Uma pequena estrada de terra batida chama a atenção na comunidade de Alto Jari, em Arapixuna, a 32 quilômetros de Santarém, oeste do Pará. Nela, a vegetação se sobressai como um tapete natural que parece ter sobrevivido à seca extrema que castiga a região nos últimos meses, e que já dizimou animais e plantações em grande proporção. Mas o que poderia ser uma luz no fim do túnel para as mais de 30 famílias que lá vivem logo se revela uma miragem no “deserto” amazônico: a tal estrada é como fica o canal do Jari, braço do rio Amazonas, sem qualquer vestígio de água.
Dulcicleia Oliveira é natural de Capitão Poço, nordeste paraense, mas passou a morar na comunidade desde 2014. Ela trabalhava até o início de setembro com turismo gastronômico, utilizando vitória-régia - espécie nativa que ela cultivava no quintal de casa - como ingrediente para preparar brownies e pipoca. Com a forte estiagem, o espaço foi fechado para visitantes porque as lanchas não chegavam mais lá e, dias depois, foi a vez de os próprios moradores ficarem sem acesso a outras cidades próximas, já que nem as rabetas podiam sair do lugar.
“A gente sempre se preparou para as cheias do rio, mas nunca para a seca. A nossa comunidade e a comunidade do Jari do Socorro não têm água potável. Pegamos água para o consumo da comunidade de Moacá e, a partir do momento em que o canal do Jari seca, nós não temos acesso a essa água, porque as embarcações não passam lá”, lamenta Dulcicleia.
A ex-cozinheira da Marinha conta que os moradores se juntaram para fazer a limpeza do canal, porque a maré tem dado sinais de que vai voltar. Mesmo assim, o que era para ser motivo de celebração ainda acende um alerta: “Embora o rio comece a encher, os lagos vão secar e isso é um fenômeno natural. Mas é uma preocupação enorme, porque, com a baixa dos lagos onde estão os peixes e animais, a água começa a aquecer e esses animais começam a morrer”.
Na ilha do Marajó, a situação se repete. O servidor público Agostinho Gonçalves Júnior, 39, mora no município de Chaves. Ele diz que há dois anos as comunidades estão vivendo os piores períodos de seca da história. Os rios que abasteciam a cidade secaram, e o pouco de água que restou está salgada. “Nossa comunidade tem o costume de armazenar água da chuva em caixa d’água e tamborão, mas muitas pessoas não têm uma cisterna perto - que chamamos de rampa - e não têm como puxar essa água. E as que têm, o nível de água está muito baixo ou ela está muito suja”, relata Agostinho.
Ele diz que o município e o Estado uniram esforços para ajudar as famílias neste momento de tamanha dificuldade, mas, sem o fluxo da correnteza para garantir a navegação, as barreiras permanecem. “As comunidades estão tendo que comprar água mineral. O problema é que nem todas têm condições de se manter. Eu tenho poço artesiano, mas nem todo mundo tem condições de mandar cavar um. A gente faz corrente, dá água pro vizinho. Como o rio está seco, a gente não consegue receber mercadorias para abastecer o mercado. E, mesmo quando o barco consegue atravessar, não chega até quem mais precisa”, afirma.
Racismo ambiental e seus efeitos
Dulcicleia e Agostinho fazem parte de um desafio nacional. Milhões de pessoas no Brasil enfrentam um problema que vai muito além de uma estiagem que saiu do controle. Eles são vítimas do chamado racismo ambiental, um termo que surgiu na década de 1980, nos Estados Unidos, e volta com mais força com a proximidade da COP 30, que será realizada em Belém, no próximo ano.
O conceito denuncia a desigualdade na distribuição dos impactos ambientais, que afetam de maneira desproporcional as populações marginalizadas e minorias étnicas, seja os povos que vivem na floresta ou as comunidades mais pobres que habitam as favelas das cidades. Na Amazônia, essa discriminação se apresenta na confluência de vários fatores, que vão da falta de saneamento básico ao despejo de resíduos tóxicos em áreas vulneráveis, à grilagem e exploração de terras pertencentes a povos tradicionais - o que torna essas comunidades as principais vítimas das catástrofes climáticas, situação agravada por lógicas de consumo a ideias de superioridade racial. É o que explica a professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Pará, Ana Cláudia Cardoso.
“O que aconteceu é que o mundo acabou intensificando muito os processos de exploração para a ampliação de consumo, e a gente vai assistir que, do século XIX para cá, a gente tem uma crise ambiental estabelecida. E essa crise ambiental demonstra que a gente está vivendo no mesmo planeta, onde a gente tem ecossistemas reagindo a forma como a gente usou fontes de calor, intensificou a emissão de poluentes, aumentou a área para a produção em larga escala”, afirma a pesquisadora.
