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LOGÍSTICA

Brasil usa apenas 30% do potencial econômico hidroviário

São muitos os desafios de logística e transporte pelos pouco mais de 19 mil quilômetros de extensão que têm sido usados para escoamento de produção pelos rios. Portos do Arco Amazônico se destacam no escoamento de soja e milho

Alice Martins

26/08/2022

O Brasil tem um potencial hidroviário de aproximadamente 64 mil km, mas, para fins econômicos, utiliza apenas cerca de 30% desse total. Na prática, são usados pouco mais de 19 mil km - sendo 81% dessa extensão (15,5 mil km) águas dos rios da Amazônia. O levantamento foi feito pela Confederação Nacional do Transporte (CNT), a partir de dados da Agência Nacional de Transportes Aquaviários (Antaq).

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Eduardo Nery, diretor-geral da Antaq - Foto: Marcos Oliveira

Para que esse potencial seja melhor explorado, CNT e Antaq pontuam que é necessário fazer investimento em sinalização, ampliação de portos e aumento de infraestrutura dos terminais hidroviários, dentre outras melhorias, como aponta o diretor-geral da Antaq, Eduardo Nery. “Mesmo com todo o apelo econômico que as hidrovias possuem na região, ainda temos muito a crescer. Nós, da Antaq, estamos desenvolvendo estudos no momento para montar um plano sólido, consistente, para direcionar os investimentos em melhorias na infraestrutura hidroviária de todo o Brasil, incluindo a região amazônica”, explica.

Segundo o diretor-geral, dentre as necessidades já identificadas, está a situação da hidrovia do Rio Madeira, entre os estados de Rondônia e Amazonas, que precisa de intervenções de balizamento e derrocamento, dentre outros serviços, para ampliar sua capacidade com segurança e conseguir operar durante todo o ano, sem interrupção. De acordo com Nery, essa é uma das importantes intervenções na região amazônica, considerando que a Hidrovia do Madeira é uma das mais importantes vias de transporte do chamado Arco Norte, ou Corredor Logístico Norte.

“Apesar das necessidades de melhorias e as dificuldades geográficas, a Amazônia foi responsável por mais de 51% de todo o escoamento da soja e do milho, dois importantes produtos de exportação, no primeiro semestre de 2022”, ressalta Nery. A porcentagem foi um marco histórico, quando, pela primeira vez, os portos da região Norte e porto de Itaqui, do chamado Arco Amazônico, tiveram uma movimentação superior ao restante do país. Segundo o relatório da Antaq, foram transportadas 41,5 milhões de toneladas de soja e milho pelo Arco Amazônico, enquanto os demais portos do país registraram movimentação de 40 milhões de toneladas das commodities.

“Além da soja e milho, o minério de ferro também tem uma importância muito grande, especialmente no Pará e no Amapá. Já no Amazonas, tem uma movimentação bem importante de contêineres, para abastecer o distrito industrial de Manaus”, acrescenta Nery.

Integração de modais pode facilitar o escoamento da produção

Além do investimento em melhorias na navegação, o diretor-geral da Antaq destaca que um dos principais desafios para alcançar a totalidade do potencial aquaviário na Amazônia é contornar as dificuldades geográficas de deslocamento. Isso porque a Amazônia Legal tem dimensão territorial correspondente a quase 59% do território brasileiro, ou seja, mais de 5 milhões de quilômetros quadrados, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). 

Até hoje, o sistema rodoviário, abordado na primeira reportagem desta série do Liberal Amazon, é o modal mais utilizado. Ainda assim, as rodovias da Amazônia são as piores do país. “Hoje, boa parte dos produtos chega aos portos por rodovias. Ainda assim, a região Amazônica tem tido um crescimento a cada ano e a tendência é continuar desse modo. Caso os projetos de ferrovias se concretizassem na região, teríamos alternativas de logística mais interessantes e que tenderiam a aumentar ainda mais o escoamento de grãos pela bacia hidrográfica amazônica”, explica Eduardo Nery. 

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Foto: Tarso Sarraf

Ferrovias ainda são pouco exploradas na região

Apesar da história das ferrovias na Amazônia iniciar no final do século XIX, o potencial desse modal também é subaproveitado. De acordo com Fábio Carlos da Silva,  professor da Universidade Federal do Pará (UFPA) e doutor em História Econômica, assim como no ciclo da borracha, quando as ferrovias apareceram dentro do contexto da época como maneira mais econômica e rápida de transportar o produto, atualmente, com as rodovias excedendo suas capacidades e enfrentando uma série de desafios para suprir a demanda de movimentação de cargas e passageiros na Amazônia, o modal ferroviário volta a ser tema de debates entre diferentes setores. “Percebemos que o ciclo vem se repetindo. Ainda que o objetivo maior na construção de ferrovias seja o transporte de cargas, a expectativa é que eventualmente as ferrovias se tornem também uma opção de transporte para passageiros, como era na época da borracha”, avalia. 

