“Antes, cinco anos atrás, a gente não sentia tanto impacto com as mudanças climáticas. A gente ainda tinha noção do que era inverno, do que era verão. Hoje está muito diferente, porque está muito quente, muito abafado e difícil de produzir alimentos como a mandioca e seus derivados, que são a base da nossa alimentação”. O relato é de Zenilda Bentes, vice-cacica da aldeia Araçazal, no território Kumaruara, localizado na Reserva Extrativista (Resex) Tapajós Arapiuns, em Santarém, no Pará. As palavras de Zenilda abordam apenas uma pequena amostra do que os povos da floresta têm enfrentado por conta das mudanças do clima, com impactos diretos em sua saúde e bem-estar.
“Para nós são emergências climáticas, porque estamos vivendo constantemente em situação de emergência. Falta água potável, porque os poços artesianos secam. Recebemos água da Defesa Civil de vez em quando, mas ainda assim precisamos comprar água mineral, o que sai muito caro, não só os pacotes, mas o frete do barco vindo de Santarém. Estamos muito vulneráveis também na alimentação, porque não estamos conseguindo produzir certas culturas agrícolas e o peixe é pouco. Até a mandioca está apodrecendo, está cozinhando. Fica difícil manter qualquer plantação viva sem água. Se não tem água para beber, imagina para fazer irrigação. Estamos numa emergência de insegurança alimentar e de água”, lamenta Zenilda.
O cenário relatado pela vice-cacica se repete por toda a Amazônia, atingindo comunidades indígenas, quilombolas, extrativistas e ribeirinhas. As consequências são grandes para a saúde dessa população. De acordo com Zenilda, as mudanças climáticas têm trazido com mais força doenças que já não eram tão frequentes no território, como diarreia e viroses. “Temos percebido que principalmente as crianças e os idosos estão sendo mais acometidos por essas doenças”, afirma a liderança indígena.
MALES
O médico, biomédico e professor universitário David Bichara, organizador do e-book “Mudanças Climáticas e Doenças Infecciosas na Amazônia: uma contribuição para a COP da floresta”, confirma a vulnerabilidade de alguns grupos específicos diante das mudanças no clima. “Cada grupo tem suas peculiaridades, de acordo com a idade, condições de moradia, presença de comorbidades, que podem interferir diretamente no sistema imunológico. Gestantes e crianças geralmente apresentam maior fragilidade neste processo, como, por exemplo, na malária e na dengue, doenças cuja transmissão têm impacto com a atual mudança de temperatura. Já idosos e portadores de doenças crônicas sofrem com a desestabilização de seus quadros devido a ondas de calor, além das dificuldades de acesso à saúde”, comenta.

De acordo com a bióloga Carine Aragão, técnica da Coordenação de Vigilância em Saúde Ambiental da Secretaria de Estado de Saúde do Pará (Sespa), os impactos à saúde por conta dos efeitos das mudanças climáticas podem ser vários. “As ondas de calor, por exemplo, causam desidratação, insolação, queda de pressão arterial e até infartos. As enchentes, por sua vez, podem causar aumento de doenças de veiculação hídrica, como hepatite A, leptospirose, doenças diarreicas e gastrointestinais. Além disso, o aumento de focos de queimada tem impactado diretamente no crescimento de agravos respiratórios. Percebe-se o aumento de asma, bronquite e o agravamento de doenças pulmonares crônicas”, explica.
ESTATÍSTICAS
De acordo a bióloga Carine, de 2023 para 2024, anos em que a estiagem foi severa, houve um aumento de cerca de 35% nos casos de doença diarreica, no Pará, nas áreas atingidas. Já em relação a procedimentos ambulatoriais voltados a agravos respiratórios, como inalação e nebulização, aumentaram 78% de um ano para o outro.

Telessaúde atesta alta de adoecimentos
Juliana Rezende é secretária executiva da Rede Conexão Povos da Floresta, que reúne várias organizações para conectar as populações amazônicas da floresta com internet banda larga. A iniciativa já atende 1,8 mil comunidades indígenas, quilombolas, extrativistas e ribeirinhas na Amazônia e inclui também uma vertente em saúde, com consultas em telessaúde por meio de um aplicativo, o Conexão Saúde. De acordo com Juliana, a experiência com as consultas atesta o aumento de casos de doenças relacionadas às alterações do clima.
“Temos percebido que as mudanças climáticas, especialmente a frequência de eventos hidrológicos extremos e as queimadas, têm impactado diretamente a saúde das comunidades, afetando tanto a qualidade da água quanto do ar. Um exemplo é a relação entre a qualidade do ar e o aumento de atendimentos por problemas respiratórios. Um levantamento recente, dos últimos meses, revelou que 22% das procuras por atendimento via Conexão Saúde estavam relacionadas a questões respiratórias. As doenças gastrointestinais também têm se mostrado expressivas”, informa a secretária do projeto.
O aumento no número de casos acaba impactando o sistema de saúde. “Há um crescimento da demanda, o que acaba sobrecarregando o sistema de saúde. E há também um impacto em relação à logística dos atendimentos, porque, com a seca dos rios, algumas comunidades acabam ficando isoladas e os profissionais de saúde não conseguem se deslocar até lá”, aponta Carine Aragão.

