Quem vê tartaruguinhas minúsculas, tão pequenas que podem ser seguradas entre dois dedos, se encanta. Observar a caminhada desses filhotes até seu habitat natural, para viver nos rios amazônicos, é mais fascinante ainda. Tanto que as ações de soltura de quelônios, nome mais técnico para as espécies, já viraram eventos turísticos, inclusive com a participação de crianças.
A soltura faz parte do processo de preservação de várias espécies de quelônios, como as tartarugas-da-amazônia (Podocnemis expansa), os tracajás (P. unifilis) e as iaçás (P. sextuberculata). Por conta do risco de extinção que esses animais correm, projetos em várias partes da Amazônia realizam o transporte dos ninhos, de onde são postos para áreas seguras de predadores naturais e da ação humana. Protegidos até os ovos chocarem, os filhotes estão prontos para serem soltos na natureza e seguir sua jornada.
De acordo com Júlia Barbosa, analista ambiental do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) no Amazonas, a exploração de quelônios é histórica em todo o mundo, por sua importância alimentar, econômica e cultural. A caça predatória e a comercialização e consumo ilegais, aliados à poluição e perda de habitats, representam grandes ameaças para a preservação desses animais. Por isso mesmo, no último dia 23, foi celebrado o Dia Mundial da Tartaruga, promovido anualmente pela American Tortoise Rescue como forma de conscientizar a sociedade sobre ações necessárias para a proteção dos quelônios.
LEGISLAÇÃO
No Brasil, há várias leis que determinam a proteção dessas espécies. De acordo com Júlia Barbosa, existe a lei de proteção da fauna, de 1967, que proíbe a captura de animais silvestres; e a lei de crimes ambientais, que também proíbe a caça, o comércio, o abate e o consumo de animais silvestres, incluindo os quelônios. Existem também leis estaduais que tratam do tema e ainda uma portaria conjunta entre ICMBio e o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), que estabeleceu o Plano de Ação Nacional para Conservação dos Quelônios Amazônicos (PAN Quelônios Amazônicos), que promove o manejo e conservação de quelônios de água doce que ocorrem na Amazônia Legal e na bacia do rio Araguaia em Goiás.
Segundo a analista ambiental, a carne de quelônios é muito apreciada na região amazônica, cenário que favorece a captura e comercialização ilegal, seja dos animais adultos, seja de seus ovos.
Diogo Lima, coordenador do Programa de Manejo da Fauna, da organização social Instituto de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá, do Amazonas, afirma que existe um histórico de exploração predatória das tartarugas na Amazônia. “Hoje em dia, por conta dos projetos de conservação, isso já diminuiu, mas, ao longo dos anos, houve essa exploração sem critérios, em que se pegava indivíduos adultos, jovens e ovos, para consumo de carne, para produção de energia pela gordura dos ovos, para o consumo dos próprios ovos. Então, tivemos um cenário em que várias espécies estavam ameaçadas de extinção, porque tanto os adultos reprodutivos quanto seus ovos estavam sendo consumidos. Assim, essas espécies estavam passando por dificuldades para se manter em equilíbrio no ambiente”, explica.

De acordo com Lima, o consumo era inicialmente realizado apenas pelas populações tradicionais, mas, com o tempo, passou a ter uma escala comercial, por conta de demandas externas. Atualmente, por lei, apenas essas populações podem fazer o consumo de subsistência de quelônios. “Comunidades tradicionais, a partir da Política Nacional de Povos e Comunidades Tradicionais, e até pela própria lei da fauna, estão resguardadas para esse consumo. Então, as populações tradicionais, que historicamente utilizam recursos naturais de seus territórios, podem consumir quelônios como alimento, mas não pode haver comercialização. Existe também a possibilidade de criação em cativeiro e de manejo comunitário, a partir de sistemas de conservação comunitária”, detalha o coordenador.
Participação popular é fundamental para a dinâmica
Um projeto de conservação no estado do Amazonas, fruto de uma parceria entre o Instituto Mamirauá, o ICMBio e a Universidade do Estado do Amazonas (UEA), tem investido na conservação das tartarugas na região do médio curso do Rio Solimões, na Floresta Nacional de Tefé (Flona Tefé) e na Reserva Extrativista (Resex) do Baixo Juruá. Na ação, a participação da comunidade é fundamental.
Desde 2009, as próprias comunidades da Flona de Tefé vêm se organizando para proteger os ninhos de quelônios, vigiando as praias e fazendo a translocação dos ovos para áreas mais seguras. A partir de 2023, o Instituto Mamirauá, o ICMBio e a UEA passaram a colaborar com a iniciativa, apoiando de forma técnica, organizacional e científica. Mas a base das ações é comunitária.

