Vista aérea mostrando o acampamento tribal Laranjal às margens do rio Iriri, em território indígena Arara, no estado do Pará, na Amazônia brasileira-Foto de Mauro Pimentel  AFP (2).jpg
CONQUISTA

Demarcação de terras indígenas protege o meio ambiente

RECONHECIMENTO - Durante a COP 30, foram anunciadas novas declarações e homologações de territórios, e seis deles ficam na Amazônia Legal

Ádria Azevedo | Especial para O Liberal

07/12/2025

“Quando nós chegamos aqui, era um deserto, não tinha ninguém morando. Só depois foram chegando outras pessoas, encostando e o Incra [Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária] foi loteando a área. Meus pais, meu irmão, que foi cacique, e eu lutamos muito pelo reconhecimento das nossas terras. É uma conquista muito grande e uma grande emoção, para nós, conseguir ter de volta nosso território. Tem vezes que eu choro, parece que nem estou acreditando, que estou sonhando”. 


O relato é de Maria do Socorro Munduruku, cacica da aldeia Sawré Jaybu, uma das que compõem a Terra Indígena (TI) Sawre Ba'pim, do povo Munduruku, uma área de 150 mil hectares no município de Itaituba, no Pará. A TI foi uma das que tiveram portaria de declaração assinada durante a Conferência das Nações Unidas sobre o Clima (COP 30), em Belém, no período de 10 a 21 de novembro.


Junto à Terra Indígena Sawre Ba'pim, outras nove TIs tiveram sua declaração durante a COP e outras quatro foram homologadas, o que significa alguns passos além da fase de declaração dentro do lento e detalhado processo de demarcação de terras indígenas efetuado pela Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai). Pela legislação, o processo envolve cinco etapas principais: identificação e delimitação; declaração; demarcação física; homologação; e registro na Secretaria do Patrimônio da União (SPU) e em cartório. Todo esse percurso pode levar décadas.

 


Das 14 terras indígenas beneficiadas ao longo do evento climático, seis estão na Amazônia Legal. Além da Sawre Ba'pim, foi declarada a TI Vista Alegre, no Amazonas, e foram homologadas as TIs Kaxuyana-Tunayana, localizada no Pará e no Amazonas; e Manoki, Uirapuru e Estação Parecis, no Mato Grosso.

FUNAI

 

De acordo com Joênia Wapichana, presidente da Funai, o Brasil tem aproximadamente 13,5% de sua extensão territorial demarcada oficialmente como terra indígena. Desse total, cerca de 98% estão na Amazônia Legal brasileira. “Ou seja, a maior parte das terras indígenas reconhecidas formalmente estão aqui”, detalhou, durante a COP 30. 


“E por que esse cenário? Isso veio após a Constituição de 1988, que trouxe uma nova abordagem sobre os direitos territoriais, estabelecendo critérios e características das terras indígenas que consideram as questões antropológicas, ambientais, culturais e as atividades econômicas. Ou seja, quando você demarca terras indígenas, você tem que considerar todos os aspectos necessários para garantir a sobrevivência não só física, mas também cultural dos povos indígenas”, explicou a presidente.


Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatistica (IBGE), 428 mil pessoas habitam as TIs na Amazônia Legal, em uma área de quase 116 milhões de hectares, representando 23% do território amazônico. Das 824 terras indígenas em diferentes fases do processo demarcatório no Brasil, 378 ficam na região.

 

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De acordo com Joênia Wapichana, presidente da Funai, o anúncio durante a COP foi simbólico pelo que representa, mas também uma ação concreta. “A gente está aqui discutindo propostas para o enfrentamento a essa crise climática. E os povos indígenas trouxeram uma mensagem de vida, de que demarcar e proteger terras indígenas deve ser considerado nesse cenário", diz (Foto: Igor Mota/O Liberal)


Já de acordo com Florêncio Vaz, coordenador do curso de Antropologia da Universidade Federal do Oeste do Pará (Ufopa) e indígena do povo Maytapu, são 430 TIs na Amazônia. “Esse número varia um pouco, porque tem que considerar as terras reconhecidas, de alguma forma, pela Funai, e o que dizem as instituições não governamentais, como o Conselho Indigenista Missionário [Cimi], o Instituto Socioambiental [ISA] e a Coiab [Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira]. Dessas 430, 115 estão em alguma etapa pré-homologação. Ou seja, aproximadamente um quarto dessas terras não são homologadas. Pode parecer um número pequeno, mas são terras em posições estratégicas e muito cobiçadas. São terras fundamentais para a própria manutenção do equilíbrio climático”, aponta o professor.

