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CIÊNCIA

Plantas amazônicas: a cura que vem da floresta

FARMACOLOGIA - Estudiosos da Uepa e da UFPA buscam, em parceria com comunidades tradicionais, descobrir o potencial da biodiversidade local para a saúde

Ádria Azevedo | Especial para O Liberal

08/02/2025

O conhecimento tradicional sobre as plantas da Amazônia que, por muito tempo, foi transmitido apenas pela oralidade dos mais velhos, tem despertado o interesse de cientistas. Pesquisadores amazônidas buscam a comprovação e ampliação dos benefícios terapêuticos de espécies que habitam a maior floresta tropical do mundo. Algumas delas, como a andiroba, a copaíba e, mais recentemente, a ucuuba, estão na mira e nos experimentos de pesquisadores do Grupo de Estudos e Pesquisas em Saúde, da Universidade do Estado do Pará (Uepa), que avaliam as propriedades cicatrizantes de sementes amazônicas.


Um estudo apresentado no fim do ano passado, liderado pelos professores Anderson Bentes de Lima e Tiago Santos Silveira, da Uepa, demonstrou que o óleo da ucuuba tem bons resultados no tratamento de feridas crônicas, porque estimula a formação de tecido cicatricial e também porque ajuda na formação de novos vasos sanguíneos nas bordas das lesões, o que é essencial no processo de recuperação dos tecidos.

 


A pesquisa se voltou para o estudo das feridas excisionais, como lesões por pressão, queimaduras de 3º grau, feridas venosas, de hanseníase e de pé diabético. São lesões que não podem ser suturadas, daí a importância de contar com recursos que favoreçam uma cicatrização mais rápida. E é no óleo extraído de sementes amazônicas, como a ucuuba, que os pesquisadores estão encontrando respostas para a questão.

LABORATÓRIO

 

Mas não basta confirmar o poder das plantas medicinais amazônicas para que elas já sejam transformadas em medicamentos acessíveis à população. Trabalhando há mais de 20 anos com pesquisa farmacológica, Anderson Lima, que é um dos pesquisadores e coordenador do Laboratório de Farmacologia Experimental da Uepa, conta que há um longo caminho para que o produto chegue ao consumidor final. 

 

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Pesquisadores do Grupo de Estudos e Pesquisas em Saúde, da Universidade do Estado do Pará (Uepa), avaliam as propriedades cicatrizantes de sementes amazônicas (Foto: Carmem Helena/O Liberal)


“No laboratório, trabalhamos com extratos e óleos essenciais amazônicos. Estudamos os efeitos farmacológicos das plantas amazônicas para dor, inflamação e câncer. Estudamos a segurança dessas plantas em modelos de toxicidade. Iniciamos a criação de formulações a partir das plantas medicinais, avaliando a atividade das mesmas, e patenteando-as em seguida. Até o momento, fazemos estudos pré-clínicos, para que, após aprovação da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), possamos chegar aos estudos clínicos, com humanos”, detalha o farmacêutico. 


O estudo com o óleo de ucuuba encontra-se em estágio pré-clínico, mas os pesquisadores garantem que os resultados são promissores. No mesmo laboratório, Lima adianta que os cientistas trabalham na patente da formulação da malva-do-marajó e do pau rosa, além de uma patente à base de caroço de açaí para a criação de órteses.

Etnofarmacologia participativa

 

Um outro laboratório, dessa vez da Universidade Federal do Pará (UFPA), também realiza pesquisas com plantas amazônicas em busca de propriedades farmacológicas. Trata-se do Laboratório de Cromatografia Líquida (Labcrol).

 

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“A gente tem acessado informações de dez comunidades tradicionais no Marajó, especificamente em Salvaterra, que têm feito essa colaboração conosco. Não é somente um acesso, mas é uma colaboração, é uma etnofarmacologia participativa”, explica a professora Consuelo Silva, do Laboratório de Cromatografia Líquida (Labcrol), da UFPA (Foto: Thiago Gomes/O Liberal)


De acordo com uma das pesquisadoras do Labcrol, a farmacêutica Consuelo Silva, as plantas são estudadas quimicamente e farmacologicamente no local. Para isso, os estudiosos utilizam duas abordagens. “Uma é a informação que vem lá do conhecimento tradicional, dos povos tradicionais com os quais trabalhamos na nossa região. Então, a gente tem acessado informações de dez comunidades tradicionais no Marajó, especificamente em Salvaterra, que têm feito essa colaboração conosco. Não é somente um acesso, mas é uma colaboração, é uma etnofarmacologia participativa, onde existem pesquisadores quilombolas que trabalham conosco. Inclusive, um deles está vindo fazer o mestrado conosco”, explica a professora. Etnofarmacologia é a ciência que estuda o conhecimento popular sobre fármacos, relacionando com sistemas tradicionais da medicina.


Segundo a docente, a outra abordagem, além da etnofarmacológica, é o estudo químico propriamente dito. “Eu sou farmacêutica, então é isso que move o meu trabalho: descobrir novas moléculas para a produção de medicamentos que, por exemplo, possam ajudar o tratamento de doenças crônicas que ainda não têm cura. Ou, ainda, para substituir fármacos que já estão no mercado, mas que têm muitas reações adversas. Como a gente já sabe quais moléculas têm atividade para problemas como dor ou febre, a gente vai em busca daquela classe de moléculas nas plantas, já sabendo que há grande chance de ela ter a atividade que a gente busca”, relata a professora.