“Quando você trata de ferramentas de conservação, a participação dos povos que historicamente utilizam esse recurso é o que torna o projeto viável. Essas populações têm o conhecimento a respeito dos locais de reprodução das espécies e do nível de exploração que existe na região, até porque usam esse recurso para subsistência. Então, os projetos precisam não só considerar essas populações, mas também incluí-las na própria elaboração do projeto. Há décadas essas populações trabalham junto com instituições de assessoria e órgãos de fiscalização para desenvolver meios de conciliar o uso cultural dos quelônios com a manutenção dessas espécies em equilíbrio com a natureza”, aponta Lima.
ALTERNATIVAS
Nesse sentido, há um compartilhamento de saberes: o tradicional e o científico, o qual entra com as capacitações em boas práticas de manejo, por exemplo. De acordo com Júlia Barbosa, a atuação do projeto de preservação de quelônios nas unidades de conservação do Amazonas partiu de uma demanda dos próprios comunitários. “Esse, na minha opinião, é o principal fator no processo de retomada das ações, pois eles são os protagonistas dessa história. Nesse contexto, o grande objetivo do programa é buscar alternativas para que as comunidades conquistem cada vez mais autonomia e organização para conduzir as atividades com os quelônios”, destaca a analista ambiental.
Jucelino Costa, morador da Ponta da Castanha, na Flona de Tefé, é um dos ribeirinhos que atua desde 2009 nas ações de preservação, junto com outros membros da comunidade. “Desde menino, eu via minha mãe tirar os filhotes da areia. Aí passei a perguntar para os agentes ambientais se não poderíamos fazer um trabalho de chocar esses ovos e depois pôr no rio de novo. Acabei começando esse trabalho, com as chocadeiras. Depois de 60 ou 90 dias, a gente soltava no rio. Sem conhecimento técnico mesmo. Depois, o ICMBio passou a acompanhar e ajudar com despesas, porque as viagens para fazer isso são caras. Também tivemos apoio na doação dos tanques”, conta Costa.

O morador da Flona de Tefé diz que se preocupa com a preservação. “Se a gente não fizer isso, a cada ano que passar, vai ficar mais difícil, porque tem os predadores, o comércio é grande e a tendência é acabar. Eu sempre digo que a gente tem que aproveitar enquanto ainda tem semente, porque, se a semente acabar, não tem como tirar as mudas. Quando eu era jovem, eu conheci muita fartura de quelônio. Mas hoje tem criança aqui que já nem conhece. Por isso, nunca deixamos o projeto acabar”, assegura.
EDUCAÇÃO AMBIENTAL
Segundo Diogo Lima, os projetos de conservação de quelônios são fundamentais para a educação ambiental, sobretudo das novas gerações. “Esses projetos acabaram transformando um pouco a visão de alguns moradores. Uns já entendiam a importância de manter um nível sustentável no consumo desses animais, mas outros foram apenas ao longo do tempo entendendo que esses sistemas não significam proibição, mas ordenamento”, aponta.
“Quanto às gerações mais novas, os projetos, em geral, envolvem as crianças e os adolescentes em momentos, por exemplo, de soltura dos filhotes, o que acaba aproximando pessoas que, muitas vezes, não tiveram a mesma interação com essas espécies que seus pais tiveram, por conta da diminuição das populações de quelônios na natureza. A participação deles é fundamental, porque são eles que vão manter esses projetos futuramente”, lembra.

Objetivo é gerar renda às comunidades
O coordenador do Instituto Mamirauá ressalta que uma das preocupações da instituição é justamente a viabilidade da manutenção dos projetos a longo prazo. “Nossa atuação pretende também ver de que forma esses sistemas comunitários podem gerar renda, não só para manter os projetos, mas também como forma de renda alternativa para as comunidades tradicionais. E isso tem acontecido, principalmente, por meio de iniciativas de turismo, sobretudo na Flona de Tefé”, relata Lima.
“As próprias comunidades têm iniciado sistemas de turismo baseados nos momentos de soltura de filhotes e com demonstrações das atividades de conservação comunitária. Essa renda pode ajudar a cobrir os custos da conservação, mas também permitir uma diversificação produtiva para essas comunidades”, reforça Lima.
TURISMO
Jeferson Pimentel, da agência NheengaTour, que incentiva atividades na Flona de Tefé, explica que é a própria comunidade que promove as ações, com turismo de base comunitária. “São eles que organizam tudo para os turistas: o café da manhã, o almoço, a trilha. O papel da agência é dar orientações e fazer a divulgação”, diz.
As atividades envolvem a participação na soltura dos quelônios, com explicações de palestrantes sobre as espécies de tartarugas e sua preservação, mas também incluem outras experiências: o café da manhã regional, com produtos da Amazônia; a trilha que mostra extração do látex das seringueiras; a degustação de mel produzido localmente; e o almoço típico de ribeirinhos.
“O ecoturismo pode beneficiar as comunidades de várias maneiras: não só na geração de renda, mas também mostrando sua história, sua cultura, seus costumes. Assim, as pessoas passam a valorizar e entender a Amazônia”, afirma Pimentel.

CONSERVAÇÃO
No Pará, o Instituto de Desenvolvimento Florestal e da Biodiversidade do Pará (Ideflor-Bio) é responsável pelo Programa de Conservação de Quelônios do Estado, em fase de implementação. Atualmente, as atividades de preservação já são desenvolvidas pelo Instituto, em projetos isolados, em algumas das unidades de conservação estaduais: no Parque Estadual Serra das Andorinhas, na região do Araguaia, e no Refúgio de Vida Silvestre Tabuleiro do Embaubal, na região do Xingu, com tartarugas de água doce. Já em Salvaterra e Salinópolis, as ações envolvem tartarugas marinhas.
Priscila Fonseca, presidente do Programa de Conservação, pontua que os projetos são realizados em parceria com outras instituições e, como no Amazonas, com a participação primordial da comunidade. “São eles que estão inseridos no habitat desses animais, que estão constantemente em contato e, por isso, ajudam no monitoramento, para que tenhamos informações em tempo real sobre as desovas”, relata.
A técnica em gestão ambiental adianta que o Programa de Conservação pretende alcançar o maior número possível de locais para proteção dos quelônios, seja dentro de unidades de conservação geridas pelo Instituto, seja em outros locais. “As espécies de tartaruga são fundamentais para o meio ambiente, porque são dispersoras de sementes. Então, o Programa vem com essa perspectiva grandiosa de conservação dessas espécies em todo o estado do Pará. E, na implementação, nosso objetivo é sempre ter a comunidade envolvida nas ações”, conclui.
PARCERIA INSTITUCIONAL
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