Segundo Cardoso, as populações que têm uma melhor relação com a natureza são as primeiras a serem afetadas com as mudanças climáticas, porque há uma relação de respeito com o tempo da natureza, e quando o clima muda, desnorteia a cadeia produtiva e prejudica o conhecimento adquirido ao longo de muitas gerações.
“As nossas populações nativas ficam sem saber qual é a época de plantar, qual é a época de colher, porque o clima está muito desregulado. Tem umas zonas que estão hoje com regimes de chuva muito diferentes, condições de seca muito intensas que não eram comuns, então a gente observa que aquela população que não vivia dentro da cidade, não seguia essa lógica do consumo, e ela tem sido a primeira a enfrentar os impactos da falta de água, da escassez de alimento. Isso reforça esse paradigma do racismo que a gente traz de muito tempo atrás”, explica Ana Cláudia.
Populações periféricas também são afetadas
O levantamento do Censo 2022 feito pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), divulgado em novembro, aponta que a Região Norte, cujo território ocupa cerca de 80% da Amazônia Legal, tem a maior fatia de pessoas vivendo em favela dentre todas as regiões brasileiras: são 18,9% no total, contra 8,5% do Nordeste, 8,4% do Sudeste, 3,2% do Sul e 2,4% do Centro-Oeste. Os dados demonstram que comunidades que vivem dentro dos centros urbanos da região também são vítimas do racismo ambiental.
De acordo com a professora ligada ao Centro de Estudos e Defesa do Negro no Pará (Cedenpa), Roberta Sodré, é necessário olhar e trazer para o centro do debate socio-político-ambiental as personagens historicamente marginalizadas, dentro e fora dos centros urbanos, para buscar a equidade social.
“Os dados do IBGE apontam que pessoas pretas e pardas estão em maior número vivendo em zonas de risco. Estamos às vésperas da COP 30 e as baixadas de Belém estão aqui evidenciando que corpos negros e indígenas são ali os que estão mais presentes. A gente precisa ter um diálogo aberto com esses mais impactados, para que eles também sejam agentes de comunicação climática. Precisamos ter diálogos mais abertos com os governantes, para que as políticas públicas sejam cada vez mais fiscalizadas e que tenhamos o direito de romper com esse ciclo de desigualdade estrutural que acaba afetando mais um do que o outro”, afirma Roberta Sodré.
Ainda conforme os dados do Censo, entre as vinte favelas e comunidades urbanas mais populosas do País, oito estão na Região Norte (sete delas em Manaus). As unidades da federação com as maiores proporções de sua população residindo em favelas e comunidades urbanas estão na região amazônica: Amazonas (34,7%), Amapá (24,4%) e Pará (18,8%).
Poder público mobiliza ações
Combater o racismo ambiental é uma preocupação do governo do Pará. Além da apresentação de um Projeto de Indicação para o Executivo, pelo deputado estadual Carlos Bordalo (PT), com o objetivo de garantir a justiça ambiental e a equidade no acesso aos recursos e benefícios ambientais, a Defesa Civil estadual também tem atuado para que as famílias afetadas pela seca não fiquem desprotegidas.
Em outubro, o Estado entregou cestas básicas e água para cerca de 1.200 famílias ribeirinhas que vivem em Santarém. Foram 16 comunidades beneficiadas na ação realizada por meio do Corpo de Bombeiros e Defesa Civil Estadual em parceria com a Defesa Civil Municipal. No mês anterior, os governos Federal e Estadual decretaram situação de alerta para os impactos causados pelas altas temperaturas e estiagem em municípios paraenses, a exemplo da região Oeste. O objetivo é frear os danos causados pelas queimadas e a redução dos níveis de água em reservatórios, rios e aquíferos, que geram prejuízos em atividades econômicas essenciais e na qualidade de vida da população que sobrevive da agricultura, pecuária e pesca.
O coordenador adjunto da Defesa Civil, coronel Marcelo Nogueira, diz que a ajuda humanitária do governo do Estado deve alcançar cerca de 50 municípios que alegaram dificuldades de lidar com a seca extrema e os incêndios florestais: “Os critérios para a escolha desses municípios são elencados pela Defesa Civil. O governo repassa o valor para o município e este, por sua vez, que detém o conhecimento das suas comunidades impactadas, faz a distribuição”.