 

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Um dos conhecimentos tradicionais das comunidades do Marajó é a planta raiz do sol., que está sendo estudada no Labcrol (Foto: Thiago Gomes/O Liberal)

Uso tradicional é estudado

 

Consuelo cita como exemplo de um dos conhecimentos tradicionais das comunidades do Marajó a planta raiz do sol. “Eles utilizam essa planta para doenças de pele. Então a gente trouxe para o laboratório e fez a mesma forma de preparo que eles fazem lá: primeiro extraindo dela um líquido, como se fosse a extração de um tucupi, e depois separando o líquido da goma. A gente trabalha com essas duas partes, o líquido e a goma, para descobrir o que tem nessa planta, que lá eles usam para coceira, para ferida e até para banhos quando estão ‘para baixo’”, exemplifica. 


O coordenador do Labcrol, o químico Milton Nascimento Silva, cita também a planta Varronia multispicata, conhecida no Pará como maria-pretinha. “É uma espécie que a gente vem trabalhando e que já tem uma patente. Hoje, a gente já está desenvolvendo um produto, com efeito anti-inflamatório e cicatrizante excepcional. Nós já conhecemos a composição química e hoje a gente está no processo de controle de qualidade, de certificação do extrato. Nosso laboratório vai garantir que ela tem um potencial químico e farmacológico para se transformar em medicamento”, assevera o professor.


De acordo com o pesquisador, o potencial para novas descobertas na Amazônia é gigantesco. “Estudos dizem que somente 30% da nossa biodiversidade já foi explorada. Então, estamos diante dessa ‘matéria verde’ que ainda não foi revelada ao mundo. Como não acreditar que existe potencial?”, argumenta.


Nesse sentido, o especialista ressalta a necessidade de investimentos em inovação, para a realizar a bioprospecção. “Nós pesquisadores, a academia junto com as políticas públicas, mas também a iniciativa privada, precisamos fomentar essa ideia de que existe algo novo e que precisa ser descoberto”, afirma.

 

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“Estudos dizem que somente 30% da nossa biodiversidade já foi explorada. Então, estamos diante dessa ‘matéria verde’ que ainda não foi revelada ao mundo. Como não acreditar que existe potencial?”, argumenta Milton Nascimento, coordenador do Labcrol (Foto: Thiago Gomes/O Liberal)

Garantia de retorno às comunidades

 

A professora Consuelo Silva reitera que existe a preocupação com a valorização da participação das comunidades tradicionais no processo e para que haja um retorno efetivo a elas.


“Nosso anseio é que isso retorne, de alguma forma, para essas comunidades tradicionais, que têm sido nossos parceiros, em colaboração com tudo o que se tem aqui no laboratório. Nós recebemos as informações da comunidade tradicional, estudamos quimicamente, avaliamos farmacologicamente e esperamos que isso tenha um retorno para eles, na forma de patente, de um produto que, reconhecidamente, tenha surgido ali, de um conhecimento de seus avós”, diz a pesquisadora. 


A docente esclarece que a patente seria da universidade, com a participação das comunidades. “Existe toda uma legislação que fundamenta essa divisão de partilha de bens caso algo que tenha sido relatado a partir de uma comunidade tradicional venha a se tornar um produto. A nossa intenção é, ao final de tudo isso, ajudá-los com emprego, renda, a partir de formulações que possam vir a surgir dessas informações que foram fornecidas por essas comunidades, que já estão cansadas participar de trabalhos acadêmicos em que só fornecem informações, mas não veem um retorno, um produto final”, analisa.

Interesse nascido da ancestralidade

 

A graduanda em Farmácia Regiane Vilhena, quilombola da comunidade Arapapuzinho, em Abaetetuba, é bolsista de Iniciação Científica do Labcrol, da UFPA. Ela conta que seu interesse pela área de farmacologia vem do que aprendeu de suas ancestrais. 

 

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A graduanda em Farmácia Regiane Vilhena, quilombola da comunidade Arapapuzinho, em Abaetetuba, é bolsista de Iniciação Científica do Labcrol, da UFPA. Ela conta que seu interesse pela área de farmacologia vem do que aprendeu de suas ancestrais (Foto: Thiago Gomes/O Liberal)


“Todo meu conhecimento sobre plantas medicinais vem de minhas avós. Tive e ainda tenho o privilégio de ver minhas avós usando seus conhecimentos com essas plantas, como por exemplo a extração de azeite de andiroba usado em inflamações e dores musculares ou a produção do chá da Verônica, usada para banhos de assento que usamos para ‘limpar’ o útero da mulher”, recorda.


Regiane relata que decidiu cursar Farmácia para aprofundar seus conhecimentos sobre plantas medicinais. “E no Labcrol tenho a oportunidade de realizar pesquisas na área voltadas ao meu quilombo”, destaca.


A estudante se refere à parceria que está sendo firmada entre o Labcrol e a comunidade de Arapapuzinho e outros quilombos de Abaetetuba para os estudos etnofarmacológicos. “Em nosso trabalho, vamos até o local e falamos com os especialistas, aqueles que detêm o conhecimento tradicional. Perguntamos sobre as plantas que eles usam para tratar as doenças e eles explicam quais são, como preparam, quem pode usar. Tudo é registrado e depois estudamos as plantas no laboratório, para conhecer quais compostos há nas espécies e o que explica seus efeitos terapêuticos”, descreve.


A estudante pretende fazer seu Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) sobre as plantas medicinais usadas em sua terra natal. “Hoje eu sou a pesquisadora quilombola que intermedeia esse processo com a comunidade. Quero defender meu TCC com um relato das plantas que nós usamos lá, sobre como esse conhecimento é passado de geração para geração e contribuir com ações de educação, saúde e para a geração de algum benefício para a minha comunidade”, afirma a quilombola. 

 


PARCERIA INSTITUCIONAL
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