É do coração da Floresta Amazônica que o seringueiro Valcir Rodrigues, de 50 anos, extrai o sustento da família e guarda boas lembranças de uma infância às margens do igarapé Caju, no rio Alto Anajás, município de Anajás, na ilha do Marajó (PA). “Eu lembro que a minha mãe levava eu e os meus irmãos para a beira do roçado para deitar na rede, enquanto ela e meu pai iam coletar látex. E eu lembro com muito carinho dessa época”, conta.
Aos 8 anos ele passou a “riscar” seringueiras para ajudar os pais e se manteve no ofício desde então, uma realidade bem diferente daquela que os avós viveram em um passado não tão distante, quando as oportunidades pareciam se perder na imensidão da mata para quem extraía látex - em que os trabalhadores não tinham botas nem lanternas para o trabalho. Valcir afirma que, apesar disso, a mãe tinha o sonho de ver o extrativismo da borracha voltar, após ser interrompido durante a gestão do ex-presidente Fernando Collor de Melo (1990-1992), que marcou o fim dos incentivos públicos à produção de látex. “Era uma atividade muito boa. Foi com ela que eles criaram os filhos. E ela queria muito que voltasse”.
Diferentemente dos sonhos da família de Valcir, voltar a coletar o leite da Hevea brasiliensis não estava nos planos do Marivaldo Pereira, que mora em Portel, no Marajó. Ele foi seringueiro na adolescência: ajudou o pai com a risca das árvores por seis anos. Depois se dedicou à extração de madeira e palmito por duas décadas. Em 2022 redescobriu a alegria de usar faca e balde, ganhando bem mais e sem derrubar nenhum espécime. “Todos os seringais estão bons para trabalhar. Todo dia tem coleta, tem dinheiro e a gente está mantendo a floresta de pé”, garante o seringueiro de 49 anos.
Valcir e Marivaldo estão entre os mais de 500 extrativistas da região que fazem parte do projeto “Marajó Sustentável de Reativação dos Seringais Nativos do Marajó”, lançado há dois anos pelo governo do Estado do Pará, via Empresa de Assistência Técnica e Extensão do Estado do Pará (Emater). A iniciativa oferece uma linha de crédito específica para extrativistas de quatro municípios marajoaras (Breves, Melgaço, Portel e Anajás), e capacita famílias locais para o uso múltiplo da floresta.
SEDAP
De acordo com o secretário de Estado de Desenvolvimento Agropecuário e da Pesca (Sedap), Giovanni Queiroz, o trabalho começou com uma pesquisa realizada juntamente com a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), que apontou a viabilidade de exploração da seringueira nativa da Amazônia no Marajó. Isso motivou o esforço de promover a capacitação de multiplicadores e o fomento da produção da borracha, desde a extração à comercialização, para atender a um mercado que hoje preza pela sustentabilidade. “Na Europa já há um movimento de várias empresas que não compram mais calçados com borracha sintética, produzidas à base de petróleo. Isso é bom, porque vamos ressuscitar uma economia da borracha em condições humanas, que dignifique os que moram na nossa região”, afirma.
Outros estados do norte do Brasil vêm apostando na retomada da extração do leite da seringueira. Em Rondônia, indígenas retomaram a cadeia da borracha em 2023 de maneira incisiva, por meio do projeto “Borracha Nativa”, realizado em parceria entre a rede Origens Brasil e a Mercur. Eles lançaram a borracha 100% látex da Amazônia, um produto que agrega valor pela marca da sustentabilidade.
Um olhar para o centro da floresta
No Pará, a retomada do extrativismo da borracha ganhou fôlego com o trabalho de um empresário natural do interior do Paraná, na década de 1980. Francisco Samonek aterrissou em solo amazônico para desenvolver um projeto de plantio de seringueiras, em Tarauacá, no Estado do Acre. Ele conta que, na época, havia um financiamento pela rede bancária altamente interessante para essa finalidade, pelo Programa de Desenvolvimento da Borracha (Probor), mas logo o financiamento se esgotou e, com ele, toda a política pública que promovia e tornava viável o extrativismo de látex.
Sem ter condições de investir na plantação da seringueira, Samonek conheceu seringais nativos e descobriu que as árvores nativas e centenárias eram altamente produtivas e de baixo custo. “Eu me perguntei: por que derrubar as árvores para implantar um projeto de monocultura, se temos condições de produzir uma borracha sem nenhum investimento?”
TECNOLOGIA
Com o tempo, ele fundou a Poloprobio, responsável pela marca Seringô, a qual se destaca com a fabricação de calçados à base de resíduos do caroço de açaí e látex nativo. Mas o grande diferencial é que a equipe do empresário desenvolveu uma tecnologia social denominada “Encauchados de vegetais da Amazônia”, que foi certificada e premiada em 2007 pela Fundação Banco do Brasil, e que melhora a qualidade do látex para que possam ser produzidas peças com alto valor de mercado, aprimorando e simplificando, assim, os processos existentes de produção de borracha.