Nogueira também cita alguns esforços realizados pelas polícias no Pará, a exemplo da Operação Curupira, que determinou Emergência Ambiental nos municípios de Altamira, Anapu, São Félix do Xingu, Pacajá, Novo Progresso, Itaituba, Portel, Senador José Porfírio, Novo Repartimento, Uruará, Rurópolis, Placas, Trairão, Jacareacanga e Medicilândia, e instalou três bases fixas de atuação em São Félix do Xingu, Uruará e Novo Progresso; Operação Amazônia Viva, de enfrentamento ao desmatamento; e Operação Fênix, de combate aos incêndios ambientais.
Juventude na luta contra racismo ambiental
Mais de 10 mil quilômetros separam a sede da COP 30, Belém, da cidade onde foi realizada a COP 29 este ano, em Baku, no Azerbaijão. Mas, para um grupo de jovens de diversos territórios brasileiros, incluindo os da periferia do Jurunas, em Belém, atravessar o oceano foi necessário para gritar ao mundo que eles também são agentes ativos na luta pela equidade ambiental. “Descentralizar as discussões da COP” foi o tema apresentado no estande da Regional Climate Fundations, pela Coalizão COP das Baixadas.
O grupo reúne 15 organizações da sociedade civil, é liderado por jovens das periferias de Belém e desenvolveu ferramentas próprias para diagnosticar como as áreas periféricas são afetadas pela seca, enchente, deslizamento de terra, dentre outros, além de pensar em ações que possam minimizar e erradicar as disparidades sociais em regiões mais vulnerabilizadas e impactadas pela emergência climática.
“Nós, da COP das Baixadas, acreditamos que, para corrigir as falhas relacionadas ao racismo ambiental e às desigualdades socioambientais na Amazônia, é fundamental que se implementem políticas públicas que sejam inclusivas, priorizem o acesso à terra, à regularização fundiária, que protejam os direitos territoriais e garantam também a proteção das populações tradicionais. E, para isso, nós surgimos como uma organização chamada Yellow Zones, que são exemplos práticos e que descentralizam o debate climático e envolvem diretamente as comunidades mais vulnerabilizadas. São zonas de inovação que criam espaços de engajamento comunitário, promovem a educação climática, capacitação e justiça social, fortalecimento e participação social popular”, afirma Waleska Queiroz, uma das organizadoras da fundação.
Para ela, a COP 30 é uma oportunidade de falar sobre o futuro da humanidade, ouvindo populações historicamente silenciadas pela colonização. “É essencial que a gente incorpore a justiça climática em todas as decisões políticas, colocando indígenas, quilombolas, ribeirinhos e populações periféricas no centro do planejamento das cidades, garantindo que as vozes delas sejam ouvidas e consideradas nos eventos globais, como a COP 30, que vai ocorrer em Belém”.
Mudar e mobilizar
Em agosto de 2023, o Governo Federal criou o Comitê de Monitoramento da Amazônia Negra e Enfrentamento ao Racismo Ambiental, uma parceria do Ministério da Igualdade Racial com o Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima, com o objetivo de propor medidas de enfrentamento ao racismo ambiental na Amazônia Legal. O Comitê irá contribuir, ainda, com a ampliação dos órgãos de promoção da igualdade racial estados da Amazônia Legal, para que as políticas de igualdade racial alcancem um maior número de pessoas.
Para a professora Ana Cláudia, apesar dos esforços, ainda há muita dificuldade por parte dos governos para lidar com o assunto, porque predomina a lógica produtiva que não é a das pessoas mais afetadas pela desigualdade social, mas reconhece que a mobilização da sociedade civil em torno do tema gera impactos positivos. Ela, no entanto, acredita que o trabalho coletivo só alcançará resultados satisfatórios quando houver mudança de comportamento individualizado, compreendendo que o ecossistema não está a serviço da humanidade e que o conhecimento dos povos tradicionais não pode mais ser ignorado.
“A gente ainda não tomou decisão de que vamos precisar andar a pé, de que vamos reduzir o consumo dos objetos de que a gente não precisa, de que não seremos comandados pela propaganda, ou que vamos mudar o estilo de vida. Não pensamos que vamos valorizar muito mais as áreas permeáveis na cidade e nos enxergamos como moradores de ecossistemas. É uma questão crucial, nesse momento, a gente mirar nesses grupos que a gente subalternizou, porque eles se superam ao cuidar dos ecossistemas de uma forma muito mais tranquila e muito mais equilibrada do que nós”, conclui.
PARCERIA INSTITUCIONAL
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