ter sustentabilidade e enfrentar os desafios que estamos enfrentando”, completa o professor.

Negociações

As negociações para o Psal estão em fase final e a previsão é que ele seja publicado em cerca de três semanas, conforme confirmou a ministra da Saúde, Nísia Trindade, ao Liberal Amazon. Ela esteve em Belém no início de julho para a inauguração do novo prédio da Seção de Hepatologia (Sehep) do Instituto Evandro Chagas (IEC), um investimento da ordem de R$ 7,9 milhões que vai promover avanço em pesquisas na região. O Psal representa, segundo Nísia, uma preocupação em desenvolver a Amazônia.

“No caso da saúde pública, desde a equipe da transição, com o trabalho coordenado pela professora Regina Barroso, da Universidade Federal do Pará, do Hospital Universitário, houve reunião de instituições locais e, depois disso, o Ministério da Saúde compôs um grupo de trabalho que vem discutindo várias questões, os aspectos de vigilância, os aspectos da biodiversidade e seu potencial de uso para a saúde e o fortalecimento das instituições locais e a redução das desigualdades regionais”, explica a ministra.

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As negociações para o Psal estão em fase final e a previsão é que ele seja publicado em cerca de três semanas, conforme confirmou a ministra da Saúde, Nísia Trindade, ao Liberal Amazon (Foto: Carmem Helena / O Liberal)

O olhar para a diversidade da região, apontado por Trindade, é um medidor de ações que devem ser estabelecidas. “Por essa razão, antecipamos o calendário de vacinação de gripe. Não podemos ter um calendário único para um Brasil que não é só desigual, ele também tem diferenças desse ponto de vista. Mas o plano propriamente ainda não está finalizado, ele está, neste momento, sendo finalizado. Também ele vai ser discutido no âmbito de todo o governo federal para ser publicizado”, acrescenta.

“Primeiro ele tem que ser discutido com as outras áreas do governo e também o presidente Lula está muito empenhado na questão amazônica, nós temos aí um tempo de pelo menos umas três semanas até finalizarmos esse processo e torná-lo público”, completa a ministra da Saúde.

Belém aposta em serviço digital para superar barreiras

A capital do Pará possui dados alarmantes em saúde pública. De acordo com o Ieps, Belém tem a cobertura mais ineficiente de Atenção Básica: os números apontam menos de 50% da população contemplada em 2022 - ano do último levantamento realizado. No entanto, a prefeitura de Belém aposta em tecnologia para solucionar os gargalos impostos historicamente. Em julho, a gestão anunciou o lançamento de uma plataforma digital que vai poder auxiliar a população em consultas.

O Saúde Belém Digital faz parte das tentativas de ampliar a Atenção Básica do município. Os investimentos focam em prevenir doenças. Pedro Anaisse, secretário de saúde da cidade, frisa que os esforços nesse sentido já aumentaram de 124 para 348 o número de equipes que fazem parte do programa Família Mais Saudável, medida que engloba a Atenção Básica. “Esse crescimento passa de 28% da população atendida para 85%. Vamos complementar essa ampliação com o aplicativo de saúde digital”.

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A capital do Pará possui dados alarmantes em saúde pública. De acordo com o Ieps, Belém tem a cobertura mais ineficiente de Atenção Básica (Foto: Tarso Sarraf / O Liberal)

Usuários

A expectativa é que cerca de 850 mil usuários façam uso do aplicativo. Nessa meta estão incluídas as pessoas acima de 18 anos que já estão registradas e seus dependentes menores de idade. “Nós já temos em torno de 600 mil pessoas cadastradas no nosso sistema de registros do Ministério da Saúde, que é o E-Sus. Estamos hoje com os nossos 1.700 agentes comunitários dessas 348 equipes fazendo busca ativa e recepcionando a população que ainda não está vinculada a essas equipes”, explica o secretário.

“Iremos ofertar, no escopo da atenção primária, consultas de médicos pediatras e generalistas, da família, 24 horas por dia, sete dias na semana, e consultas multiprofissionais de psicólogos, nutricionistas e educadores físicos de segunda a sexta-feira, de 7h às 19h. A população estará habilitada a usar essa ferramenta desde que esteja cadastrada com as nossas equipes de Saúde da Família. Essa é uma exigência, porque nós precisamos enxergar o paciente atendido dentro do território coberto por essas equipes”, diz.

Ao todo, dois terços da população residente da capital paraense deverá ser beneficiada com o novo serviço, que é observado pelas autoridades locais como uma alternativa para desafogar os atendimentos de saúde do formato presencial. “Entendemos que Belém é pioneira desse modelo e, por ser pioneira, a gente precisa enaltecer e divulgar a população para que ela venha a usar, a partir do mês de agosto, quando anunciaremos a data inicial. Além de tudo é um aplicativo que não irá consumir o pacote de dados”, conclui Pedro.

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A expectativa é que cerca de 850 mil usuários façam uso do aplicativo. Nessa meta estão incluídas as pessoas acima de 18 anos que já estão registradas e seus dependentes menores de idade (Foto: Tarso Sarraf / O Liberal)

Saúde indígena na Amazônia precisa de atenção

Em 2023, o mundo assistiu à catástrofe em saúde que o povo indígena Yanomami estava sofrendo. Além das doenças que o garimpo ilegal na área levou, a desnutrição foi uma realidade. No entanto, esses não são os únicos problemas. Recentemente, denúncias sobre o quadro vivido pelos Madihas Kulinas, localizados no sudoeste da Amazônia, chamaram atenção. Além da falta de alimentação adequada e em quantidades suficientes, o grupo se ressente da falta de atendimento médico.

Investimentos

Entre 2023 e o primeiro semestre de 2024, o Ministério da Saúde investiu mais de R$ 2,5 bilhões na atenção à saúde indígena na Amazônia Legal, segundo a pasta. Os trabalhos são desenvolvidos por meio da Secretaria de Saúde Indígena (Sesai/MS), criada em 2010. O bioma conta com 25 Distritos Sanitários Especiais Indígenas (Dseis) e serviços adaptados às características culturais, geográficas e administrativas dos povos indígenas.

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Pesquisadores defendem um olhar diferente das autoridades para as necessidades locais (Foto: Tarso Sarraf / O Liberal)

“Nessas unidades são realizadas ações de imunização, saúde bucal, vigilância alimentar e nutricional, consultas de pré-natal, crescimento e desenvolvimento infantil, promoção da saúde e prevenção de agravos e promoção do bem viver nas comunidades. O Ministério da Saúde disponibiliza transporte aéreo, terrestre e aquático para remover pacientes para consultas médicas e atendimentos de urgência e transportar as Equipes Multidisciplinares de Saúde Indígena para áreas específicas”, informa o ministério, em nota.