Segundo a Gerente Executiva de Desenvolvimento do Transporte da CNT, Elaine Radel, esse é um dos fatores que motivam a urgência de investir e ampliar os caminhos pelos rios e pelos trens. “Em termos de ferrovia, basicamente o que temos na região é a Ferrovia Norte-Sul, que tem o objetivo de interligar as cinco regiões do país e de servir de escoamento da produção agrícola”, cita.

A Ferrovia Norte-Sul teve a sua construção iniciada em 1987 e contou com diversas modificações no projeto no decorrer das décadas até chegar à proposta atual, que pretende seguir desde o estado do Pará, no Norte, até o Rio Grande do Sul. No entanto, até agora não foi totalmente concluída, com trechos ainda em construção e outros ainda em planejamento. 

“Ter novas ferrovias na Amazônia seria fundamental para impulsionar a economia, sendo uma alternativa para escoar a produção agrícola para portos mais próximos, já que no momento, majoritariamente, esse escoamento está sendo pelos portos do Sul e do Sudeste”, resume Radel.

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O projeto da Ferrogrão ainda está sem previsão de retorno à pauta do STF - Foto: Rosinei Coutinho

Novos projetos x desenvolvimento sustentável

Um projeto que tramita no momento pelo Supremo Tribunal Federal (STF) é o da ferrovia EF-170, conhecida como Ferrogrão, que tem o objetivo de atender à demanda específica do agronegócio, “interligando uma área de produção agrícola muito densa, no Centro-Oeste com os portos do Arco Norte, permitindo um escoamento rápido e mais econômico”, conforme explica Elaine Radel, gerente da CNT.

Esse é um dos maiores projetos de infraestrutura ferroviária do país e vem sendo discutido há mais de cinco anos com o intuito de interligar os municípios de Sinop (MT) até Miritituba, distrito do município de Itaituba (PA), onde fica localizado um porto de escoamento para exportação dos produtos agrícolas. 

Para o Superintendente da Federação das Indústrias do Estado de Rondônia (FIERO), Gilberto Baptista, ter poucas ferrovias na Amazônia limita as possibilidades para a indústria e o agronegócio, por exemplo, e encarece os custos de produção. “A Amazônia é uma das maiores produtoras de grãos do mundo, mas perde na competitividade internacional quando se trata de logística. Mesmo contando com tecnologia de ponta e sendo competente na produção, quando se trata de logística o preço sobe e a competitividade diminui”, esclarece.

No entanto, os impactos do projeto da Ferrogrão para o meio ambiente e populações tradicionais da Amazônia são tema constante nas críticas de diferentes segmentos sociais. Vinícius Machado,  antropólogo, advogado e estudante de doutorado do Programa de Pós-Graduação em Direito da UFPA, lançou um relatório de pesquisa e um documentário em 2021 sobre os impactos de grandes projetos de desenvolvimento no Rio Tapajós, no trecho localizado na região oeste do Pará.

Com base na perspectiva dos povos indígenas, um dos projetos estudados é o da Ferrogrão. “Para a pesquisa, entrevistei 25 pessoas de diversas etnias indígenas e a opinião era unânime: esses povos têm receio de que grandes projetos como esse mudem completamente a dinâmica social ali existente. Isso porque há não apenas uma mudança devido à construção, mas pela pressão populacional decorrente do funcionamento da ferrovia", explica o pesquisador. Com a Ferrogrão, segundo o estudo, haveria uma modificação dos limites de fronteiras entre a zona urbana e os territórios indígenas, não apenas fisicamente, mas da cultura que seria "importada" para a região. "Um dos entrevistados disse que é como se a ferrovia passasse no meio da sala deles", exemplifica o antropólogo.

O projeto da Ferrogrão foi suspenso em março de 2021 após o ministro Alexandre de Moraes, do STF, acolher a um pedido de liminar protocolado pelo PSOL, suspendendo os efeitos da lei 13.452/2017, resultante da Medida Provisória 758/2016, que modifica os limites do Parque Nacional do Jamanxim, no estado do Pará. Moraes entendeu que o traçado da nova ferrovia passaria pelo parque e que a modificação dos limites da área não poderia ser decidida por meio de medida provisória.

O Ministério da Infraestrutura (Minfra) divulgou, em nota, que “a proposta (da Ferrogrão) aguarda liberação do Supremo Tribunal Federal (STF) para seguir adiante” e que se espera “que a ferrovia movimente 48,6 milhões de toneladas em 30 anos”.