Anúncio ocorre em COP com participação recorde em indígenas

 

O anúncio do avanço na demarcação de 14 terras indígenas brasileiras durante a COP 30 não foi ao acaso. O evento foi realizado na Amazônia, onde se concentra a maior parte das terras indígenas. A conferência climática teve participação recorde de indígenas, brasileiros e estrangeiros. A estimativa é que 5 mil tenham passado pelos espaços do evento, embora os credenciados para o espaço decisório, a Zona Azul, estivesse em número bem menor: cerca de 300. Para efeito de comparação, 300 foi o número total de participantes de indígenas na COP 21, em 2015, em Paris, um dos maiores números de participação indígena em uma COP antes de Belém.


Além disso, os avanços na demarcação das 14 TIs foram uma resposta às pressões do movimento indígena presente na COP 30, que realizou diversas manifestações durante a Conferência do Clima, cobrando não apenas os processos demarcatórios, mas várias outras demandas.

 

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A Terra Indígena Kaxuyana-Tunayana , nos estados do Pará e Amazonas, foi uma das homologadas durante a COP 30 (Foto: Divulgação)


De acordo com Joênia Wapichana, o anúncio durante a COP foi simbólico pelo que representa, mas também uma ação concreta. “A gente está aqui discutindo propostas para o enfrentamento a essa crise climática. E os povos indígenas trouxeram uma mensagem séria, uma mensagem de vida, de que demarcar e proteger terras indígenas deve ser considerado nesse cenário em que se discute soluções às crises climáticas. Os territórios indígenas colaboram para o equilíbrio do clima, colaboram para a proteção da biodiversidade, têm manejos sustentáveis de produtos que mantêm a floresta em pé. Isso precisa ser protegido e a forma de proteger é demarcando os territórios e dando segurança jurídica a esses povos. Demarcar é proteger a vida”, declarou.


Para o professor Vaz, o anúncio sobre as TIs durante a COP foi uma resposta às reclamações das organizações indígenas. “A gente não pode negar que significou um grande avanço. Muitos povos aguardavam com ansiedade. Mas muitas outras terras já estão com o processo todo pronto, aguardando apenas a homologação, e não avançaram. Outros, que aguardam fases iniciais, também não. Então, apesar de toda essa divulgação bastante simbólica em Belém, foi muito pouco diante do que o próprio governo Lula prometeu”, comenta o docente.

Grande barreira contra o desmatamento

 

A demarcação de terras indígenas não apenas dá segurança jurídica aos povos originários e ajuda a manter seu modo de vida, como também funciona como uma grande barreira contra o desmatamento. Levantamento do MapBiomas aponta que, nestes territórios, apenas 1% da vegetação nativa foi perdida entre 1985 e 2023. Isso torna as TIs as áreas mais preservadas no País, à frente, inclusive, de outras áreas protegidas, como territórios quilombolas e unidades de conservação. Por outro lado, estudo do Instituto Socioambiental (ISA) aponta que as terras indígenas não demarcadas são as mais vulneráveis ao desmatamento, que diminui após o processo de demarcação: com a regularização, há aumento significativo na regeneração da vegetação, mostrando como as estratégias indígenas de manejo florestal podem ser grandes aliadas no combate às mudanças climáticas. 

 

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Para Florêncio Vaz, coordenador do curso de Antropologia da Universidade Federal do Oeste do Pará (Ufopa) e indígena do povo Maytapu, ao demarcar as TIs, o governo dá uma grande contribuição para o combate da emergência climática (Foto: Arquivo pessoal)


Para Vaz, ao demarcar as TIs, o governo dá uma grande contribuição para o combate da emergência climática. “A demarcação é direito dos povos indígenas, para que possam dar continuidade ao seu processo cultural, ao seu modo de vida, à sua relação entre si e com o meio ambiente. Os povos indígenas precisam desse território, com tudo que ele tem, porque são lugares de memória, são lugares da sua reprodução histórico-cultural. Mas, além disso, a demarcação é muito importante para evitar o agravamento da crise climática. São cerca de 14% do território nacional que garantem os serviços ambientais, armazenando carbono e regulando o clima. Aproximadamente 23% da área da Amazônia é de terras indígenas. Se todas forem demarcadas, é cerca de um quarto da Amazônia com a natureza preservada”, argumenta.