Além disso, outra técnica desenvolvida foi o processo de pré-vulcanização do látex, para que seja transformado artesanalmente no meio da floresta, sem a necessidade de energia, em uma série de produtos que podem ser comercializados diretamente pelas comunidades, especialmente as formadas por mulheres artesãs.
De soldados da borracha a sentinelas da natureza
Não há como falar de economia da borracha sem lembrar de alguns descaminhos históricos que marcaram a atividade no Brasil. Dividida entre dois momentos de exploração, a extração do látex impulsionou o crescimento financeiro do País. O primeiro período foi entre os anos de 1870 e 1920, quando a borracha chegou a ser o segundo produto brasileiro mais exportado, ficando atrás apenas do café. As capitais Belém e Manaus (AM) enriqueceram às custas da exploração da mão de obra local pelos barões da borracha.
O historiador Marcio Neco afirma que durante a Segunda Guerra Mundial (1941-1945) cerca de 60 mil "soldados da borracha" - a maioria nordestinos - vieram para o Norte cheios de sonhos para viver em um ambiente de pesadelo, somente para suprir a demanda norte-americana de borracha que era usada na fabricação de pneus para aviões e outros artefatos. Esses seringais já eram de propriedade de coronéis que estabeleciam ali dívidas eternas para os seringueiros. Por isso mesmo, o estudioso ressalta: é necessário que o poder público reafirme o compromisso de reparar o dano histórico dessas famílias e valorize os atuais sentinelas da floresta.
VOCAÇÃO NATURAL
“Cabe ao governo criar políticas públicas a partir da vocação natural desses povos, dessas famílias. Morreram mais soldados da borracha na Amazônia do que nos campos de batalha da Itália por conta de doenças, dos ataques de animais, insalubridade e baixíssimos salários. Foi a brigada mais esquecida da história da humanidade. São ribeirinhos que têm a mata como quintal da sua casa e vão ser guardiões dessa mata. Vão zelar pelo seu ganha pão”, defende o historiador.
Neco reitera que a história ajuda a olhar para o passado para não repetir os erros e aprimorar o futuro. E acredita que o projeto de reativação da economia da borracha está alinhado com a necessidade de dar protagonismo aos nativos da Amazônia. “Pelo que eu vejo, o projeto do governo não vai recrutar ribeirinhos, como foi no passado, com pessoas sendo forçadas a trabalhar. Elas estão sendo capacitadas para se tornarem agentes desse processo”.
No Marajó, mulheres criam peças com a “cara” na natureza
Na Reserva Extrativista Mapuá, às margens do rio Mapuá e do rio Aramã, no arquipélago do Marajó, cerca de 25 mulheres se dedicam desde 2010 à produção de artesanato e biojoias marajoaras sustentáveis. Elas receberam capacitação da organização Poloprobio para criar produtos com a “cara” da natureza. Entre os produtos estão a reprodução de folhas da vitória-régia e do tajá, espécies típicas da Amazônia que ganham um colorido especial nas mãos das artesãs.
A estudante Mirian Miranda é filha de uma das fundadoras do grupo. Ela explica que participantes das comunidades ribeirinhas, quilombolas e indígenas atuam diretamente no processo de confecção das peças, que já foram vendidas em eventos dentro e fora do Pará. Além do impacto econômico, a atividade gera empatia e autoestima aos povos nativos, com o diferencial de se usufruir das riquezas naturais sem prejudicar o futuro das vidas que dependem delas.
“É gratificante a gente trabalhar com algo que é nosso, que sabe que aquilo não vai degradar o meio ambiente. Tanto que quando a gente revende as peças eu falo para as nossas clientes: ‘quando vocês se cansarem, podem jogar fora no lixo e na floresta porque não vai poluir o local’. Isso é uma grande conquista para a gente. Saber que o que a gente vende contribui para que não haja mais lixo e degradação do meio ambiente”, avalia Mirian.
CONEXÃO
Hoje, os seringueiros vivem um momento diferenciado de extração, cuja preparação da borracha ocorre dentro de casa, com produtos usados no dia a dia, como a água sanitária, que permite que a massa já saia limpa para o destino final. Além disso, eles não precisam aguardar até três dias para voltar ao local onde estão as estradas de seringueiras (cerca de 100 árvores em sequência).
Para Valcir, voltar a coletar látex é como estabelecer conexão com a mãe que morreu, aquela que o colocava na rede para poder trabalhar, e que ensinou a ele o valor de todas vidas preservadas. “Enquanto puder, eu quero continuar trabalhando aqui. Hoje eu posso chegar numa árvore que a minha mãe já tocou e agora eu posso tocar, porque eu ajudo a manter a floresta de pé”.
PARCERIA INSTITUCIONAL
A produção do Liberal Amazon é uma das iniciativas do Acordo de Cooperação Técnica entre o Grupo Liberal e a Universidade Federal do Pará. A tradução do conteúdo é realizada pelo acordo, através do projeto de pesquisa ET-Multi: Estudos da Tradução: multifaces e multisemioses.