Cinco milhões de pessoas utilizaram o transporte hidroviário no Pará, em 2021

 

Em paralelo às discussões relacionadas ao uso do sistema aquaviário para cargas na Amazônia, o transporte de passageiros também é importante na região e tem várias necessidades urgentes. “Os rios são como as ruas da população. Assim, no transporte de passageiros, precisamos de um serviço mais adequado, que proporcione mais segurança e mais conforto”, exalta Eduardo Nery, da Antaq.

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Regiane e Juliano moram na ilha do Marajó e frequentemente utilizam os terminais hidroviários - Foto: Igor Mota

De acordo com ele, a infraestrutura dos terminais hidroviários é o principal ponto de atenção: “No estado do Pará, estão sendo entregues terminais hidroviários de boa qualidade, mas essa não é uma realidade de toda a região. Em algumas cidades, fora das capitais, ainda encontramos condições bem precárias de embarque de passageiros. Temos trabalhado em soluções para tentar incentivar os governos municipais e estaduais a melhorarem esse cenário”, enfatiza. 

Somente no Pará, cinco milhões de pessoas utilizaram o transporte hidroviário intermunicipal, conforme dados da Agência de Regulação e Controle de Serviços Públicos do Estado (Arcon). Esse é o segundo maior estado do Brasil, com 1.245.870,700km². Mais de 300 embarcações estão cadastradas junto a Arcon, que acessam 50 municípios geograficamente localizados em ilhas, no Pará. Uma dessas cidades é Salvaterra, no arquipélago do Marajó, onde mora o casal de pescadores Regiane de Vasconcelos, 46, e Juliano Rodrigues, 53. Ao longo da vida, foram incontáveis as ocasiões em que precisaram utilizar navegações para chegar à capital do estado, Belém. “Hoje em dia, é até mais fácil porque nós viajamos de lancha rápida, com marcação de assento e ar condicionado. Mas, até pouco tempo, a única opção era o navio. A gente 'atava' uma rede e ficava às vezes mais de 10 horas viajando até chegar a Belém, o que podia ser bem desconfortável", recorda.

Educação e Saúde - O transporte hidroviário faz parte da rotina e, nas comunidades de mais difícil acesso da região, é, muitas vezes, a única alternativa entre casa e escola, por exemplo. Na área da Saúde, os rios são usados para transporte de medicamentos, equipamentos de proteção individual (EPIs) e de passageiros, tanto no sentido capital-interior, como dentro dos territórios dos municípios, para atender às populações ribeirinhas, inclusive com lanchas adaptadas para o formato de ambulâncias (“ambulanchas”) e as Unidades de Saúde Básica (UBS) Fluvial, dentre outros mecanismos. “Os rios são fundamentais para atender a uma população dispersa. São muitas vezes os caminhos que temos para levar medicamentos e vacinas, apesar dos desafios de fazer esse deslocamento com rapidez e segurança”, afirma Charles Tocantins, presidente do Conselho de Secretarias Municipais de Saúde do Pará (Cosems/PA). 

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Foto: Tarso Sarraf

Planejamento e transparência são a chave para sustentabilidade

Seja de cargas ou de passageiros, para os modais funcionarem é importante que estejam integrados dentro de um plano de desenvolvimento sustentável. Segundo o antropólogo Vinicius Machado, ouvir os povos tradicionais é fundamental. “O primeiro passo para que um grande projeto consiga promover o desenvolvimento sem problemas socioambientais é fazer a consulta prévia com todos os povos que são afetados, quilombolas, indígenas e rodovias. Esse é um direito garantido pela Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho”, ressalta.

José Alberto Tostes, professor doutor da Universidade Federal do Amapá, especialista em Padrões e Técnicas de Conforto Ambiental, corrobora com a declaração. “O potencial de transporte na Amazônia é muito grande e tem diversos caminhos que podem ser explorados. Mas, para haver sustentabilidade, é necessário planejamento e gestão adequada, com maior transparência na prestação de contas para a sociedade em todas as esferas”, acentua.

Nas hidrovias, o professor acredita que é preciso investir em maiores infraestruturas nos portos, mais investimento tecnológico e que os processos de fiscalização e monitoramento sejam mais eficazes. “Não é apenas construir, fazer uma obra de melhoria. Todas as comunidades atingidas precisam estar envolvidas no processo, de fato compreendendo e contribuindo para a avaliação dos impactos. Tem que ser uma construção coletiva”, reforça. 

Os demais modais de transporte também são abordados na série de reportagens do Liberal Amazon. Na primeira edição, o tema foi o transporte rodoviário. Você pode conferir no site www.liberalamazon.com.