“CUIDAMOS”

 

Maria do Socorro Munduruku, da Terra Indígena declarada Sawre Ba'pim, confirma a assertiva do professor. “Nós, como indígenas, preservamos, cuidamos, vamos reflorestar, plantando açaí, bacaba, buriti, castanha, cacau, cupuaçu, cumaru, copaíba, andiroba. Vamos plantar para que as caças cheguem perto novamente, porque, hoje, já não tem mais esses animais por causa do desmatamento. Vamos mostrar para o governo que queríamos a terra para isso”, declara a cacica.


De acordo com Angela Kaxuyana, liderança à frente do processo de demarcação da Terra Indígena Kaxuyana-Tunayana e integrante da Coiab e da Associação Indígena Kaxuyana, Tunayana e Kahyana (Aikatuk), a demarcação garante não apenas a dignidade para que povos indígenas vivam em seu território de acordo com seus costumes e modo de vida, mas tem contribuição essencial para o equilíbrio climático, a conservação da biodiversidade e a manutenção dos rios e florestas. “Essas áreas têm uma eficiência, inclusive, maior do que as Unidades de Proteção Integral, que são as unidades de conservação onde não é permitida a vida humana. E isso não sou eu que estou falando: a ciência já comprovou. A demarcação dos territórios tem uma importância global para a humanidade. Os territórios indígenas são pulmões para o planeta. É lá que se tem a eficiência do enfrentamento à crise climática”, enfatiza.

 

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Angela Kaxuyana, liderança à frente do processo de demarcação da Terra Indígena Kaxuyana-Tunayana , explica que foram 22 anos de espera desde o pedido de reconhecimento junto à FUNAI (Foto: Kaiti Topramre)

Foram 22 anos de espera

 

A homologação da Terra Indígena Kaxuyana-Tunayana, uma área de cerca de 2 milhões de hectares localizada nos municípios de Faro e Oriximiná (Pará) e Nhamundá (Amazonas), marcou o fim de 22 anos de espera, desde o início do processo demarcatório na Funai, em 2003. Mas a luta dos povos que habitam o território, entre eles os Kahyana, os Kaxuyana e os Tunayana, é bem mais antiga.


Angela Kaxuyana afirma que, na verdade, são mais de cinco décadas de lutas. “Tudo começou em 1968, quando o regime militar tentou ‘limpar’ a Amazônia para dar lugar aos grandes empreendimentos. Foi uma tentativa de extermínio dos povos indígenas. Então, costumo dizer que nossa batalha não vem desde 2003, com o pedido de reconhecimento, mas já tem 57 anos. A homologação é uma reparação histórica, de toda a violência sofrida, de termos sido arrancados de lá”, relata a ativista.


De acordo com Angela, a homologação significa garantia de direitos. “Primeiramente, ela devolve esse sentido de resgate da diversidade que somos no território, que abriga muitos povos indígenas, inclusive isolados. E também dá essa sensação de segurança, porque as políticas públicas para o território, inclusive financiamentos, giram em torno dessa regularização”, aponta.

 

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O Brasil tem aproximadamente 13,5% de sua extensão territorial demarcada oficialmente como terra indígena. Desse total, cerca de 98% estão na Amazônia Legal brasileira, como a Terra Indígena Kaxuyana-Tunayana (Foto: Jaelta Souza/Divulgação)

FUTURO

 

Após a confirmação das etapas de declaração ou de homologação, o que os povos indígenas dessas terras esperam? Para Maria do Socorro, ainda há muito a ser feito. “Precisamos da homologação e, depois disso, fazer a retirada de quem chegou aqui depois de nós. E não é só demarcar de deixar para lá. Precisamos de monitoramento da Funai e outros órgãos, para ter a nossa garantia. Precisamos muito de segurança”, pede a cacica.


Já Angela espera que, após a homologação, os povos recebam as políticas públicas relacionadas ao tipo de território. “Nós já temos nosso plano de vida, nosso PGTA [Plano de Gestão Territorial e Ambiental], com ações que têm efeito no território. O que a gente quer, agora, é que o Estado brasileiro cumpra a legislação, que garanta educação de qualidade e diferenciada, saúde diferenciada, que assuma sua responsabilidade”, diz.


Para Joênia Wapichana, presidente da Funai, a COP 30 deu visibilidade às questões apontadas por Maria do Socorro e Angela. “A COP da Amazônia fez ver que não é só uma questão de florestas. É também uma questão de direitos humanos. São pessoas que merecem ser cuidadas, com direito à educação, à saúde, à segurança. É preciso proteger quem protege a floresta em pé”.

 

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