NO PARÁ
Segundo a bióloga da Sespa, a região mais afetada pelo aumento de agravos em saúde, no Pará, é o Baixo Amazonas, no oeste do Estado. “Como a estiagem começa primeiro no Amazonas, esses impactos vêm vindo para o Pará, com a diminuição do nível dos rios, o que impacta as comunidades que fazem uso daquela água para subsistência. Podemos citar, por exemplo, os municípios de Almeirim, Alenquer e Prainha como os mais afetados. Já em relação ao impacto das queimadas, temos os municípios de São Félix do Xingu, Novo Progresso e Altamira, que tiveram aumento de doenças respiratórias no ano passado”, detalha Carine. No Marajó, as principais cidades afetadas foram Muaná, Santa Cruz do Arari e Chaves. “Lá, a estiagem deixa as comunidades ribeirinhas isoladas, o que dificulta o deslocamento das equipes de saúde”, complementa.
Sala de situação busca responder à crise
Em nível nacional, o Ministério da Saúde criou, em 2024, a Sala de Situação Nacional de Emergências Climáticas em Saúde. O objetivo do mecanismo é enfrentar as situações de emergências climáticas que impactam a saúde da população. A ideia é monitorar continuamente as regiões e assim poder responder de forma eficiente na ocorrência de eventos extremos.

Uma das ações realizadas é a visita de técnicos do ministério às comunidades. Em outubro do ano passado, por exemplo, uma equipe se deslocou até Chaves, que vivia uma séria estiagem e um processo de salinização da água dos rios por conta do avanço da água do mar. A água imprópria para consumo acabou ocasionando o aumento de doenças diarreicas e de pele. Em conjunto com governos estadual e municipal, os profissionais do MS coletaram dados para construir um diagnóstico e planejar ações estratégicas no auxílio à população.
PLANO DE AÇÃO
Já em nível estadual, no Pará a Sespa tem se preparado para enfrentar a crise com a elaboração de um plano de ação para emergências climáticas na área da saúde, em articulação com Ministério da Saúde, Defesa Civil Estadual e Secretaria de Estado de Meio Ambiente. O plano deverá definir as ações e fluxos de cada setor e as estratégias para prestar assistência à população.
“A gente precisa verificar qual o cenário de risco nas regiões e intensificar as ações de saúde naquelas áreas, como o envio de insumos e medicamentos emergenciais. É uma forma de a gente tentar minimizar esses impactos à saúde. A gente tem inclusive se preparado para um envio antecipado desses insumos, porque já se sabe que determinadas áreas, em certas épocas do ano, tendem a ficar isoladas e não conseguimos levar esses materiais. Então, uma das estratégias é fazer o envio de forma prévia”, esclarece Carine Aragão.
Além disso, a Sespa intensificou as orientações em relação às doenças relacionadas às mudanças climáticas. “Emitimos informações tanto para a população quanto para profissionais de saúde quanto ao cenário, reforçamos a educação em saúde para as equipes”, completa.

Amapá registra invasão de água salgada
Bailique é um distrito do município de Macapá, no Amapá. Trata-se de um arquipélago com oito ilhas e várias comunidades ribeirinhas. Uma delas é o Arraiol do Bailique, onde mora Inesiane Lopes.
De acordo com Inesiane, a consequência das mudanças climáticas na sua comunidade foi o aumento da estiagem e das queimadas. “E, além da seca e dos incêndios, o nosso território sofreu a invasão da água salgada. Os rios perderam as forças e o mar subiu, tomou conta de onde era água doce”, relata.
A consequência é a falta de água potável. “Recebemos água potável do governo e também de instituições não governamentais, mas isso não supre nossa demanda. Porque a gente precisa de água doce para tudo, e a água que vem é só para consumo. Por isso, muitas famílias fazem coleta de água da chuva no período chuvoso, tratam e guardam para usar no verão”, conta a líder comunitária.
Segundo Inesiane, o cenário provocou o aumento de doenças respiratórias, por causa da fumaça, e também de doenças de pele e intestinais por conta da água salgada. Além de liderança, ela também é técnica de enfermagem e conhece de perto a realidade da saúde no local.
“O nosso único meio de transporte é o rio e, com a seca, os barcos não conseguem passar, somente em alguns momentos do dia. Então, a comunidade fica isolada, longe de qualquer socorro em um caso de emergência. Só dá para sair de helicóptero”, diz. Para tentar contornar o problema, a própria comunidade se empenha em, de forma manual, escavar o leito do rio, para abrir passagem para o tráfego dos barcos.

APELO
A indígena Zenilda Bentes demanda políticas públicas de saúde e para o fornecimento de água potável. “Precisamos disso para viver melhor, cultivar nossas culturas como nosso cará, nossa batata, nossas galinhas, e não ficar dependendo de ajudas esporádicas. Não queremos sair do nosso território, porque o nosso lugar é muito lindo. Mas precisamos de alternativa de vida, porque está difícil”, pede. “E queremos um basta à poluição. Não somos contra o desenvolvimento, mas precisa ser um desenvolvimento sustentável. Estamos em plena COP 30 e queremos que os países olhem para a gente, o quanto nossas vidas têm sido impactadas”, conclui.
Inesiane faz um apelo semelhante. “Pedimos aos governantes que olhem com carinho para nós, que façam políticas públicas para o meio ambiente e para nós que moramos nas florestas. Nós somos os guardiões dessas matas e desses rios e precisamos de políticas para botar em prática o que sabemos. Só precisamos de ajuda”.
PARCERIA INSTITUCIONAL
A produção da Liberal Amazônia é uma das iniciativas do Acordo de Cooperação Técnica entre o Grupo Liberal e a Universidade Federal do Pará. Os artigos que envolvem pesquisas da UFPA são revisados por profissionais da academia. A tradução do conteúdo também é assegurada pelo acordo, por meio do projeto de pesquisa ET-Multi: Estudos da Tradução: multifaces e multissemiótica.